"Nesta noite branca, sou um boneco de neve, e tenho a certeza [de] que vou derreter quando os teus lábios tocarem os meus". A cantiga é dos Anjos, talvez um dos maiores nomes da pop nacional na viragem do milénio. E pode ficar aqui como premissa. Neste filme, pejado de neve e noites brancas, há um boneco de neve. Também derrete, porque é isso que a neve faz, mas em vez de se encarreirar nas baladas românticas natalícias, este prefere ser o marco sinistro de um assassino em série.
É certo que deixar um boneco de neve como assinatura de um crime talvez não seja a melhor ideia. Há diversas implicações: primeiro, porque são fofos, depois porque derretem. Mas imagine-se andar na rua e encontrar um homem crescido a construir, no meio da noite, sem crianças por perto, um alegre boneco de neve, completo com cachecol e boca feita de grãos de café, com uns galhos a fazer as vezes de braços levantados no ar.
É ele, porém, o ponto de partida: alguém anda a matar mulheres jovens da Noruega. Nasce assim o mais recente trabalho de um conhecido lisboeta. Madonna não tem parte na banda sonora, mas Michael Fassbender, rapaz de Alfama, faz de polícia alcoólico com problemas emocionais.
Podia ser cliché. Sim, faz sentido que o fosse, é-o em certa medida, porém, o desenrolar do novelo (que, contudo, tem nós irrecuperáveis) mostra-nos que esta é uma daquelas narrativas em que os clichés se inspiram. E por isso vale a pena, se olharmos para o filme como um exercício em que o espetador é convidado a tapar os buracos do enredo.
Não há cenas de perseguição alucinante. Afinal, estamos na Noruega, na civilizada Europa. O assassino faz-se deslocar num monovolume. Um Volvo vermelho dificilmente será o primeiro suspeito, a não ser que estejamos à procura de reformados.
A proposta é simples: quando uma equipa de elite de combate ao crime em Oslo, liderada pelo detetive Harry Hole (Michael Fassbender), investiga o desaparecimento de uma mãe, após o primeiro nevão do inverno, surge o medo de que um elusivo assassino em série esteja de novo no ativo. Ao lado, Hole terá uma jovem investigadora vinda de Bergen (interpretada por Rebecca Ferguson, que conhecemos de “Missão Impossível: Nação Secreta”).
Investigadora que traz objetivos muito próprios para a investigação. Objetivos que, - spoiler alert - porém, não vamos perceber, porque o filme acaba antes de nos esclarecer sobre as três narrativas que lança e de cujas pontas não mais se abeira.
“O Boneco de Neve” baseia-se no livro homónimo de Jo Nesbø, autor norueguês. O livro chegou ao topo da lista de livros mais lidos do jornal ‘New York Times’, nos Estados Unidos, mas também marcou o primeiro número um de Nesbø no Reino Unido (por cá, está editado pela Dom Quixote).
Mas O Boneco de Neve de Nesbø é apenas o sétimo livro da série com o inspetor Harry Hole, que quer ser para Oslo o que Sherlock Holmes é para Londres. Porém, um boneco de neve, como um monovolume, é capaz de meter tanto medo quanto as instruções de montagem de mobília do IKEA (não fosse o realizador sueco e já não dava para fazer a tentativa de piada).
O sueco Tomas Alfredson, em 2008, quando o mundo estava subjugado à líbido vampiresca do mundo de Crepúsculo, apresentou um delicioso pequeno filme independente sobre as referidas criaturas mitológicas: de seu nome "Let The Right One In" (ou Låt den rätte komma in para quem sabe ler sueco). Surge agora à cabeça deste filme, que inicialmente era apontado como tendo Scorcese a realizar.
A banda sonora de Marco Beltrami (nomeado para os óscares por composições para “O Comboio das Três e Dez” e “Estado de Guerra”) ajuda a coligir as cenas com um tom sombrio que, aliado a alguns planos macabros e paisagens fantásticas da Escandinávia, nos lembram de que estamos a assistir a um thriller e não a uma sucessão de cenas desconformes, analepses (flashback) para um Val Kilmer a fazer de americano que faz de polícia alcoolizado norueguês, e um concurso para ser anfitrião de um imaginado campeonato mundial de desportos de inverno.
São cenas desconformes porque inacabadas. Quem o diz é o próprio realizador, que, face às críticas de que o filme tem sido alvo, explicou-se na televisão norueguesa. Diz Alfredson que não teve tempo para filmar tudo o que queria, coisa de que se apercebeu quando estava na sala de montagem.
E isso nota-se. É o que têm dito os críticos e é o que se vê na sala de cinema. Há histórias que se abrem e nunca chegam a fechar; há histórias que fecham e nunca as vimos abrir. A dada altura, temos a sensação de que estamos a assistir, a espaços, a dois filmes diferentes, que se intervalam e ligam na cama de um quarto de hotel em Oslo - não exatamente da maneira esperada pela descrição, porém.
Não se pense, porém, que estamos aqui só para dizer mal do filme. Pelo contrário. É uma promessa de drama interessante, empolgante até. Todavia, falta-lhe qualquer coisa. Alfredson diz que lhe faltou gravar 10 a 15% das cenas. A sensação que dá é a de ter montado um boneco de neve de corpo catita, só não lhe pôs foi a cabeça.
O filme estreia esta quinta-feira (19/10) nas salas portuguesas.
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