“Numa versão da história, existem dois lados. E depois há uma terceira versão. Aquela que Deus sabe”. O início de conversa com Shahid Merali roda à volta do número três. Um diálogo que se alonga sem olhar à espiritualidade do dito, seja à Santíssima Trindade para os cristãos (Pai, Filho e Espírito Santo) ou ao tridente de Deuses hindus, Brahma, Vishnu e Shiva, ou sem atentar à representação do ciclo da vida (nascimento, vida e morte), aos três Reis Magos ou mesmo à simbologia de culto maçónico.
Shahid fala de algo mais do que uma figura geométrica. Discorre sobre os três lados de um triângulo, configuração que resume o propósito do projeto de restauração que criou em finais de 2019 e que tem por base a chamuça.
A troca de palavras sobre a massa frita e enrolada com recheio é feita pela voz de quem trocou quase 20 anos dedicados às tecnologias de informação e está hoje por detrás da “A Chamuçaria”, um conceito inovador de venda de chamuças coloridas que abriu em julho, em Telheiras, Lisboa.
Já lá vamos. Primeiro, um esclarecimento. “Ao contrário do que 99% da população acredita, a história da chamuça não é originária da Índia, mas sim do médio oriente, na zona persa. Era feita com carne e torna-se famosa. Entra em Portugal, no tempo dos Descobrimentos. Trazem-na de Goa e, posteriormente entra em Moçambique”, atesta.
Os três lados de um triângulo multicolor e comestível
“O triângulo tem três lados e a chamuça é um triângulo” descreve, antes de explicar porque diferem estas de muitas outras que se vendem em cafés ou restaurantes.
Desde logo, porque não são monocromáticas. Apresentam um leque de sabores colorido e alargado. “Numa fase anterior, comecei por ter duas cores, vermelha, para picantes, e verde, para a de vegetais. Agora, temos um arco-íris de nove cores. Porquê nove? Ter múltiplos de três, era o objetivo”, esclarece. Os tais três lados do triângulo.
“As nossas avós colocavam cravinho para diferenciar a de vegetais. Mas essa especiaria dá um sabor forte. Por isso, decidi fazer as cores para diferenciar o recheio”, explica. “São corantes naturais, se não iria adulterar o sabor. Fizemos vários testes e várias pesquisas a corantes vindos de plantas”, uma garantia dada por Shahid Merali.
Os sabores são outro dos fatores diferenciadores. “Criámos três de carne (frango, frango picante e cabrito), três de mar (lulas e choco, peixe e camarão) e três vegetarianas (batata, vegetais e lentilhas amarelas)”, explica o criador daquela que se afirma como a primeira chamuçaria em Portugal.
Nas contas entram igualmente três molhos. Leite de coco, caril e lentilhas. E três acompanhamentos. Arroz basmati, um mix de batata, chips e batata-doce e mandicoa ou salada.
A razão da diversidade explica-se pelo fim a que se propõe. Porque, ao contrário do que seria de prever, Shahid quer que a chamuça vá muito além de um simples aperitivo.
“É olhada como petisco e não como prato principal. Se o pastel de bacalhau com arroz é um prato principal, por exemplo, porque não pegar na chamuça, que na realidade é um recheio de uma proteína, e termos uma refeição? E ter esses sabores todos, dá para todo o tipo de gostos, logo é muito difícil não gostar de um que seja”.
O SAPO24 foi convidado a provar não uma, não duas, nem três, mas sim, as nove. Da mais picante (frango picante, um best-seller) à que lhe caiu nas graças, a de camarão, um caleidoscópio de cores e sabores que lhe entrou pela boca, tudo regado a água bem gelada.
Uma gota de suor ameaçou escorrer no rosto quando se apontou para o picante, colocado à nossa frente. Algo que, felizmente, não sucedeu. Na memória, temos anteriores experiências de comida indiana que à pergunta de se “é picante”, a resposta surge sempre negativa na ponta da língua de quem serve, algo que as nossas papilas gustativas teimam em contrariar, e as tais gotas que pingam cara abaixo, a confirmar. Em especial se abusarmos do picante, por desconhecimento ou pura demonstração de virilidade.
Entre a democratização de sabores e o respeito pelo tradicional picante
“Na Índia, a tradicional é de batata”, recorda. “A comida indiana é picante e não é democrática, por isso, decidimos criar um conceito que desse para todos, que qualquer ocidental coma diariamente”, assevera.
O “decidimos” engloba a intervenção de três gerações da mesma família que se espalha por três países. “Os meus avós nasceram na Índia, os meus pais em Moçambique, e eu que já nasci em Portugal. Três países e três gerações de receitas”, anota.
As avós, Dolat e Julhana inspiraram Rosy Daia, a mãe, que veste a pele de chef. “Tudo o que é tradicional, é a minha mãe que faz. O fora da caixa, é criação minha. O recheio e as cores”, diz o primeiro elemento do clã a dedicar-se à restauração, uma aventura iniciada anteriormente com o Dinner Time Story, um conceito internacional de viagem gastronómica cruzado com a marca Le Petit Chef e que funcionava em modo restaurante pop-up “até à Covid-19”.
Nessa busca da democratização de sabores (de notar que na carne, não entra nem porco nem vaca, por respeito a algumas religiões) e fusão entre oriente e ocidente, Shahid dá-nos a provar a chamuça de peixe, para exemplificar. “O peixe frito é um prato típico indiano que acompanha com batatas às rodelas, ou arroz, e molho de especiarias. A ideia foi pegar naquele prato e tentar o formato de chamuça e recriá-lo de outra forma. A tal fusão”, sublinha.
Em relação aos picantes, são todos caseiros. Nova ameaça de suor (frio) ao escutar a palavra. “Uma prima minha tem uma fábrica e temos uma parceria. Temos o picante vermelho, o verde e o limão e manga (mais fraco)”, adianta.
No que toca ao líquido que serve para aprimorar sabores, deixa uma dica. “Devem colocar gotas de limão em cima. Duas ou três. O citrino intensifica o sabor”, indica.
No prato ou no pão, tal qual um croissant de queijo ao pequeno-almoço
Nada é industrializado. Tudo o que sai da “A Chamuçaria” é feito com ingredientes naturais: a massa é caseira, recheada e dobrada à mão.
Na onda doméstica, aponta para um aperitivo que não sabe ao certo o nome específico que lhe atribuem. “Apelidamos de curcúria. São as sobras da massa da chamuça, as aparas. Os nossos avós aproveitavam, deitavam sal e especiarias. Só as vê em casa das pessoas que fazem chamuças em casa”, atesta.
Shahid Merali diz que o indiano olha para a chamuça “como o pão com manteiga antes da refeição”. No restaurante, que funciona também como take-away, e serve ainda outros pratos indianos, apresenta-se no menu no prato e no pão.
“No pão?”, poderá questionar o comum dos ocidentais. “Desde jovem que como no pão. Gosto da que sobra do dia anterior e como ao pequeno-almoço com café, pão fresco, manteiga e picante”, confidencia. “É o croissant com queijo. Uma sandwich em que saboreamos recheio crocante”, frisa. “Quero uma sandwich rápida, porque não a chamuça (são duas) no pão de bola rústica”, questiona sobre esta variante de um salgado que se come, por norma, à mão.
Três doces para rematar
Sentados numa mesa redonda, localizada à entrada, onde se concretiza a partilha, damos por terminado a experiência dos nove triângulos, todos eles salgados.
Pensávamos ir diretos para o café. Puro engano. Fomos surpreendidos com chamuças ... doces. Em número de três.
Uma esconde tarte de maçã, outra revela um creme do chef e, por fim, a que cruza o chocolate negro com o picante. “É um crepe invertido. Chocolate por dentro e bola gelado de fora. Picante (sempre ele) sente-se no fim e não no momento que se come”, garante.
Deixamos, à consideração do palato de cada um, esta viagem pela inovação de um produto milenar que tem epicentro no bairro residencial de Lisboa e que se prepara para expandir.
Shahid Merali quer fazer desta especialidade um prato global, como o bacalhau ou a pizza, que diz já não ser só italiana. “Queremos crescer. Não queremos estar em cada canto, mas sim escalar com qualidade”, refere.
Um crescimento que acredita, responderá à procura. “Nunca se come só uma chamuça. Pedimos sempre duas, ou três”, finaliza.
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