Com argumento de Pedro Lopes e realizada por Tiago Guedes, "Glória" é a primeira produção portuguesa original para a gigante do streaming. Numa coprodução da SPi e da RTP, a série de dez episódios chega esta sexta-feira a mais de 190 países.
Estamos em 1968, auge da Guerra Fria. A vila de Glória do Ribatejo, em Salvaterra de Magos, é o centro da ação. Construída durante o Estado Novo, foi na localidade ribatejana, numa propriedade isolada a cerca de 80 km de Lisboa, que durante décadas (1951-1999) funcionou a Rádio Europa Livre, um centro de transmissões controlado pelos Estados Unidos, com mais de duzentos hectares e onde trabalharam centenas de pessoas.
Era através da RARET —"ra" de rádio e "ret" de transmissão — que era emitida propaganda ocidental para o bloco de leste. Uma realidade desconhecida para muitos. Não só hoje, como à época.
“Quando falava disso às pessoas, ninguém conhecia”, conta Pedro Lopes ao SAPO24. “Como é que se conseguiu esconder ao país inteiro a existência daquele centro transmissor?", questiona-se. Isso "mostra bem como é que o regime funcionava: é melhor não falar, é melhor não saber, não me quero envolver”.
Quem nunca o escondeu foi o avô, que fazia parte da Emissora Nacional, e lhe contava histórias “e curiosidades da rádio” desse tempo.
Para o argumentista, um dos criadores da série da RTP Auga Seca (a primeira a fazer parte do catálogo da HBO Portugal) e autor de inúmeras novelas, a RARET "mostra bem a importância que a rádio teve numa guerra que não tinha uma frente concreta, mas que se fazia através da informação e da contrainformação”. No passado, como hoje, diz, "a informação é poder". O que faz com que uma "história profundamente local" seja "profundamente universal".
“Glória" passa-se entre “um Portugal rural, o da Glória do Ribatejo, e um Portugal cosmopolita, Lisboa, onde estava o centro de decisão e o do poder”. Mas também num “terceiro país, uma cidade completamente americana, construída pela CIA e que mostra bem o que foi a Guerra Fria”.
A série portuguesa é um 'thriller' político de ação, "se se quiser criar um título grande" para ela, e Pedro Lopes garante que irá "agarrar o público".
Apesar de ter um “pano de fundo histórico”, "Glória" é "completamente ficcionada”. Não há factos baseados em agentes da CIA ou do KGB a operar no Portugal dos anos 60 e onde o autor se possa ter inspirado. Não existiu um João Vidal, nem uma Mia, personagens interpretadas por Miguel Nunes e Victoria Guerra.
Com um vasto elenco, nacional e internacional, a eles juntam-se Afonso Pimentel, Adriano Luz, Carolina Amaral, Joana Ribeiro, Albano Jerónimo, Marcelo Urgeghe, Rafael Morais, Leonor Silveira, Matt Rippy, Stephanie Vogt, Jimmy Taenaka, Ana Neborac, Tiago Rodrigues (que abre a série), entre outros.
João Vidal, o protagonista, é filho de um alto dirigente do Estado Novo. Em Angola, desperta para a política e acaba recrutado pelo KGB.
"O João é um homem que toma consciência que veio de um meio bastante privilegiado e percebe que não tem uma posição muito justa na sociedade", desvenda Miguel Nunes.
"O pai foi diretor da PIDE, pertence ao regime salazarista... E [o João] acaba por usar esse percurso familiar para subverter a sua história individual, mas também para perceber como é que pode participar coletivamente numa mudança", acrescenta o ator.
A personagem levou Miguel Nunes a querer "perceber melhor o contexto político que vivíamos à época" e a procurar saber mais sobre "algumas pessoas que lutaram contra o regime e que foram importantes" nessa mudança.
Já Victoria Guerra interpreta o papel de Mia, uma enigmática (e desaparecida) espia do KGB. "É uma mulher misteriosa, muito inteligente e movida por motivos ideológicos. Vai atravessar a história... se contar vou estragar a experiência ao público. Não posso mesmo revelar mais", conta a atriz, que teve de aprender russo para a personagem.
"Decidimos que podia ser interessante ela falar russo numa das cenas. Trabalhei com uma professora fantástica, é bom porque a língua dá outra camada à personagem", deixou escapar. Qualquer detalhe roubado aos atores é uma vitória, o secretismo imperou em tudo o que esteve associado ao lançamento da série.
Sem mais pormenores da personagem, a atriz destaca um lado mais educativo da série. "É importante que o público português se identifique e que o público internacional descubra um pouco mais da histórica e da cultura portuguesa nesta época. Claro que queremos contar boas histórias, mas também educar e lembrar", diz-nos.
Da Netflix, com liberdade. E investimento
Da Netflix veio investimento, mas também total liberdade. “Desde o momento em que apresentámos o projecto que sentimos o entusiasmo. Deram-nos carta branca, liberdade completa".
"O acompanhamento foi sempre muito motivador, deram-nos a confiança para fazer a série em que acreditávamos. Lembro-me perfeitamente do que foi dito logo no picth: 'escreve aquilo em que acreditas'. E foi isso que eu e a minha equipa fizemos. Contámos a história da maneira que queríamos contar. Não há outra forma de fazer as coisas”.
Além da Netflix, a série irá ainda estrear-se na RTP, embora não tenha sido ainda revelada data. E uma segunda temporada, está nos planos? "Se acontecer, fantástico. Neste momento, não é o nosso foco", atira Pedro Lopes, reservando o entusiasmo para a estreia.
"Glória" é a série com o maior orçamento de sempre na história da produção nacional, mas o autor não revela o montante financeiro envolvido.
"Números não podemos dar. Mas houve um grande investimento na indústria do audiovisual em Portugal e um acreditar na nossa capacidade de fazer uma série que seja internacionalmente apelativa, ao mesmo tempo que traz para o público português uma história que não era possível contar por não haver os meios".
"Esperamos que seja a primeira de muitas, e que a nossa indústria possa crescer", acrescenta Pedro Lopes.
O autor acredita que séries como "Glória" se inserem num movimento que coloca "a ficção das periferias" nos mercados globais. "É interessante como não tínhamos contacto com a ficção de alguns países e, de repente, habitámo-nos às caras e ao idioma desses atores", diz sem referir nenhum produto em específico (mas "Squid Game", a serie sul-coreana, é um bom exemplo recente).
Já Tiago Guedes, que, depois de "A Herdade", "quis o destino" que voltasse a filmar em paisagens ribatejanas, fala em "sentido de responsabilidade" para a produção televisiva nacional, e acrescenta que "inevitavelmente" haverá um antes e depois de "Glória".
"Os nossos atores já começam a ser descobertos e a ter oportunidades para trabalhar fora, mas acho que temos equipas artísticas que também podem perfeitamente fazer esse trajecto", diz o realizador.
Em "Glória" não houve quaisquer gravações em estúdio. O Centro Emissor de Onda Curta em Pegões, no Montijo, foi o local escolhido para a RARET ficcional, quando não foi possível filmar no local.
"Para conseguirmos recriar todo o universo que era pretendido foi mesmo muito importante estar nos locais reais. Gosto de filmar em locais reais, gosto do desafio e da verdade que vem com isso".
"Para mim era muito importante ter um misto da arquitetura americana com a portuguesa", conta. Mesmo que a primeira visita ao aldeamento, "o coração da RARET", tenha sido "bastante desmotivadora para todos", dado o elevado estado de deterioração das casas".
"Já alguma vez assinaste um non disclosure agreement?"
Bruno Pernadas assina a música original da série. O convite partiu do realizador Tiago Guedes e do diretor musical António Porém Pires (que já tinham trabalhado juntos em "Tristeza e Alegria na Vida das Girafas", 2019).
"'Já alguma vez assinaste um NDA, um non disclosure agreement'?, perguntaram-me. E eu disse que não. Mais tarde a produção ligou-me a explicar os detalhes e o que procuravam para a série. Foi um processo longo até chegar à sonoridade em que todos estivéssemos de acordo", conta o músico português.
Bruno Pernadas, guitarrista, compositor, produtor, arranjador e professor, com formação em jazz, já passou por Minta and The Brook Trout, e tem o nome ligado a Suzie's Velvet, The Sun Ra Project e Montanhas Azuis, com Norberto Lobo e Marco Franco.
"Glória" foi a sua primeira criação artística para série, um processo, diz, que respeita regras diferentes de criar para cinema. Ao todo, o músico português criou mais de 70 peças, "algumas para ensemble de orquestra, outras com mais elementos eletrónicos". Todas elas "servem a imagem".
O ambiente dos anos 60 ajudou-o bastante, indo ao encontro de um universo "noir e dos filmes de espionagem antigos" que conhece bem. A experiência é para repetir, venha o convite.
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