Os Green Day não conseguiram dar as boas-vindas a 2024 sem arreliar alguém. Durante uma atuação no programa de televisão “Dick Clark's New Year's Rockin' Eve”, na noite de réveillon, o trio alterou um verso da consagrada 'American Idiot' para I'm nor a part of the MAGA agenda, numa referência às políticas de Donald Trump. A reação por parte dos apoiantes e simpatizantes deste foi imediata, e hilariante (na medida em que a lata consegue ser hilariante): um dos comentários mais notados foi o de Elon Musk, dono da Tesla e do X, multimilionário que fez fortuna à custa do “sistema”, que afirmou que os Green Day tinham deixado de lutar contra este para passar a saudá-lo.
Em canais de televisão detidos pela direita mais conservadora, houve também quem se tivesse insurgido contra o facto de os Green Day terem deixado bem clara a sua posição. “As pessoas estão fartas de ouvir bandas rock a falar de política”, ouviu-se na “Fox News”. “Cinjam-se ao que sabem fazer, não são analistas políticos”. Testemunhos que, ao mesmo tempo que tentam fomentar no público a alienação que é tão querida aos fascismos (a música não é para falar de assuntos sérios, é para falar de beijinhos e pôres-do-sol), demonstram desconhecimento de causa: desde “American Idiot” que os Green Day são uma banda política.
E podemos não concordar com as suas posições, ou considerar que a música política dos Green Day mais não é que uma espécie de rebeldia de cara lavada, alimentada pelos milhões das grandes editoras e multinacionais (a rebeldia lucra imenso: basta ver quantas t-shirts são vendidas, por todo o mundo, com o rosto de Che Guevara). Mas numa coisa teremos de concordar: se os Green Day ainda irritam gente, isso é punk. Talvez a coisa mais punk de uma carreira que começou há mais de três décadas.
A história é esta: como muitos adolescentes norte-americanos nos anos 80, Billie Joe Armstrong e Mike Dirnt apaixonaram-se pelo punk rock e decidiram formar uma banda. De início, tinham como nome Blood Rage, antes de mudarem para Sweet Children, nome com o qual lançaram um EP de quatro canções, “1,000 Hours”, pela editora independente Lookout. Esse mesmo nome rapidamente passaria para Green Day, após uma tarde passada a fumar copiosas quantidades de erva. “Era o nome mais parvo que já tinha ouvido”, confessou Larry Livermore, dono da Lookout, ao autor Dan Ozzi, anos mais tarde.
O primeiro concerto dos Green Day como Green Day deu-se a 28 de maio de 1989: abriram para uma das bandas mais acarinhadas do underground norte-americano, os Operation Ivy, cuja fusão entre punk e ska abriria caminho para a terceira vaga de artistas do género (a primeira deu-se com o ska original, a segunda com bandas como os Madness ou The Specials), e cujo guitarrista e baixista acabariam a formar os Rancid. Estávamos na Bay Area, região da Califórnia que já tinha dado a conhecer ao mundo os Metallica, e as grandes editoras começavam à cata de novos talentos que pudessem comercializar.
Os Green Day, como explica Ozzi em “Sellout”, livro que detalha o interesse das majors em muitas bandas do underground norte-americano entre 1994 e 2007 (para além dos Green Day, aparecem aqui os Jawbreaker, Blink-182 ou My Chemical Romance), estavam na dianteira. “Eles tinham as melhores canções, e quem tem as melhores canções ganha”, afirma no livro Mike Gitter, A&R da Atlantic. “Já andavam a vender montes de discos na Lookout, e já tinham percorrido os Estados Unidos”.
“Kerplunk”, o segundo álbum de estúdio dos Green Day, pode não ter destronado o colosso “Nevermind” no que a rock vindo de baixo dizia respeito (também saiu em 1991, como o clássico dos Nirvana, e também foi fermentado no underground). Mas chamou a atenção de muita gente, confrontada com canções pop/punk, velozes e melódicas, que Billie Joe Armstrong mais tarde descreveria como “autobiográficas”. “Kerplunk” vendeu 10 mil cópias só no seu primeiro dia de lançamento – números extraordinários para um artista numa editora independente –, chegando às 50 mil cópias após uma campanha feroz por parte de Armstrong na costa leste.
Mas a mesma cena que estava a aclamar os Green Day depressa lhe viraria as costas. O chamamento das grandes editoras era enormíssimo, e a Lookout não estava a conseguir dar vazão à procura. Se queriam crescer ainda mais, os Green Day tinham que mudar de ares. “Ou era a Geffen, e a heroína, ou era a Warner, e a cocaína. Escolhemos a coca”, brincou o vocalista, à altura. O trio assinou pela Reprise, uma subsidiária da Warner, pela qual lançou um dos discos que marcou os anos 90 e levou o punk de três acordes e canções sobre garotas ao mainstream, vinte anos depois dos Ramones e numa altura em que o balão grunge começava a esvaziar-se, com a morte de Kurt Cobain.
A escolha foi acertada – os Green Day tornaram-se numa das maiores bandas do mundo, e uma aparição na edição de 1994 do festival de Woodstock, onde mais que tocar dedicaram-se a uma luta de lama entre si e o público presente cimentou esse estatuto –, mas a cena indie não tardou a colar-lhes o rótulo de “vendidos”. O Gilman, clube onde começaram a dar cartas, situado em Berkeley, baniu-os de lá voltar. A “Maximumrocknroll”, magazine punk liderado pelo já falecido Tim Yohannon, rasgou-os de alto a baixo. Em entrevistas, os Green Day procuraram apagar o fogo, com Armstrong a declarar à “Spin” que “nunca na vida ergui a bandeira do punk”. O certo é que o rancor os tocou: “Havia muita gente, incluindo famosos, a apelidá-los de génios. Por outro lado, os antigos amigos deles odiavam-nos. Julgo que isso quase os destruir”, afirma Livermore em “Sellout”.
Logo por aqui se entende que não é preciso ser-se membro do Partido Republicano para odiar os Green Day; a banda já está habituada a isso há muito. Mesmo artistas que veneravam viraram-lhes as costas: Steve Diggle, guitarrista dos Buzzcocks, influência não só para os Green Day como para todo o pop/punk, disse que os norte-americanos não passavam de “uma versão menor do original”. O sempre ácido John Lydon, dos Sex Pistols, afirmou que os Green Day o faziam rir: “São como cabides, uma versão inchada de algo que não lhes pertence”.
Foi preciso chegar a 2004 para que “American Idiot” agitasse as águas e levasse muitos a olhar para os Green Day de outra forma. Desde os Rage Against the Machine que ninguém virava um espelho contra os Estados Unidos, ninguém escondia uma pedra numa mão destinada à cabeça de um fascismo galopante. Lançado quando o 11 de setembro ainda era uma memória muito viva, e a Guerra do Iraque mal tinha entrado na fase de rescaldo, “American Idiot” apresentou a personagem de um Jesus suburbano, figura de uma “ópera punk” que traduzia os sentimentos de uma geração acabada de crescer e que tinha, à sua frente, um futuro nulo.
Hoje, “American Idiot” é visto por muitos como um dos melhores álbuns de sempre, tendo vendido mais de 16 milhões de cópias por todo o mundo. Só não conseguiu aquilo a que se propunha: impedir a reeleição de George W. Bush. “Queremos tornar o mundo um pouco mais são”, afirmou à altura o baterista Tré Cool. “Estamos a chegar a um ponto semelhante ao '1984' do George Orwell: há dois ou três conglomerados a controlar tudo”. Sim, houve um tempo em que citar o “1984” não era um exclusivo do neoliberalismo...
Não o conseguiu, mas tornou-se numa espécie de hino para a oposição, ainda para mais na ressaca da (ausência de) resposta governamental aos estragos provocados pelo furacão Katrina. Mesmo no que à música diz respeito, provou a vitalidade do rock n' roll; na “Kerrang!”, Ian Winwood afirmou que “American Idiot” trouxe o género de volta ao mainstream, então já dominado pela pop alienante e pelo hip-hop menos consciente. “American Idiot” encontraria o seu sucessor em “21st Century Breakdown”, editado cinco anos depois, mas sem metade do impacto. O que não quer dizer que os Green Day tenham deixado a política para trás; continuam a usá-la nos versos, nos riffs, na bateria.
É disso exemplo “Saviors”, o seu novo álbum agora lançado. A brincadeira no “Dick Clark's New Year's Rockin' Eve”, e subsequentes críticas, levaram muitos a olhar para este disco com outros olhos; os média adoram uma boa polémica, facto, e “Saviors” obteve mais atenção do que teria se fosse apenas “o primeiro álbum dos Green Day em quatro anos”. “Podemos troçar de um tipo rico, de meia-idade, que está no 'Corredor da Fama' do Rock, mas é impressionante que Armstrong ainda tenha a capacidade de irritar pessoas por ter alterado uma simples palavra”, escreveu Brady Gerber na “Vulture”.
Para o ouvinte médio dos Green Day, “Saviors” talvez seja a salvação – um disco sem grandes receios de soar a Green Day. Claro que quem escuta muitas outras coisas verá aqui pouco de interessante, entenderá que um bom álbum punk precisa de muito mais sujidade. Há um breakdown à Beatles em 'The American Dream Is Killing Me', talvez o mais direto título que Armstrong já deu a uma canção sua; há uma ode ao amor bissexual em 'Bobby Sox'; há 'Living in the 20's', cuja agressividade e velocidade parece querer capturar o zeitgeist atual.
Não há muito mais do que isso, mas Armstrong acredita que os Green Day fizeram um dos seus melhores álbuns. E um álbum necessário. Se “American Idiot” tinha como pano de fundo a tragédia de Nova Iorque, “Saviors” tem bem presente a invasão ao Capitólio, em 2021. “Estamos hoje divididos e polarizados”, explicou o vocalista e guitarrista à “Vulture”. “Tivemos uma insurreição. Há pessoas a viver na rua. Era mais fácil satirizar Bush porque não tínhamos redes sociais. Agora há multimilionários que preferem enviar um foguetão para o espaço que melhorar as infraestruturas que temos”.
A grande vitória de “Saviors”, mesmo que não constitua a salvação do que seja, é a sua oposição à ideia que se implementou nos mais variados circuitos (incluindo Portugal) de que o conservadorismo é punk. No fundo, é um álbum afasta-reaças, a quem parece destinado o hino à estupidez que é 'Look Ma, No Brains!': Don't know much about history / 'Cause I never learned how to read. Em “Nobody Likes You”, biografia dos Green Day escrita por Marc Spitz, Jesse Malin (que já colaborou com Armstrong) compara o grupo a Victor Lazlo, personagem de Paul Henreid em “Casablanca”: “Ele diz assim [a Rick Blaine, interpretado por Humphrey Bogart]: 'bem-vindo de volta à luta, desta vez tenho a certeza de que venceremos [o fascismo]'. É isso que sinto. Com os Green Day ao nosso lado, estamos bem”. O cinismo leva-nos a revirar os olhos, mas a verdade é que precisamos de todos os aliados que conseguirmos.
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