Os poetas, sei-o, mentem em demasia, escreveu Heiner Müller no conforto do hotel Hessischer Hof. O poeta é um fingidor, exclamou décadas antes Fernando Pessoa, antes de sonhar com os descobrimentos. Mas há poetas e poetas; há aqueles que, alimentados pela raiva e pela indignação de quem sente que o Mundo tinha tudo para ser melhor para todos nós, não hesitam em contar a verdade, explicar as coisas exatamente como elas são. Há aqueles que à poesia juntam o som e tornam-se grandes. Tornam-se bardos.
É o caso de Patti Smith. Poetisa, punk, provocadora, a norte-americana foi igual a si mesma no Vodafone Paredes de Coura. Vemo-la em palco e o passado não parece ser algo assim tão distante. Lembramo-nos de que “Horses”, o álbum com o qual se estreou e começou a criar a sua própria mitologia (e quiçá um movimento: muitos veem aqui o início do punk), foi editado em 1975, muito antes de quem assina este texto ter nascido, assim como grande parte dos festivaleiros aqui presentes. Ninguém diria, tal é a genica de Patti Smith durante o seu espetáculo, tal é a sua voz, profunda, real.
O lado ativista de Smith ficou bem vincado em mais uma atuação em Portugal, tantas foram as vezes que apelou à liberdade, a mesma pela qual regeu sempre a sua vida. Não o poderia ser de outra forma. Sabemos ao que ela vem quando a primeira canção é 'People Have the Power', hino revolucionário editado em 1988, em colaboração com o seu ex-marido, Fred “Sonic” Smith, o motor dos lendários MC5. Por entre os versos, os apelos: ao voto, à voz, à ideia de que o controlo sobre o povo só existe se este assim o permitir. Não é por acaso que se vislumbraram, por entre a audiência, vários punhos esquerdos erguidos.
«Precisamos de unidade, e não de nacionalismo e isolamento», gritou, durante 'Redondo Beach'. Uma farpa óbvia ao crescimento da extrema-direita por todo o Mundo, e a Donald Trump – que mereceu pouco depois duras críticas por parte da poetisa, críticas essas recebidas com uma das ovações da noite. Pelo meio, mais uma versão (e o concerto de Patti Smith é composto, quase todo, por versões): 'Are You Experienced?', de Jimi Hendrix, completo com um solo de guitarra assombroso.
Da tensão presente em 'Beds Are Burning', tema dos Midnight Oil, passou-se à dança em comunhão de 'Dancing Barefoot', antes de a pungência de 'Beneath the Southern Cross', dedicada aos amigos entretanto falecidos, ter emocionado o anfiteatro natural de Paredes de Coura, e feito erguer muitas luzes em elegia. «Nós somos livres. Vamos mudar o Mundo. O futuro é agora», exclamou. O futuro é agora, e o passado poderá libertá-lo, educando-o.
Até final, ainda ouviríamos 'I'm Free', dos Rolling Stones, e 'Walk on the Wild Side', de Lou Reed, acopladas uma à outra, e já sem Patti em palco – deixou que a sua banda brilhasse durante alguns instantes. E observámos como Paredes de Coura pode ser um lugar de contemplação e concentração: o público, num quase silêncio, acolheu 'After the Gold Rush' (de Neil Young) e 'Pissing in a River' com o respeito religioso que estas merecem. 'Because the Night', dedicada a Fred Smith, e a inevitável 'Gloria', que já não é dos Them e sim sua, puseram um ponto final num concerto que, mais que competente, prometeu uma revolução que tarda em acontecer. O futuro tem mesmo que ser agora.
Enquanto não nos chegar esse “agora”, haja a força de vontade de Brett Anderson, vocalista dos Suede. Em palco, o britânico revela ser um verdadeiro animal: gesticula, corre de ponta a outra, desce até ao fosso para abraçar os seus fãs, chega inclusive a roubar o instrumento de trabalho de um dos cameramen ali presentes, apontando-o para o público e para si próprio. É um espetáculo dentro de um espetáculo que serviu, sobretudo, aos amantes da britpop – aquele pop/rock de travo inglês que seduziu milhares nos anos 90 pós-grunge.
A entrada, ao som de um piano melancólico, foi enganadora. De pronto, os Suede pegam nas guitarras e debitam clarão atrás de clarão, impulsionados pela atitude de Brett, que mesmo deitado no chão mostrou ter mais energia e sabedoria daquilo que deve ser um frontman que muitos artistas por esse planeta fora. Sentimos-lhe a dor em 'As One', a faixa de abertura, e uma pontada de amor no coração em 'The Wild Ones', a qual dedicou às filas da frente. Entre bons rasgos rock e momentos mais instrospetivos, naquele que foi o último concerto da noite, pensamos: porque é que não foram estrelas do seu próprio dia, neste festival? Porque é que tiveram de ficar à “sombra” de Patti Smith?
Na sombra poderia ter ficado Mitski, que veio ao Vodafone Paredes de Coura para apresentar “Be the Cowboy”, álbum editado em 2018 que deixou muita gente de boca aberta (sabe-se lá porquê), antes de fazer uma pausa na sua carreira musical para um merecido descanso. A norte-americana passou uma hora de concerto sem sequer esboçar um sorriso, munindo-se de uma mesa e de uma cadeira para efetuar as suas coreografias entre o bizarro e o pretensioso, ao passo que a banda ia debitando uma pop desenxabida que só terá agradado aos fãs mais acérrimos. Quem não conhecia, não deverá querer voltar a conhecer. Os Sensible Soccers, autores de algumas das melhores canções Made in Portugal desta década, conseguiram fazer abanar algumas ancas no palco secundário – há ali guitarra, há ali eletrónica, há ali a sabedoria cósmica de quem ouviu demasiado krautrock dos anos 70 –, mas o facto de estarem demasiado “colados” ao concerto de Patti Smith impediu uma apreciação digna. Já mereciam o palco principal.
Quem fez por merecê-lo foi Freddie Gibbs. O rapper norte-americano, acompanhado por Madlib (um dos mais respeitados produtores da história do hip-hop), mostrou estar no seu elemento: correu de um lado para o outro, desceu até aos fãs, e ainda fez suspirar mulheres e homens assim que tirou a t-shirt e mostrou o seu corpo tonificado, ao mesmo tempo que debitava rimas em modo furioso e por vezes impercetível. E foi dele o grito de guerra deste Vodafone Paredes de Coura: fuck police!, o qual não traduziremos por pudor. Gibbs veio representar o rap e o hip-hop e fê-lo com mestria, gerando confusão no moshpit, movimentos espasmódicos por entre o público e terminando com um abraço fraternal a Madlib. Só nos pareceu algo desenquadrado do demais cartaz: ponham-no num dia dedicado apenas à música negra e vão ver como ele morde.
O Vodafone Paredes de Coura regressa em 2020, e já há datas: de 19 a 22 de agosto.
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