O romance Órfãos de Brooklyn, de Jonathan Lethem, chegou às livrarias mesmo antes do virar do milénio, em 1999. E, segundo se escreve, assim que os olhos de Edward Norton se bateram com as suas 360 páginas, urgiu neste a vontade de adaptá-lo à tela e levá-lo à sala escura. Só que, em 2004, embora já tivesse escrito metade do guião, colocou-o na gaveta porque não conseguia avançar na sua construção. Teve um bloqueio criativo. Ou seja, entre ser um homem verde turbinado a raios gama (O Incrível Hulk, 2008) ou participar no filme sobre um homem-pássaro dum conceituado realizador mexicano (Birdman, 2014), foi necessário esperar mais 15 anos para que, finalmente, Norton conseguisse apresentar o seu projeto-paixão no Festival Internacional de Cinema de Toronto (TIFF).
Primeiro, o tronco comum da história. E se é comum, roubemos, então, com a maior delicadeza possível, um bocadinho da sinopse do romance (em Portugal editado pela Lua de Papel):
Viver na cabeça de Lionel Essrog não é fácil. Ele sofre da síndrome de Tourette, não controla as palavras. Quando se enerva saem-lhe frases sem sentido, palavrões, berros. Ou então toca repetidamente nas pessoas, conhecidas ou não. Órfão desde pequeno, viveu num lar para crianças abandonadas, até ao dia em que um gangster de Brooklyn, Frank Minna, o foi buscar - e a mais três rapazes.
Assim foi no livro, assim o é mais ou menos no filme. Porque neste último, há algumas nuances: o nome da doença, a síndrome de Tourette, nunca é mencionado. E há uma razão para isso: é que no livro, a ação decorre na década de 90, mas está escrito ao estilo de um thriller policial dos anos 50. No filme, Norton leva efetivamente a ação para a década de 50 em Nova Iorque. Quer isto dizer que Lionel Essrog sofre de uma doença que ainda não tem nome, mas que descreve como se "uma pedaço do meu cérebro se tivesse separado e ganhasse vida própria". A doença faz com que tenha tiques de pescoço, manias e toque nas pessoas duma maneira pouco confortável. Confuso? "É como se tivesse a viver com um anarquista", explica o Lionel narrador.
Agora, de volta só ao filme.
Lionel (Edward Norton) tem uma memória afinada. O homem tem um cérebro que funciona como um autêntico gravador: se lhe é dito qualquer coisa, ele decora e desbobina praticamente sílaba a sílaba o discurso e ação. Uma espécie de memória fotográfica adaptada para o discurso, portanto. Porém, dentro da normalidade que é a anormalidade da sua rotina, o seu mentor/patrão/figura paterna, Frank Minna (Bruce Willis), é assassinado. É então que Lionel, munido apenas com meia dúzia de pistas e da sua mente obsessiva, tenta desvendar quem poderá estar por detrás da morte da única pessoa que o aceitou tal como era. Contudo, acabou por cair na teia montada por Mo (Alec Baldwin) — supostamente um mero comissário de parques urbanísticos —, que está a controlar a cidade e todos os trabalhos da área da construção.
O produto final é um filme noir da era moderna, mas ao estilo de Chinatown (1974) — o que é a mesma coisa que dizer que se trata duma fita que os grandes estúdios já não tendem a fazer. Pelo menos, nestes moldes que Edward Norton quis para o seu projeto de estimação. Porque a história começa com uma procura obsessiva pelo responsável de um assassinato, mas acaba por abrir uma caixa da pandora da corrupção e injustiça (racial) nos bairros sociais. Ou seja, Norton quis fazer o mesmo em Nova Iorque que o filme de Polanski fez em Los Angeles. (Todavia, diga-se, sem qualquer rodeio, que ser muito bom ator, ter muita vontade e paixão não faz com que o resultado final seja o mesmo. Porque não joga na mesma liga.)
Órfãos de Brooklyn é também um daqueles filmes em que o espectador parece conhecer quase todo o elenco e em que nenhuma cara é estranha. Seja duma série ou filme, seja simplesmente devido a um daqueles casos em "sei quem é, mas não me recordo de onde", Norton conseguiu fazer uma reunião de estrelas. Alec Baldwin, Bruce Willis, Willem Dafoe, Bobby Cannavale, Gugu Mbatha-Raw (a britânica faz o papel da única pessoa que não vê problemas no seu problema), Cherry Jones ou Leslie Mann. O problema, porém, prende-se no que fazer com elas. Umas estão em modo acessório (Bobby Cannavale) e aparecem demasiado, outros brilham (Mann) com o pouco que têm de cena.
Órfãos de Brooklyn é longo. O que pode ser bom ou mau. Vai depender sempre do pretexto ou gosto de quem vê. Mas a realidade é que o guião quer chegar a todo lado; parece ter medo que a audiência faça o jogo da adivinha. Tanto assim que ao fim da primeira hora e pouco dá a sensação de que estamos perante uma adenda à doença e às obscuridades que assolam a mente de alguém que, para todos os efeitos, já se percebeu, só quer fazer o correto. Este mergulho no profundo das suas idiossincrasias é só demasiado. Às vezes as coisas são apenas como são e não é preciso exacerbar. E não é necessária uma guerra entre narrador e imagem para fazer o caminho da redenção do desajeitado que virou paladino.
A ação contém momentos de tensão, mas não são tão tensos assim que façam eriçar o pelo do braço. Porque apesar de ocorrer um crime e estar em curso uma investigação, não existem cenas de ação bem encenadas à boleia de uma montagem cujo o propósito é claramente fazer palpitar a audiência com um bruá geral. E o mesmo se pode dizer do ator principal.
Em A Raiz do Medo (1996), Norton consegue uma das interpretações da carreira ao dar vida a um jovem com Perturbação Dissociativa de Identidade. Já n'Os Órfãos de Brooklyn, será injusto ou até quase impossível dizer que não está em muitíssimo bom porto, mas parece que não consegue transmitir a mesma tonalidade crua e dura. E fica difícil ver um sem recordar o outro.
No entanto, é um filme em que história carrega forte em torno das personagens, que explora complexos problemas sociais e que coloca inúmeras questões. É um drama passado nos anos 50, mas não deixa de ser moderno. É vintage, mas contemporâneo. Só que a narrativa peca por não tentar fugir ao clássico do detetive solitário contra o sistema.
Foi difícil não sair do visionamento do filme com a sensação de que faltou alguma coisa apesar da duração (144 minutos). A ambição, paixão e o atrevimento de quem está totalmente embrenhado no projeto é altamente palpável. A câmara está no sítio, a minúcia com que a recriação da Nova Iorque foi levada a cabo ajuda a que a belíssima fotografia de Dick Pope nos faça viajar no tempo — porque é um filme bonito de se olhar e tudo contribui para isso: o guarda-roupa, os carros, os cenários, até ao ambiente e às lutas sociais. E, jazz. Muito jazz de Harlem. A banda sonora, aliás, é um dos pontos fortes do filme. (Há Tom Yorke e muito trompete à la Miles Davis). Mas tudo isto parece perder-se no desenrolar de uma história que tinha tudo para ser mais do que foi. E seria mais se fosse menos.
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