A 19 de março de 1990, as máquinas que mantinham Andrew Wood vivo, três dias após ter sofrido uma sobredose de heroína, foram desligadas. A comunidade musical de Seattle, que até então passava ainda pela sua fase de maior inocência, entrou em estado de choque. De todo o lado chegavam condolências e lamentos pela perda daquela que era, à altura, uma estrela rock em franca ascensão, talhada para grandes feitos, ao leme dos Mother Love Bone. Mas se o sofrimento era comum, não era maior do que aquele sentido por Stone Gossard e Jeff Ament, dois dos maiores prioneiros do grunge, que após o fim dos Green River julgavam ter encontrado nos Mother Love Bone o seu bilhete para a fama.
O luto transformou-se em impasse. Gossard e Ament tinham que definir o seu futuro. Continuar com os Mother Love Bone, contratando um outro vocalista que pudesse preencher a vaga deixada pelo carismático e talentoso Andrew Wood? Ou colocar um ponto final na carreira da banda, sabendo que nunca ninguém lhe poderia chegar aos calcanhares? A opção foi a segunda; Wood era uma peça demasiado importante na Máquina Love Bone para que pudesse ser simplesmente substituída. Daí que, e apesar do contrato assinado com a editora PolyGram e do lançamento de “Apple” – o único LP produzido pelo grupo – guitarrista e baixista tenham preferido lamber as feridas e voltar ao zero.
«Não sabia o que fazer com a minha vida», confessou Jeff Ament em 1991. «Senti que tinha passado muito tempo para chegar até àquele ponto, e o facto de nos terem puxado o tapete mesmo quando estávamos prestes a ir para a estrada foi desanimador». Quando Andy morreu, acrescentou, «foi do género: 'porra, tenho que começar tudo de novo'». O desânimo, no entanto, depressa daria lugar a uma das histórias mais emblemáticas do rock n' roll, uma que dos tempos áureos de Seattle perdura até hoje: a história dos Pearl Jam, uma das poucas grandes bandas que conseguiram sobreviver à ascensão e queda do grunge que lhes deu a fama.
Há algo de muito diferente nos Pearl Jam, uma espécie de sentimento de comunidade, um forte sentido de camaradagem que lhes concedeu a longevidade, apesar das grandes lutas (como aquela que travaram contra a gigante Ticketmaster, nos anos 90) e das grandes tragédias (como a que viveram no festival de Roskilde, no ano 2000). Em “Pearl Jam Twenty”, livro editado por ocasião do 20º aniversário do grupo, o malogrado Chris Cornell soube descrevê-los muito bem: «Desde o início que eles demonstravam uma positividade, uma promessa de integridade e de fé – de que se acreditarem neles, não vos virarão as costas. E cumpriram essa promessa», escreveu.
Já se passaram dez anos desde a edição desse mesmo livro. Trinta desde o início dos Pearl Jam. E o que é verdade é que o grupo ainda mantém os mesmos princípios, não só profissionais – concertos extensos e de cordão umbilical bem ligado aos fãs, como o do NOS Alive em 2018 – como políticos e sociais – as lutas pró-escolha e pró-ambiente à cabeça. E pelo meio ainda fazem discos capazes de causar impacto junto do público e da imprensa especializada, como “Gigaton”, de 2020, descrito pela revista “Kerrang!” como «o mais necessário da sua carreira». Claro que este, o 11º álbum de estúdio dos Pearl Jam, ficará sempre um passito atrás da produção passada. Antes, houve monólitos dos anos 90 como “Vs.”, “No Code” ou “Vitalogy”. E “Ten”, que podia ser um daqueles casos em que não há amor como o primeiro, não fosse pelo facto de tudo ser (pelo menos para os fãs) amor.
Ainda estamos vivos
A 19 de março de 1990, Stone Gossard e Jeff Ament não sonhavam ainda vir a compor um disco como “Ten”. Mas o sonho era ainda o de uma carreira na música, com maior ou menor impacto à escala nacional e mundial. Nos meses que se seguiram à morte de Andrew Wood, o baixista juntou-se momentaneamente aos War Babies, com quem deu alguns concertos e gravou algumas canções, ao mesmo tempo em que ponderava regressar à faculdade, tendo abandonado os estudos para se dedicar aos Mother Love Bone. Em “Everybody Loves Our Town”, Ament não escondeu ter passado por uma «crise de identidade», encontrando o apoio emocional necessário em Gossard. Durante o verão de 1990, encontraram-se várias vezes para andar de bicicleta ou, simplesmente, conversar, expurgar quaisquer demónios que pudessem estar a ocupar-se das suas cabeças.
O exorcismo pessoal de Gossard resultou na gravação de alguns temas instrumentais, mais pesados do que aqueles que havia composto anteriormente, com a ajuda de um outro guitarrista: Mike McCready. Depois do falhanço dos Shadow, banda de tendência metaleira na qual militava e com a qual se mudou para Los Angeles, McCready regressou a Seattle e recebeu um convite de Gossard para tocarem juntos, sem pressões, apenas uma jam session natural. Ament não tardou a reunir-se com a dupla. Destas sessões nasce uma cassete intitulada “Stone Gossard Demos '91”, com Matt Cameron, então (apenas) nos Soundgarden, a ocupar-se momentaneamente da bateria.
O resultado, que incluía futuras canções dos Pearl Jam como 'Alive', 'Once' ou 'Even Flow', foi suficientemente bom para que os três decidissem começar a procurar um vocalista e um baterista, na esperança de iniciar um novo projeto musical. Entra em cena Jack Irons, antigo dono das baquetas nos Red Hot Chili Peppers, com quem Ament e Gossard se encontram em Los Angeles durante uma ação de promoção ao álbum dos Mother Love Bone. «Eles conheciam o meu trabalho, e queriam que eu ouvisse o que andavam a fazer», contou Irons em “Everybody Loves Our Town”.
O plano de Ament e Gossard para recrutar Irons não era inocente. O baterista deveria saber muito bem aquilo pelo qual os dois estavam a passar, tendo abandonado os Red Hot Chili Peppers após a morte do guitarrista Hillel Slovak, em 1988, devido a uma sobredose de heroína. Só que Irons, prestes a formar a sua própria banda, os Eleven, e com uma esposa grávida em casa, não queria mudar-se para Seattle e arriscar tudo por um grupo ainda por nascer, o qual só conhecia através de uma maqueta. Mas sabia de alguém que poderia estar disposto a ocupar a vaga de vocalista: um «tipo de San Diego», de seu nome Eddie Vedder.
O papá não deu atenção
Nascido Edward Louis Severson III, em Evanston, subúrbio de Chicago, Vedder não passou por uma infância que se possa considerar trágica. Uma palavra que poderá fazer mais sentido talvez seja “mentirosa”: a hoje estrela acreditou, até ao início da idade adulta, que Peter Mueller, homem com quem a sua mãe casou quando Vedder tinha apenas dois anos, era o seu pai biológico. Na verdade, esse era o “cargo” de Edward Louis Severson, homem com o qual se havia cruzado algumas vezes em criança, acreditando ser um amigo da família. Quando descobriu a verdade, já Edward pai havia falecido, após uma batalha perdida contra a esclerose múltipla. O trauma acabaria por inspirar os versos que se escutam em 'Alive': "Son," she said, "have I got a little story for you / What you thought was your daddy was nothing but a”...
Porém, nem a farsa impedia Vedder de chegar, desde tenra idade, ao sucesso. Aos cinco anos, arranjou um pequeno trabalho como modelo, sendo fotografado para o catálogo da retalhista Montgomery Ward. Daí, foi subindo na carreira, até chegar à televisão, gravando alguns anúncios – os quais podem, hoje em dia, ser facilmente encontrados no YouTube. Quem com ele privou descreve-o como uma criança «confiante», longe daquele estereótipo da estrela infantil mal-educada e arrogante, como notou Kim Neely em “Five Against One”, a sua biografia dos Pearl Jam. E será deste período que vem, também, um dos maiores traços de personalidade de Vedder: o sentido de solidariedade e de comunidade: em Chicago, vive na mesma casa não só com os pais e os irmãos, mas também com sete órfãos adotados pela família.
Nos anos 70, Vedder muda-se com a família para San Diego, onde começa a sentir o “bichinho” da música, espoletado pela prenda que recebeu aos 12 anos: uma guitarra. Com novo divórcio da mãe, fica a viver com o padrasto na Califórnia, onde não chega a completar o ensino secundário, regressando a Chicago. Mas o sol, e o surf – uma paixão que dura até hoje – chamavam-no, e muda-se definitivamente para San Diego em 1984 na companhia de Beth Liebling, sua namorada. Enquanto ganhava a vida como guarda noturno ou funcionário em um posto de combustível, começa a imiscuir-se na cena musical local, chegando a ser conhecido por ser meio “chato”, pedindo dicas aos gerentes de espaços como o Bacchanal ou o Winter sobre a indústria musical.
E tinha também os seus projetos, claro. Surf and Destroy, Butts ou Indian Style (esta última com o futuro baterista dos Rage Against the Machine, Brad Wilk) foram algumas das bandas onde começou a dar os primeiros passos enquanto artista. Mas foi com os Bad Radio, banda funk rock com fortes influências dos Red Hot Chili Peppers, que começou a firmar um nome próprio. O grupo nunca chegou a lançar um disco por uma editora, contando-se a sua história em apenas duas maquetas, mas já se vislumbravam traços daquele que viria a ser o Eddie Vedder: letras positivas, firmadas num forte sentido de ética, inspiradas por nomes como Bruce Springsteen ou U2. 'Better Man', por exemplo, vem dos seus dias com os Bad Radio.
O grupo não tinha, porém, a mesma verve de Vedder, que queria o mundo e queria-o já. Sai dos Bad Radio em 1990, e pouco depois é convidado por Jack Irons – que o conheceu enquanto se ocupava da bateria da banda de Joe Strummer – a fazer a viagem que lhe mudaria para sempre a vida, ao Parque Yosemite, na companhia de mais alguns amigos, entre eles Flea, ainda hoje o homem forte das quatro cordas nos Red Hot. Vedder não tinha como não aceitar esse convite. Para o então aspirante a artista, Irons era uma espécie de mentor punk, «uma ligação direta a um clube só para membros do qual o Eddie queria desesperadamente fazer parte», como escreveu Kim Neely.
O flow fez faísca
No regresso dessa viagem, Jack Irons entrega a Eddie a cassete com os instrumentais gravados por Gossard-Ament-McCready. O que escutou atordoou-o. E, o que é melhor, inspirou-o fortemente. «A música ficou-me na cabeça. Fui surfar, de manhã, e escrevi as letras numa cabana onde guardava um gravador de quatro pistas», contou em “Grunge Is Dead”, uma história oral da cena de Seattle, da autoria de Greg Prato. Cinco dias depois, os nascentes Pearl Jam ouviam, pela primeira vez, 'Once', 'Alive' e 'Footsteps'. «Não pensei naquilo como uma oportunidade, ou algo assim. A cena mais fixe foi ter-me ajudado a limpar algumas coisas do meu sistema», acrescentou em “Five Against One”. «A música trouxe-me à baila coisas que nunca antes tinha trazido». A reação de Jeff Ament ao escutar as gravações de Vedder terá sido menos filosófica: «Este tipo é do caraças».
Depressa o trio convida Vedder a viajar até Seattle, para uma audição presencial. A seu lado estaria também o baterista Dave Krusen, recrutado em Seattle. Antes de partir de San Diego, o futuro vocalista pede aos colegas para que não o façam, dito de forma simples, perder o seu tempo: nada de visitas guiadas pela cidade, nada de noites de copos, só a sala de ensaios e pouco mais. Até porque o prazo era curto, uma semana, finda a qual Vedder teria que regressar ao seu emprego num posto de combustível.
A ligação, segundo todos os elementos que presenciaram aquele momento primordial – o momento em que Vedder canta pela primeira vez nos Pearl Jam – foi imediata. O grupo terminaria essas sessões com várias canções e ideias para canções, entre elas boa parte do material que acabaria em “Ten” e um rascunho daquele que viria a ser um dos temas mais acarinhados pelos fãs do grupo, 'Yellow Ledbetter'. Tudo isto enquanto preparava, também, um tributo a Andrew Wood sob a forma dos Temple of the Dog, no qual Vedder também participou. «Nunca tive qualquer dúvida de que ele era o vocalista indicado para nós», disse Jeff Ament em “Grunge Is Dead”. «Ele deu tudo, mostrou-se muito dedicado e desinibido enquanto tocávamos. Normalmente precisas de tocar três ou quatro vezes com alguém até sentires que a ideia é boa. Com ele foi imediato».
Durante essa semana, o grupo sentiu-se confiante o suficiente para dar um pequeno concerto, no Off Ramp Café, em Seattle. Só faltava um nome para a banda, que ainda não se tinha cruzado espiritualmente com as palavras “Pearl” e “Jam”. Fãs de basquetebol, roubam-no a Mookie Blaylock, base dos New Jeysey Nets. «Era um bocado pateta, mas estávamos demasiado ocupados a trabalhar nas canções para pensar num nome», explicou Eddie Vedder em “Five Against One”. Ao contrário das sessões, o espetáculo não foi avassalador, com o vocalista a mostrar-se ainda algo tímido e estático em palco, longe do animal de palco que viria a ser pouco tempo depois. Após uma semana de sonho, Eddie Vedder volta para San Diego. Não seria para sempre. Dois meses depois, em dezembro, regressou a Seattle – que passaria a ser a sua “casa”.
Um dez em dez
Em janeiro do ano seguinte, os Mookie Blaylock / Pearl Jam entram em estúdio com o produtor Rick Parashar, para gravar uma maqueta mais polida das canções que haviam engendrado na sua sala de ensaios. Seguiu-se uma digressão pela Costa Oeste dos Estados Unidos, na qual fizeram as primeiras partes dos Alice In Chains, que lhes valeu uma menção na secção de desporto do emblemático “The New York Times”, dada a ligação com o atleta – facto que muito divertiu Vedder. Essa ligação durou pouco tempo; em fevereiro, durante um concerto dos Crazy Horse de Neil Young presenciado por Vedder, Gossard e Ament, o grupo decide adotar o nome com o qual vendeu milhões de discos por todo o mundo.
A etimologia tem variado, desde as óbvias conotações sexuais (jam pode funcionar como calão para “sémen”) às mitologias inventadas e alimentadas por Vedder, que nos primeiros tempos disse aos jornalistas que “Pearl Jam” vinha de uma bisavó ameríndia, Pearl, que tinha supostamente criado uma receita de uma geleia alucinogénica. Independentemente das histórias que se contam, a esmagadora maioria fantasiosas, o novo nome sossegou os executivos da Epic, editora com a qual haviam assinado. Mookie Blaylock acabou por ser homenageado de outra maneira pelo grupo: “Ten” é uma referência ao número que o atleta ostentava na sua camisola, o dez.
Por volta da mesma altura, o grupo cruza-se com Cameron Crowe, que lhes daria um pequeno papel em “Vida de Solteiro”, comédia romântica baseada naquilo que o realizador vinha testemunhando em Seattle. «Éramos só uns tipos numa banda rock que o Cameron conhecia», disse Jeff Ament em “Pearl Jam Twenty”. O visual do ator Matt Dillon, no papel de um vocalista de uma banda grunge intitulada “Citizen Dick” (interpretados por Vedder, Ament e Gossard), é um misto de Eddie Vedder com Jeff Ament, que chegou a emprestar-lhe algumas das suas próprias roupas. E o ator chegou mesmo a receber algumas lições de guitarra por parte de Eddie Vedder, que ganhou mil dólares pelo esforço.
No caminho para o estrelato, só faltava mesmo o disco. “Ten” começou a ser gravado em março, novamente com a ajuda de Rick Parashar, com Dave Hillis no papel de engenheiro de som. «Muita gente me pergunta como foi trabalhar no disco dos Pearl Jam. Dizem-me que deve ter sido mágico», afirmou Hillis em “Everybody Loves Our Town”. «E, honestamente, não foi. As canções eram ótimas, mas eles ainda não eram famosos e estavam a ainda a crescer como banda. O Eddie não era o Eddie. Tinha uma personalidade diferente, não era um tipo sério e misterioso, como as pessoas imaginam que é».
Já que o álbum nasceu sobretudo dos instrumentais gravados por Gossard e Ament, coube a 'Porch' o privilégio de ser o único tema de “Ten” com um crédito individual de composição atribuído a Eddie Vedder. «Há momentos na tua vida em que tudo parece poesia», escreveu o vocalista em “Pearl Jam Twenty”. «Às vezes, tudo o que vês guia-te numa maior exploração dos teus pensamentos, ou leva-te a escrevê-los. À altura, canções como a 'Porch' parecia que se limitavam a sair. As minhas células vibravam».
Ao contrário do que se passou em outubro de 1990, na sala de ensaios, nem tudo durante as gravações foi um mar de rosas. Vedder apresentava-se, por vezes, algo nervoso, longe de atingir o potencial total da sua voz. Segundo Hillis, o vocalista ainda se sentia meio que na sombra de Andrew Wood, e a pressão de estar numa major – a Epic era subsidiária da Sony – não ajudava. «Devemos ter tocado a 'Even Flow' umas 30 vezes», recordou Mike McCready. «O disco era sobretudo do Stone e do Jeff, eu e o Eddie andávamos à boleia deles». Os vários takes, acrescentou o guitarrista mais tarde, fizeram-no sentir-se como um robô.
Mesmo as canções precisaram de algo mais. 'Jeremy', um dos grandes clássicos dos Pearl Jam, quase não fez parte do alinhamento final de “Ten”, até que lhe foram acrescentados um violoncelo e os versos de Eddie. Ament não gostou da forma como o seu baixo soava na primeira mistura, e decidiu fazer overdubs em metade dos temas. A guitarra de Mike McCready que se ouve no disco é produto de um trabalho de corta-e-cola, em que os melhores takes foram misturados para criar a versão final. Mas, em maio, altura em que terminaram as gravações, todos concordavam: “Ten” era o melhor projeto no qual tinham trabalhado.
Maio foi também o mês em que Dave Krusen, a braços com um problema de alcoolismo, abandona os Pearl Jam. A sua última atuação com o grupo teve lugar na festa de fecho das gravações de “Vida de Solteiro”. Nessa noite, envolve-se em desacatos, escapando por pouco à prisão. «Dormi por uns dias em quando acordei e lhes liguei, disseram-me que estavam a caminho de Inglaterra para misturar o álbum. E que eu não podia ir porque precisava de me tratar primeiro», recordou. Krusen, hoje nos Candlebox, só curaria a doença em 1994.
Foi substituído por Matt Chamberlain, que fez parte dos Pearl Jam, como músico convidado, durante apenas três semanas – o suficiente para terminar a digressão marcada e figurar no videoclip de 'Alive'. E o suficiente para perceber que o grupo iria longe. «Onde quer que tocássemos, éramos a banda de abertura, mas as pessoas passavam-se», contou o baterista em “Everybody Loves Our Town”. «Todas as pessoas da indústria musical com quem me cruzei diziam que [os Pearl Jam] iam ser grandes».
Braços erguidos em V
A indústria queria capitalizar rapidamente com os Pearl Jam. Não só porque sabiam da qualidade do produto, mas também porque o panorama musical lhes era favorável. O plano da Epic passava por criar hype suficiente em torno dos Pearl Jam de forma a aumentar as vendas iniciais, levar as rádios e, sobretudo, a MTV (numa altura em que o canal ainda passava vídeos musicais e não episódios repetidos de “Ridiculousness”) a incluí-los nas suas playlists. De uma primeira parceria com a Coca-Cola nasceu a possibilidade de os fãs ganharem uma cópia de uma de dez cassetes disponíveis, entre as quais a de “Ten”. Mais tarde, a editora enviou um sampler com 'Alive', 'Wash' e uma versão de 'I've Got a Feeling', dos Beatles, aos membros dos clubes de fãs dos Mother Love Bone e Soundgarden.
Nem sempre a editora acertava, claro, como não acertou quando quis barrar a capa desenhada por Jeff Ament para o single de 'Alive' – o famoso boneco de cabelo comprido e braços erguidos na direção do céu, símbolo que trinta anos depois mais associamos aos Pearl Jam. «Alguém que tinha ouvido a nossa cassete umas três vezes queria explicar-me a vibe do grupo», revelou mais tarde o baixista, entredentes. «Acho que não estavam acostumados a que uma banda quisesse fazer as coisas à sua maneira». A capa de “Ten”, fotografada por Lance Mercer, passou pelo mesmo problema.
A Epic não entendia porque é que os Pearl Jam se recusavam a gastar rios de dinheiro no seu produto; em “Pearl Jam Twenty”, Ament descreveu ter cifrado o limite máximo em 75 mil dólares. Boa parte do adiantamento obtido pelo grupo serviu para comprar novos instrumentos, um PA em condições, e pagar a renda da sua sala de ensaios. «Coisas que serviriam para nos ajudar a ser uma banda melhor», explicou o baixista. «Não iríamos dar cabo disto. Não iríamos desperdiçar uma segunda oportunidade».
Determinados a construir o seu próprio destino, os Pearl Jam nunca se esconderam de uma boa “guerra” com os executivos da Epic. Depois das capas, travaram-na em relação ao videoclip de 'Alive', o qual queriam gravar ao vivo, por oposição ao tradicional playback. «Disseram-nos que a gravação tinha de ser a do disco ou a MTV não o passaria», contou Eddie em “Five Against One”. A banda acabou por triunfar, requisitando os serviços de um amigo de Gossard, Josh Taft (que mais tarde também se encarregaria dos vídeos para 'Even Flow' e 'Oceans'), e filmando o vídeo durante um espetáculo no RKCNDY, em Seattle. Presente no público estava Dave Abbruzzese que, por recomendação de Matt Chamberlain, se tornou no terceiro baterista dos Pearl Jam.
A 27 de agosto, o disco chega finalmente às lojas – e às mãos dos fãs e seguidores da cena de Seattle. Mas não é um sucesso imediato. As rádios, pura e simplesmente, não sabiam o que fazem com uma banda como os Pearl Jam, que tinham uma sonoridade distinta do que tradicionalmente se entendia por grunge, mais próxima do rock dos anos 70 que do punk que se lhe seguiu. “Ten” acaba por vender pouco menos de 25 mil cópias na sua primeira semana, o que não foi suficiente para sequer entrar no top 200 da Billboard. A banda não esmoreceu, concentrando-se na digressão agendada para os meses subsequentes.
Do alpendre aos oceanos
Já com Abbruzzese na bateria, os Pearl Jam fazem-se à estrada em setembro. A ideia de se estar perante algo de grandioso depressa vai passando de boca em boca, muito por culpa das prestações feéricas de Eddie Vedder, e da sua propensão para a loucura, atirando-se do palco e surfando a multidão – algumas vezes de alturas inconcebíveis e impróprias para quem sofre de vertigens. A meio, o grupo é convidado a fazer as primeiras partes de uma digressão conjunta dos Red Hot Chili Peppers, tornados grandes pelo lançamento de “Blood Sugar Sex Magik” também em 1991, e dos Smashing Pumpkins, cujo “Gish” se encontrava a dar cartas. “Nevermind”, dos Nirvana, também tinha acabado de sair, e mesmo que não fosse – para já – um fenómeno à escala mundial virou muitas cabeças na direção de Seattle.
Começam a chover pedidos de entrevistas e resenhas elogiosas na imprensa especializada. O boneco de Ament e 'Alive' encontrava o seu lugar em t-shirts ou corpos sob a forma de tatuagem. A atenção que o grupo recebia era boa, mas vinha acompanhada pelo reverso da moeda: a cena de Seattle não era propensa a “estrelas rock”, e os Pearl Jam não souberam, ao início, lidar com essa fama. Que não tenha sido o punk a formá-los, por oposição aos eternos rivais Nirvana (com Kurt Cobain a alimentar, durante muito tempo, um certo ódio aos Pearl Jam, que considerava “vendidos”), também pesou.
Em “Grunge Is Dead”, Art Chantry – que trabalhou, como designer gráfico, com bandas como os Mudhoney ou os Soundgarden – argumentou que os Pearl Jam «nunca foram considerados como sendo “uma banda de Seattle”». «Eram um produto da indústria. Ninguém os respeitava enquanto banda. Gostavam das pessoas que faziam parte dela, eram amigos, mas não eram respeitados». Eddie Vedder, que era cada vez mais o líder não-eleito e não-assumido dos Pearl Jam, limitava-se a pensar: que fariam os Fugazi, banda que nunca havia abandonado os seus princípios, nunca editando por uma major e garantindo que os bilhetes para um concerto seu nunca custariam mais que cinco dólares?
O vocalista tinha passado praticamente uma vida a sonhar com a fama. Mas não desta forma, não com todo o veneno da indústria a desabar-lhe sobre os ombros. Temia que o hype desviasse as atenções daquilo que era realmente importante, a música. O conceito de “celebridade” atormentava-o. «Comecei a sentir-me assustado», confessou. O seu rosto, e o dos demais Pearl Jam, começava a surgir, gigante, em anúncios de rua ou capas de revistas. «É pena, porque nunca senti que isso fosse uma coisa fixe. Senti que estávamos a surfar uma onda gigante, mas eu sabia que ela, a dado momento, iria rebentar. E há quem não consiga voltar à tona», continuou. Para Chris Cornell, Vedder mostrou-se sempre «muito consistente»: «Ele quer que o mundo saiba quem são [os Pearl Jam], mas não quer que o saibam nesse preciso instante», afirmou em “Pearl Jam Twenty”. O plano dos Pearl Jam passava por gravar um disco, andar em digressão numa carrinha velha, criar nome - «uma vida lenta e natural», segundo o falecido músico.
Pearl Jam Vs. O Mundo
Fame, fame, fatal fame / It can play hideous tricks on the brain, canta Morrissey em 'Frankly, Mr. Shankly'. E se os Pearl Jam já se encontravam de pé atrás com a fama, depressa se viram no centro de um tornado: a chegada de 'Nevermind', dos Nirvana, ao primeiro lugar das tabelas de vendas, em janeiro de 1992, o ponto zero da febre em torno de Seattle. O grunge já não era apenas uma forma de fazer rock, mas sim uma marca, quase uma multinacional. Impulsionado pelo sucesso de “Nevermind”, primeiro, e pelo sucesso do videoclip de 'Alive', segundo, também “Ten” começa a escalar as tabelas.
O grupo não reagiu de forma efusiva, procurando concentrar-se apenas no seu trabalho. Exceção feita a Dave Abbruzzese, dos poucos nomes da equipa Pearl Jam que celebrou quando “Ten” atingiu o ouro – e nem sequer tinha feito parte das sessões de gravação (e esse gosto pela fama terá sido um dos factores que levou à sua saída do grupo, em 1994). Oito meses após o início da digressão, com uma primeira passagem pela Europa a ser muito aplaudida, os Pearl Jam mostravam os primeiros sinais de desgaste. Na imprensa, havia até quem fizesse apostas sobre o momento em que a banda se auto-destruiria. E Eddie Vedder, ciente de que qualquer coisa que pudesse dizer ou fazer seria imediatamente escrutinada pelos média, passou a resguardar-se cada vez mais.
«Ele não conseguia ter uma conversa normal comigo», revelou o produtor Jonathan Plum em “Grunge Is Dead”. «Eu perguntava-lhe como ele estava, e ele contava-me uma história enorme sobre política ou algo assim. Eu só estava a dizer olá! Era como se tudo o que saísse da boca dele fosse para uma entrevista». A ideia de que os Pearl Jam não passavam de um bando de vendidos a escavacar o grunge para seu benefício pessoal – uma ideia que a história contraria, já que Gossard e Ament, com os Green River, lançaram as bases para a sonoridade grunge – desanimava-os.
A edição de 1992 do Lollapalooza, festival itinerante que contou com os Pearl Jam no cartaz, aumentou ainda mais a sua exposição pública. Mesmo tocando por volta das duas da tarde, o grupo arrastava multidões, embeiçadas por Vedder e pelo vídeo de 'Jeremy', que também começara a rodar incessantemente na MTV. Em “Barbed Wire Kisses”, biografia dos Jesus & Mary Chain, que também estiveram nessa edição, o vocalista Jim Reid recordou as atuações de Vedder de forma elogiosa: «mostrava-se muito dinâmico», disse. «Trepava as torres de iluminação e punha-se de pé, no topo. As pessoas enlouqueciam».
A Epic queria, naturalmente, continuar a lucrar com a sua nova galinha dos ovos de ouro. A banda-sonora de “Vida de Solteiro”, que contava com temas não só dos Pearl Jam como dos Mother Love Bone, Alice In Chains ou Soundgarden, foi lançada no mercado muito antes de o filme se estrear nos cinemas. Mesmo os Temple of the Dog, cujo álbum havia sido editado e imediatamente esquecido em 1991, voltavam a entrar na equação, quando a MTV passou a transmitir o vídeo de 'Hunger Strike'. Em agosto, “Ten” atinge o estatuto de disco de platina, por 1 milhão de cópias vendidas.
Intranquilos, os Pearl Jam tentaram dar um passo atrás e refrear os ânimos, ao mesmo tempo que se mostravam apaziguadores perante as críticas que iam recebendo. «Consigo perceber as pessoas que nos odeiam», disse Vedder à altura. «Se eu fosse uma delas, provavelmente também andaria a rasgar a banda». O vocalista culpava sobretudo a Epic, cuja campanha de promoção tinha dado argumentos a artistas como Kurt Cobain, que navegava sem receios a aura de “guardião” do punk à séria que “Nevermind” lhe havia conferido (Cobain e Vedder acabariam a fazer as pazes pouco depois, durante um concerto de Eric Clapton). Só em setembro puderam os Pearl Jam descansar, gozando umas merecidas férias antes de se atirarem a “Vs.”, o seu segundo disco, que acabaria também a bater recordes de vendas. Por enquanto, a sua reputação – quer os Pearl Jam tenham querido uma reputação ou não – estava cimentada.
Ao longo de 2021, o SAPO24 publica uma série de artigos focados no grunge, fenómeno e género musical que atingiu o seu apogeu há precisamente trinta anos: “1991: E Tudo o Grunge Mudou”. Acompanhe-nos nesta viagem.
Comentários