Até acalma. Devagar, ao passo que permite o músculo cansado, Maria Helena, 63 anos, agarra no bisturi e corta o papel. Na mesa atrás, em minucioso traço vermelho, Maria do Carmo, 74, desenha na folha branca uma tapeçaria. Também umas flores. Pela janela o sol, ao fundo a ponte e o Tejo.
Numa primavera tropical, Alcântara, na zona ocidental de Lisboa, enche-se de sol, mas também de nuvens. Na LX Factory, um velho parque industrial renascido, um grupo de idosos lisboetas aprende um novo ofício. No quarto piso daquilo que em 1846 começou por ser a Companhia de Fiação e Tecidos Lisbonense, há aulas de graffiti. Idosos que aprendem a desenhar, também a cortar e preparar o ‘stencil’ para marcar nas paredes o que lhes vai na cabeça.
Pintar uma parede no meio da rua é uma expressão. Um grito silencioso, feito no escuro noturno, na irreverência ou na necessidade de marcar a pigmento o nome. Chamam-lhe ‘tag’ (assinatura) e é isso mesmo, uma etiqueta que anuncia: "Por este lugar passou fulano de tal”.
Estes mais velhos, que juntos mais de muitas centenas de anos passaram por esta Lisboa e por esta terra, decidem agora que nome hão de dizer ao mundo, numa parede de um parque industrial, o deles. “O nome também é a nossa pessoa”, escreve Vergílio Ferreira. E se o nome se eternizar no cimento, também se eterniza a pessoa?
Depois de pegar na lata, a experiência ganha naturalidade. O funcionamento de um banal aerossol não é desconhecido e, após breves lições do instrutor, o enorme painel branco começa a riscar-se de cor. Ajudados pelas fisioterapeutas e técnicas das associações, ou apoiados por outros companheiros da idade, chegam-se à parede, levantam-se das cadeiras de rodas e traçam a marca. “Por este lugar” — desenham com cuidado — “passou fulano de tal”.
As demências e desvios das mentes dalguns afastam-nos do mural. Ficam arredados, à sombra de chapéus de palha, a ver o crescer de traços, linhas esfumadas ou círculos carregados de tinta a escorrer que os outros mancham. “Bebam água”, grita uma técnica. O sol carrega forte; seca a tinta, mas também o corpo. As sombras realçam as rugas, as experiências de cada um. Vindos de onde vêm, de terras, saberes e ofícios distintos, encontram-se agora ali, num ‘vandalismo’ sénior (e autorizado).
Velhos são os trapos. Ou como desmontar ideias e preconceitos
Com uma madeixa cor-de-rosa a encimar o cabelo, tatuagem no braço, esta senhora é o alvo perfeito para o jornalista em busca do insólito. “Ora, eis uma avó fora do normal”, pensará o comum repórter. Certo será que incapazes todos são de definir o que é uma avó dentro do normal, se todas as avós, misto de personalidades próprias e efabulações dos respetivos netos, sempre são únicas e distintas.
Quem é, então, esta mulher de cabelo platina e rosa? De bicicleta tatuada no pulso? É Isabel. “Não sou diferente, não faço por ser diferente. Sou assim. Se acham que sou diferente, tudo bem.”
“Sou uma pessoa que gosta de estar ocupada. Não gosto de estar parada. Gosto de aprender coisas novas. As pessoas geralmente quando chegam a uma certa idade acomodam-se e eu não gosto de me acomodar”, atira.
“Custaram mais os pontos que me deram quando caí”, diz sobre a tatuagem de uma bicicleta, paixão desta lisboeta, que carrega no pulso. “Diz que é onde dói menos”, explica, enquanto ultima os detalhes de um molde para pintar uma réplica dessa mesma bicicleta.
Apesar de asmática, aos 65 anos é de bicicleta que vai para todo o lado. Quer dizer, todo o lado não: “quando uma pessoa sai à noite, custa muito ir beber copos e depois vir de bicicleta”, esclarece.
“Uma pessoa parar é a morte antecipada”. Daí que iniciativas como esta sejam importantes. O graffiti é uma estreia no currículo desta ex-educadora de infância que já passou pelo teatro, também pela música. Gosta da experiência, como gosta da arte urbana, desde que, lá está, arte. Há 'putos', conta, que fazem coisas que são um exagero. E por isso o ideal seria que a prática estivesse regulamentada.
Junta-se a um eventual grupo de avós que congemina forma de decorar as paredes perdidas da cidade. “Ainda falta aí uma colega nossa que acho que também achava graça. Era uma boa também para a dupla”, diz.
Anabela faz hoje 71 anos. É outra das voluntárias para o assalto ao círculo da arte urbana lisboeta. “Sempre achei bonito. Gosto. Desde que sejam com beleza. Isso de riscar paredes e portas…”, vai dizendo numa pausa entre os cortes no ‘stencil’. É uma técnica nova, embora já conhecesse outras.
“Já não somos crianças, não temos aquela destreza que um jovem tem. Mas se nos concentrarmos, se nos aperfeiçoarmos nisto, dá-nos muita autoestima”, explica. Recentemente viúva, Anabela encontrou na Loja da Avó, outro projeto de ocupação de tempos livres de quem mais tempo livre tem, um refúgio para as deambulações ansiosas. “Isto é uma terapia”.
“Quando passo nas Amoreiras, adoro ver aquele muro que vai para Campolide”. É que a arte urbana, explica Anabela, é uma expressão. Uma libertação de quem escolhe muro alheio, previamente combinado ou não, para gritar sossegadamente ao mundo. À parte a eventual libertação de gases CFC (presentes nos comuns aerossóis), que contribuem para o efeito de estufa, poucas mais maleitas virão ao mundo por escolherem os homens pintar paredes.
“Há pessoas muito revoltadas nesse aspeto, mas não vejo desse ponto. Vejo uma abertura para a pessoa que está ali”, indica. “Os prédios mais antigos ficam mais bonitos assim. Nos prédios mais novos não acho bem, mas nos antigos?”, acrescenta Helena, ao lado, enquanto procura no telefone uma fotografia de um desenho que fez.
Agora, é pegar numas latas, juntar quatro ou cinco avós e ir pela cidade fora marcar paredes. O Bairro Alto há de ser boa alternativa, ponderam. “E a polícia?”, pergunta uma delas, temendo que as pernas falhem numa fuga às autoridades. É pôr uma a vigiar enquanto as outras pintam, propõe o repórter. Poderá ser, admitem.
“No meu tempo não havia estas coisas”, lamenta Maria Helena, que insiste a desafiar as companheiras a um certo vandalismo noturno. “Com doze e treze anos já bordava”, isto é diferente, mas ainda arte. Há, porém, um ponto que todas sublinham: a arte urbana é-o pela qualidade. Tem de ser bem feita. Com gosto.
Maria do Carmo “ouve um bocado mal”, mas faz questão de sublinhar que é da terra do Nuno Álvares Pereira. Vinda de Cernache do Bonjardim, saiu do primeiro dia de aulas “com menos 20 quilos em cima”. “Adorei isto tudo”, atira, antes de enumerar agradecimentos. Esteve a desenhar uma renda de bilros da Nazaré. É difícil fazer o desenho? “É muito mais difícil fazê-las”, responde, enquanto recorta uma flor, que julga ser “ali para a menina”.
Não é para a menina, tampouco para o menino. É mesmo para a Maria do Carmo pintar, explica uma das técnicas que a acompanha. “Tudo bem”, responde, com nova luz no rosto. E para pintar, há que descer à rua. Destravem-se as cadeiras, agarrem-se as bengalas e ala até lá fora.
A descer pelas entranhas da LX Factory, as avós passam por alguns traços numa parede. Discutem a qualidade artística dos riscos e dos desenhos. “Isso?” — “Também é arte”, aponta uma. “Isso?!”, insiste a outra. Tudo é uma expressão, explicam. Há de haver um significado, dizem as apologistas das variadas ‘tags’. “Aquilo é um ‘A’”, decifram.
Velho génio ou génio velho? Miúdos autênticos
“Quando começamos a trabalhar na campanha do Genius: Picasso, uma das coisas que nos chamou a atenção foi o facto de ele ter pintado até depois dos 90 anos. Como sabemos, a questão da idade, da velhice, é um problema em Portugal. Hoje, há mais de 26 mil idosos a viver sozinhos, sendo que quatro mil desses idosos vivem isolados, sem família, sem amigos e alguns deles mesmo com poucos cuidados”. As palavras são de Hellington Vieira, diretor criativo da National Geographic em Portugal.
Foi desta premissa que nasceu a ideia de pôr idosos a pintar paredes. “Se depois dos 60, 70, podemos pintar, podemos escrever, podemos socializar, porque vamos estar isolados em casa?”, questiona Hellington.
“É um tema importante, especialmente em Portugal. Temos um canal, temos redes sociais, temos a revista”, meios que devem ser aproveitados para passar, “sobretudo aos mais novos”, a mensagem de que “os mais velhos têm muito para dizer, para contar, para viver e precisam dessa interação, precisam que os mais jovens voltem a ter o interesse de conhecer as histórias e conhecer os mais velhos, porque quando podem partilhar, sentem-se super valorizados”, afirma.
Para pôr isto em prática, foi preciso chamar Lara Seixo Rodrigues, do projeto Lata 65, um coletivo de arte urbana para idosos. O projeto começou em 2012 e já pôs mais de 400 pessoas de lata na mão, em Portugal e no estrangeiro.
O objetivo é, explica Lara, mostrar que os idosos, “uma faixa etária um bocadinho esquecida no nosso país e na Europa e a nível mundial”, não só “têm muito para ensinar”, como “muito para aprender”. Estando a trabalhar naquilo a que Lara chama “atividade de jovem”, os idosos têm “reações, atitudes e estados de espírito que são muito interessantes, rejuvenescem de forma muito rápida e eficaz”, afirma.
“A pessoa quando entra chega com uma autoestima um bocadinho em baixo”, porém, com os desafios propostos, seja aprender mais sobre a arte urbana e o graffiti, sobre o ‘tag’, como desenhar, cortar ou usar o x-ato, há uma mudança. “Os pequenos desafios transformam-nos um bocadinho, eles vêm que ‘okay, tenho 90 anos, mas consigo aprender algo novo’”, explica a monitora.
Depois das oito horas de estudo e preparação, “quando vão para a parede parecem miúdos autênticos”.
Vandalismo? O preconceito face ao que é a arte urbana é recorrente, diz Lara, sobretudo com os idosos que vêm de áreas urbanas, onde há mais ‘tags’ e “muita expressão menos interessante do que é o graffiti”, explica. Quando começam a mostrar os ‘tags’ aos alunos, “eles começam logo a torcer as caras e a dizer que não gostam”. Todavia, com o resto do trabalho, afirma Lara, os idosos “percebem que faz parte de uma evolução natural para aquilo a que chamamos hoje arte urbana, artistas a trabalhar na rua a diferentes escalas, e quando começam a trabalhar percebem todo o esforço que é necessário para fazer aquele trabalho”, sendo possível “desmistificar” e ajudá-los a “ter uma leitura da cidade diferente”.
Meter as mãos na lata
“Lá está, se depois não vierem correr atrás de mim com um pau” — antevê Anabela — “é um desafio”. “Qual das duas corre mais?”, pergunta Maria Helena, do outro lado da mesa. É ver. Ver e preparar. “Desde que não seja prejudicar ninguém, é um desafio”, repete Anabela.
Aqui, não há de ser preciso correr. O lugar está combinado, a parede alva brilha com o sol à espera da tinta. As latas, pousadas na terra, aguardam também quem lhes pegue. Antes do início da obra, as instruções finais. O objetivo é pintar a larga tela o mais possível. Enchê-la de cores. Primeiro, livremente. Depois, com os inúmeros moldes que passaram as últimas horas a recortar.
Primeira parte: agitar as tintas. Numa orquestra metálica, as esferas chocalham o interior das latas. Os braços agitam-se, acima e abaixo. Também à esquerda e à direita. Com vice-versas para despegar os nervos mais teimosos de cada braço.
O ruído vai atraindo turistas. Cedo, por trás das baias que reservam a zona VIP à beira da parede ainda branca, vai-se juntando assistência.
Segunda parte: riscar o mais possível. É chegado o momento. Dar força aos indicadores e deitar na parede a marca — abstrata ou concreta. É riscar, senhores, ordena Adrião Resende, que comanda a força. Logo a tropa grisalha se rodeia de nuvens de cor. Verde, vermelho, amarelo, azul, laranja. Também as misturas que a sobreposição de cada um dos tons origina. Mais juntos ou afastados do painel, mais carregados ou suaves os traços. Se muito longe, vem o vento e atira ao ar a tinta. Se muito perto, escorre ao chão.
A prática encontra o equilíbrio perfeito — mesmo se em cima de cadeiras, lá para chegar ao topo, que ainda está muito vazio, vão apontando.
Terceira parte: assinar. Fulano de tal, sicrano e beltrano aqui estiveram. Ou, na história de hoje, Anabela, Maria do Carmo, Helena, Isabel e os restantes vinte. Com mais ou menos prática, o grupo vai deixando na parede a confirmação da respetiva presença. “Estive aqui”, marca o ‘stencil’ com cada nome. A caligrafia, o próprio nome escolhido, são espelho de cada personalidade. Anabela, por exemplo, escolheu o nome do cão — Jadice —, outros decidiram como nome artístico frações do título oficial ou designações aleatórias.
Sobre isso de nomes, escreveu Saramago: “Conheces o nome que te deram, não conheces o nome que tens”. Talvez escrevendo-o numa parede venha auxílio à resposta. Certo é que a atividade desemperra os músculos cansados da memória, atacada pelo tempo, também por esses bichos venosos que desabam as lembranças.
Por isso — ou apesar disso — repetem a assinatura quantas vezes julguem necessária, com quantas cores acharem certo. Os que não estão capazes veem o nome escrito pelas técnicas ou fisioterapeutas. Não há nome que não seja tombado neste livro urbano da onomástica.
Quarta parte: admirar. Depois dos nomes, dos desenhos, do ‘stencil’, a obra compõe-se. Poderá ser que a uns não diga nada este esgrouviado monte de riscos e traços. Poderá ser que a outros seja vandalismo desgovernado. A estes homens e mulheres, que se afastam do quadro para ver o grande plano, é obra — e tudo aquilo que isso queira dizer.
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