Peter Hook é hoje um homem feliz. Isso percebe-se a cada gargalhada que atira, de três em três minutos, mesmo ao falar de coisas sérias, ao longo da conversa telefónica que temos com ele via WhatsApp (e sim, Peter Hook usa o WhatsApp. Tem 63 anos mas é um tipo prá frentex). Percebe-se também na forma como fala, que é calma, ponderada e honesta, não recusando responder a todas as perguntas que lhe colocamos. E percebe-se porque ele próprio o admite, quase a terminar a chamada: “Estou muito feliz em relação ao que sou hoje. Tenho uma boa vida”.
Seríamos tentados a descrever esta felicidade como estranha, tendo em conta que a banda que ele ajudou a formar e pela qual se tornou famoso – os Joy Division – não passava uma imagem bonacheirona; a música era negra e sisuda, quase opressiva. Mas a verdade é que ele a merece. É que Hook não viveu apenas uma vida glamorosa de estrela rock, primeiro com os Joy Division e depois com os New Order. Teve de se ver a braços, também, com um problema com o alcoolismo, com o abuso de drogas, com um casamento falhado – com a comediante Caroline Aherne – onde a violência doméstica que sofria era diária e, ainda, com uma depressão, esse demónio que tem tomado conta de tanta e tanta gente, e que nos últimos anos nos levou tantos artistas, como Chris Cornell e Chester Bennington.
“Estou muito feliz em relação ao que sou hoje. Tenho uma boa vida”
“A caminho daqui, para fazer a entrevista, li que a principal causa de morte entre homens com menos de 45 anos ainda é o suicídio”, afirma. Dados do Instituto Nacional de Estatísticas Britânico mostram que, em 2017, três em cada quatro suicidas foram homens. “Isso precisa de ser visto, investigado. As pessoas têm de ser auxiliadas para que não sofram. A depressão e a saúde mental são algo que é 'imposto' às pessoas, é diferente da violência doméstica ou do abuso de álcool e drogas. Vivemos num mundo complicado. Quanto mais pessoas vivem nele, mais pessoas sofrem. É importante fazermos a nossa parte para que possamos ajudar o mais possível”, remata.
Não é, portanto, como se Hook quisesse relegar esses problemas para o passado. Os mesmos são, aliás, bem descritos em cada um dos livros que escreveu, primeiro sobre a Haçienda, discoteca erguida pela Factory Records em Manchester e a qual manteve aberta, com os seus lucros, ao longo de 16 anos, depois sobre os Joy Division e finalmente sobre os New Order. O baixista não se esconde daquilo que sofreu. O que nos parece é que conseguiu, finalmente, superá-lo.
A sua saída dos New Order, em 2007, também terá contribuído para tal. Foi uma saída conturbada, como habitual numa banda rock, potenciada por divergências várias com os outros membros da banda – e que acabariam em tribunal. A situação leva a que hoje em dia existam dois grupos distintos: os The Light, com os quais Peter Hook virá a Portugal nos próximos dias 12 (Lisboa), 13 (Guarda) e 14 de abril (Porto), e os New Order, que sem o seu baixista de sempre irão atuar no festival Vodafone Paredes de Coura, a 15 de agosto.
“Estar sozinho permite-me interpretar, à minha maneira, aquilo a que eu acho que deveriam soar os Joy Division e os New Order”
Tanto uns como outros farão dos seus temas mais antigos o maná que alimentará os muitos fãs que ainda hoje os escutam (sem ser preciso vestirem t-shirts de Joy Division compradas em grandes retalhistas). E que não precisam, sequer, de se entristecer com a cisão. No seu livro acerca dos Joy Division (“Unknown Pleasures: Inside Joy Division”, 2012), Hook confessa sentir alguma “culpa” por tocar estas canções longe das suas antigas bandas, algo que já faz há quase 10 anos. Hoje, essa mesma culpa dissipou-se. “Estar sozinho permite-me interpretar, à minha maneira, aquilo a que eu acho que deveriam soar os Joy Division e os New Order”, conta-nos. “Sempre preferi que soassem mais punk, mais rock, menos sequencial. E o nosso público aumentou, pelo que é bom saber que as pessoas concordam com a minha visão”. Não só isso, como esse mesmo público tem agora a “sorte” de poder ouvir duas versões da mesma moeda, através dos The Light ou dos restantes New Order.
Revisitar o passado, com a cabeça no futuro
Para esta nova vaga de concertos em Portugal, país que conhece desde que se estreou por cá enquanto baixista convidado dos Durutti Column, nos idos anos 90, o mote será não uma, mas duas compilações, ambas com o título de “Substance”: uma é dos Joy Division, a outra dos New Order. “Sinto que ainda poder tocar esta música, passados 43 anos, é uma bênção”, garante. “O 'Substance' dos New Order é uma coleção de singles, e nós sempre achámos que os singles tinham algo de diferente. É por esse motivo que nunca os incluímos nos LPs. É um álbum muito comercial, de muito sucesso, muito diferente dos LPs. E foi muito barato fazê-lo, porque todas as faixas [ali incluídas] haviam sido editadas antes”, conta. “Já o 'Substance' dos Joy Division é o oposto: é um disco com canções bastante desconhecidas, para além da 'Love Will Tear Us Apart' e da 'Transmission'”. E, no entanto, são estes mesmos temas que são melhor recebidos pelo público, algo que Peter Hook acha curioso, visto que esperava o contrário: “Talvez seja da forma como os tocamos!”, remata, com uma das suas muitas gargalhadas. “Alguns desses temas nunca foram tocados ao vivo pelos Joy Division. É sempre um desafio [fazê-lo]”.
O plano passa por seguir quase à risca a cronologia dos Joy Division e dos New Order. Com os The Light, já se atirou a “Unknown Pleasures” (1979) e a “Closer” (1980), as duas obras editadas pelos Joy Division antes do fim da banda, e também a “Movement” (1981), “Power, Corruption & Lies” (1983), “Low-Life” (1985) e “Brotherhood” (1986), os quatro primeiros álbuns dos New Order. Portugal vai ser uma espécie de exceção, já que nos últimos meses o que Peter Hook e os The Light têm tocado ao vivo é “Technique” (1989) e “Republic” (1993), na íntegra.
“Sinto que ainda poder tocar esta música, passados 43 anos, é uma bênção”
“Quando vamos a países como Portugal, ou França, ou Espanha, tendem a pedir-nos para tocar os 'Substance'”, explica. “Acho que vou ter de ser mais firme no futuro, porque tem sido muito bom tocar o 'Technique' e ainda melhor tocar o 'Republic'. São álbuns 'manchados' pelo que aconteceu à Factory, pelo que aconteceu à Haçienda, pelo que aconteceu durante as gravações. Aliás, o 'Republic' nunca foi [completamente] terminado, estávamos sempre às turras. Tocá-lo ao vivo, agora, foi uma revelação. Era giro que o Stephen [Morris, baterista dos Joy Division e New Order] e o Bernard [Sumner, guitarrista dos Joy Division e vocalista e guitarrista dos New Order] também a pudessem ter”, desabafa.
Lá está: o passado nunca é esquecido por Peter Hook. Parece que fala dele com um misto de resignação, de que se lixe, e de alguma tristeza. Basta ler os seus livros para o perceber: os seus companheiros são quase sempre fortemente criticados (um dos adjetivos mais simpáticos que utiliza poderá ser traduzido como “idiotas”), mas também elogiados. Não é raro encontrar um parágrafo em que Hook nos explique porque é que Bernard Sumner era, e é, um grande guitarrista e compositor. Quando lhe perguntamos se quer que deixemos alguma mensagem aos New Order quando os encontrarmos em Coura, a resposta é dita em tom jocoso e sarcástico, após um suspiro enormíssimo: “Diz-lhes que suspirei profundamente. Podia fazer-te passar muitas mensagens, mas eles não as merecem”.
O maior momento de tristeza, para este homem hoje feliz da vida, é mesmo o facto de os Joy Division / New Order terem acabado sem que houvesse espaço para a amizade entre os seus membros. Uma amizade que, sabe-se lá, podia ter feito dos New Order uma banda “maior que aqueles otários irlandeses”, que era a forma educada como o seu manager, Rob Gretton, falava dos U2. A falta dela, admite, mancha o legado de ambas as bandas. “Como me disse o Peter Saville”, designer responsável pelas capas dos discos dos Joy Division e dos New Order, “'vocês enviaram esse legado para o deserto, onde nada cresce'. O que não é verdade [e eis mais uma gargalhada], porque tanto uns como os outros estão bem no que às suas carreiras diz respeito”.
Uma mancha que, apesar de tudo, não envergonha. “Quando chegámos a 2006, eu e o Bernard tínhamos ideias completamente diferentes em relação ao grupo, à música, às nossas carreiras. Conhecíamo-nos desde putos... Não consegui lidar com a atitude dele em relação ao grupo e aos fãs”, explica. “Não tenho vergonha daquilo que fizemos [no passado], mas é triste que não tenhamos conseguido separarmo-nos e manter boas relações. É vergonhoso, terrível, que os maus fígados se mantenham. Teres 60 anos e estares em guerra com duas pessoas com as quais trabalhaste ao longo de 40 anos é uma tragédia. Parte-me o coração”.
"Teres 60 anos e estares em guerra com duas pessoas com as quais trabalhaste ao longo de 40 anos é uma tragédia"
A tragédia leva, até, a que seja impossível a alguém de fora poder celebrar os Joy Division e os New Order. É por isto que, se formos a Manchester e ao edifício onde dantes se situava a Haçienda (hoje um bloco de apartamentos), a placa comemorativa que lá se encontra não lembra os autores de 'Love Will Tear Us Apart' ou de 'Blue Monday', e sim os... James, que atuaram pela primeira vez naquela discoteca em 1982. “Como os membros da banda estão sempre a discutir, ninguém quer ter a responsabilidade de fazer com que nos encontremos pessoalmente para celebrar o que seja [e bota nova gargalhada]. Íamos acabar por nos matarmos uns aos outros. É por isso que estas coisas não são celebradas. É mais fácil celebrar os James, os Charlatans, os Courteeners ou os Oasis. E é [também] por isso que o nosso legado tem sido manchado, [porque] não conseguimos estar juntos na mesma sala”, comenta.
A Haçienda era a pièce de résistance da Factory Records, editora que o jornalista e apresentador de televisão Tony Wilson fundou e com a qual deu a conhecer os Joy Division, os New Order, os Happy Mondays e a cidade de Manchester no geral ao mundo. Ao longo da sua existência, a discoteca recebeu nomes como Madonna – foi ali que a “Rainha da Pop” tocou, pela primeira vez, em Inglaterra – e deu origem ao género / movimento acid house, influência fortíssima em quase toda a música eletrónica que se faz desde 1988. O nome vem de um ensaio escrito por Ivan Chtcheglov, membro da Internacional Situacionista, no qual clamava que “a Hacienda tem de ser construída”.
Pensamos num outro lema da Internacional Situacionista: “sê realista, pede o impossível”, e acreditamos que este encaixa que nem uma luva na história da Factory e da Haçienda. “Era mais 'sê irrealista'”, corrige o baixista. “A Factory foi maravilhosa, tal como a atitude do Tony Wilson em relação às bandas, principalmente a nossa. A Haçienda foi uma conquista única. O Tony quis que as pessoas de Manchester pudessem ter um sítio onde ir, vestir-se como quisessem, ouvir boa música. Era a ideia dele. O que não percebeu foi que iria pagar por tudo isso durante 16 anos”, acrescenta. “Não há muitos grupos que possam dizer que tenham sustentado toda uma cidade a partir do seu próprio bolso durante tanto tempo. Tanto ele como o Rob Gretton mudaram o mundo. Não só o da música, como o dos clubes, o da cultura em geral, o da moda”.
“Não há muitos grupos que possam dizer que tenham sustentado toda uma cidade a partir do seu próprio bolso durante tanto tempo"
Era o dinheiro dos New Order aquilo que mantinha a Haçienda de pé, já que a discoteca dava prejuízo a todo o santo mês. Tudo o que a banda ganhava ia diretamente para as contas da Haçienda. Eventualmente, já nos anos 90, a situação tornou-se demasiado insustentável. “Só eu e o Rob Gretton é que estávamos interessados na Haçienda. Os outros desistiram dela muitos anos antes dela fechar. A dívida tornou-se insuportável. Não havia digressões mundiais suficientes que os New Order pudessem fazer para as pagar, e os New Order não as faziam. Recusavam-se a trabalhar”, conta Hook. “A violência que lá se vivia era inacreditável, a polícia não nos ajudava, os contabilistas também não, a banda idem. Aguentámos o mais que pudemos. Até que a minha mulher ameaçou deixar-me se eu não parasse antes de ficarmos falidos... Tudo para entreter as pessoas de Manchester”, e do mundo inteiro, porque não.
A história da Factory e da Haçienda poderia ter sido diferente, caso Tony Wilson tivesse tido a visão – ou a coragem – necessárias para assinar com duas outras grandes bandas do período pós-punk britânico: os Smiths e os Stone Roses, que também obtiveram um enorme sucesso. “E deixou fugir os James!”, acrescenta Hook. “O Tony Wilson era muito 'puro' em relação àquilo de que gostava. Se não gostasse, não contratava as bandas. Há que admirar isso. Ele não se regia pelo dinheiro, e sim por aquilo que queria, pessoalmente, apoiar”. Será isso que falta, hoje em dia, à indústria musical? O baixista parece achar que sim. “Meu Deus! Não há escrúpulos, não há lealdade... A música hoje em dia é horrível”, diz. Para trás ficam então as memórias de concertos de artistas como os Einstürzende Neubauten, Birthday Party, Bauhaus, Bow Wow Wow ou Rip Rig + Panic – concertos esses que o músico gravou em cassete, tendo hoje uma coleção considerável, que poderá em breve passar de mãos; vão ser vendidas num leilão futuro. “Alguém vai ter direito a um bom pedaço de história, da música e da Haçienda”, comenta.
Para além do óbvio
Fora da Haçienda, da Factory e dos New Order, haverá uma geração mais nova (e na qual se insere este mesmo escriba) que terá começado a conhecer Peter Hook através de um outro projeto: os Monaco. Sobretudo, através de 'What Do You Want From Me?', canção escrita na ressaca do seu divórcio com Caroline Aherne e que foi um sucesso radiofónico no ido ano de 1997. Os concertos de Peter Hook com os The Light servem para lembrar os Joy Division e os New Order, mas às vezes este êxito lá surge nos alinhamentos. “Normalmente a pedido do meu filho”, Jack Bates, também ele baixista e hoje membro dos Smashing Pumpkins. “Lembra-lhe a sua infância”, acrescenta, uma frase com a qual essa supracitada geração se poderá relacionar.
E não é como se os Monaco tivessem desaparecido: os The Light são compostos pelo mesmo baterista, teclista e guitarrista dessa banda.“Talvez no futuro possamos revisitar os Monaco e tocar os dois discos que lançámos, e dos quais me orgulho imenso. Fazem-me pensar que seria melhor não ter acabado com os Monaco e regressado aos New Order [em 1998], porque estes viriam a transformar-se numa tragédia - que, lamentavelmente, ainda perdura”, constata, uma vez mais. Aliás, vem aí um novo tema dos Monaco, que fará parte dos espetáculos Joy Division Classical, nos quais se faz acompanhar por uma orquestra sinfónica, e o qual começará a compor – garante – a partir desta segunda-feira, 8 de abril.
"Sinto muito a falta dele, ele toca baixo tal como eu. Nunca ouvi ninguém tocar melhor que o meu filho”
Ao falar do filho, quase que escutamos os fios de saliva de pai babado a escorrerem-lhe pelos cantos da boca. “[O Jack] não podia estar em melhores mãos. Sinto muito a falta dele, ele toca baixo tal como eu. Nunca ouvi ninguém tocar melhor que o meu filho”, conta, orgulhoso. “E tem vivido bons momentos, a tocar para 50 mil pessoas”, juntamente com os demais Smashing Pumpkins. O público português poderá confirmar isso mesmo no próximo dia 13 de julho, quando a banda de Billy Corgan subir ao palco principal do festival NOS Alive. E por falar em Billy Corgan... “É muito mais fácil lidar com o Billy agora que ele está sóbrio. Tornou-se um verdadeiro gentleman. E tem um enorme respeito pelo meu filho, algo pelo qual lhe agradeço imenso”, diz Hook.
Nestas coisas entre filhos e homens adultos, há uma nota publicada em “Substance: Inside New Order” (2016), que se refere a uma ocasião em que Bernard Sumner trocou alguns versos a 'True Faith' para troçar das acusações de abuso sexual de menores feitas contra Michael Jackson, em 1993. Sendo Hook pai de três filhos (e avô de uma menina), não poderíamos deixar de lhe perguntar: que achou de “Leaving Neverland”. “Só posso falar como pai”, atira. “Se o meu filho tivesse de dormir com um homem adulto, independentemente do seu estatuto na música, eu dizia-lhe para ir bardamerda. Nenhum artista é perfeito, eu incluído”. Uma resposta aceitável, mas que não indica se Hook acha que o “Rei da Pop” é culpado. “Quando descobres algo sobre alguém, tens de decidir o que pensar por ti próprio. É o que se passa em relação ao Michael Jackson. A família dele diz que ele é inocente, aqueles dois homens [James Safechuck e Wade Robson, as figuras principais de "Leaving Neverland"] dizem que ele é culpado”. Que fique, então, ao critério de cada um.
Culpados de outras coisas menos graves, há um que dói particularmente a Hook, adepto do Manchester United: José Mourinho. A saída do treinador português da equipa tinha, naturalmente, que ser abordada. E é uma saída que teve como base, segundo o músico, a personalidade de Mourinho. “Um amigo meu costumava cuidar dele e disse-me que ele não era um homem feliz. Essa infelicidade espalhou-se para a equipa”, revela, antes de lamentar o sucedido: “É pena. Frequentávamos a mesma igreja”. A bola, como com muitos ingleses, esteve sempre presente na vida de Hook e, até, dos New Order, que em 1990 compuseram 'World In Motion' como canção de apoio à seleção do seu país, no Mundial que se disputou nesse ano. A Inglaterra cairia nas meias-finais, e uma reedição do mesmo tema em 2002 não ajudou a equipa a chegar mais longe do que os quartos. Pelo que só podemos questionar: quando é que Peter Hook compõe uma canção que leve a Inglaterra a vencer o Campeonato do Mundo? “Gostava que fosse possível, mas é muito difícil”, desabafa. "Se os Echo & the Bunnymen e as Spice Girls não o conseguiram, que hipótese temos nós?”, remata com uma última gargalhada. Que continue a rir por muito mais tempo.
Comentários