"Escreves umas canções, marcas uma data num clube noturno, toda a gente diz 'Boa!' e o dono comenta, 'Voltem na sexta à noite, vocês são bastante bons'. Tocas na sexta à noite e toda a gente diz 'Boa!' e um produtor vira-se para ti e diz, 'Venham gravar no meu estúdio, vocês são bastante bons'. Gravas qualquer coisa, há um agente que diz 'Vocês são bastante bons, querem vir até aos escritórios da 4AD em Londres?'. Tu dizes, 'Boa!'. Chegas lá, és capa de revista, toda a gente diz 'Boa!'. Andamos a ouvir 'Boa!'s desde que entrámos num clube noturno (…) Toda a gente gostava de nós. Foi surpreendente ser popular em Nova Iorque? Não, foi do tipo, 'Claro que somos populares, somos os Pixies, toda a gente gosta de nós!'. Não é que fôssemos a melhor banda do mundo, mas tínhamos qualquer coisa. As pessoas curtiam-nos."
em "The Oral History of a Band Called Pixies", Josh Frank e Caryn Ganz
O autor destas palavras é Black Francis, nascido Charles Thompson IV em Boston, no estado do Massachusetts, há 54 anos, e desde sempre o incontestado líder dos Pixies, autor de todas as letras, grande parte das melodias, e o homem cuja voz escutamos em discos como “Surfer Rosa” (1988) ou “Doolittle” (1989), álbuns que mais que mudar a história, criaram-na.
Sem os Pixies, não existiria aquilo a que a imprensa e os fãs acharam por bem apelidar de “rock alternativo”. Sem os Pixies, não teriam existido os Nirvana, e por arrasto todas as bandas que os Nirvana influenciaram. Canções pegajosas como mel e ruidosas como um Boeing. Versos sobre o Sansão bíblico, sobre partes anatómicas masculinas de tamanho superior ao normal, sobre romance, sobre alienígenas, sobre os Três Estarolas (com, até, algum espanhol metido pelo meio), fixando-se bem no ponto onde a sanidade mental e a loucura se cruzam. Onde a adolescência é fértil em imaginação e onde o grito sabe sempre melhor que a ponderação.
Desde o início de carreira em 1986 até mais ou menos 1991, ano em que editaram “Trompe Le Monde”, antes de discussões internas e choques de personalidade (entre Francis e a baixista Kim Deal, principalmente) terem colocado um ponto final na banda (reunir-se-iam em 2004), os Pixies foram juntando uma legião de fãs indefetíveis, obcecados com tudo aquilo que os norte-americanos botavam cá para fora – o género de pessoas que dizia “Boa!” a tudo aquilo que faziam. Atente-se no tempo verbal: “dizia”.
Pois que será difícil encontrar, hoje em dia, alguém que seja capaz de exprimir essa palavra contente quando confrontado/a com todo o repertório que os Pixies têm vindo a criar desde “Indie Cindy”, mal-amado álbum de 2014, até “Beneath The Eyrie”, o seu trabalho mais recente, lançado no início de setembro. Por todos os motivos e mais alguns: as pessoas crescem, deixam ficar para trás os heróis de outrora, preferem focar-se naquilo que são as memórias (mais ou menos sobrevalorizadas) do que já foi. Em suma: guardar o amor que sentiam naquele recanto em que sabem que ainda são jovens. Mais em suma: pensar unicamente em canções (ainda hoje) fortíssimas como 'Hey', 'Isla De Encanta', 'Gouge Away', 'Debaser' ou 'Gigantic'.
Quem assistiu esta sexta-feira ao concerto dos Pixies no Campo Pequeno, naquele que foi o seu regresso à capital após seis anos de ausência (com um concerto em Algés, em 2016, e dois no Porto, em 2014 e 2016, pelo meio), tinha muito provavelmente como objetivo único escutar esses temas que, décadas atrás, lhes foram transmitidos como um segredo bonito ora pela rádio, ora pela televisão, ora pelas revistas especializadas, ora pelos irmãos mais velhos (que têm o hábito de ser baluartes do bom gosto). A probabilidade torna-se certeza quando, ao longo do concerto, são mesmo os velhos clássicos aqueles que são melhor recebidos pelo público. Os demais são recebidos, apenas e só. Isto é: o público ficou lá para ouvir esses temas novos, mas não esboçou qualquer emoção perante os mesmos.
Lamentavelmente, a existência de novo álbum levou a que o foco fosse nele colocado, com os supracitados clássicos dispostos de forma dispersa no alinhamento ao longo de duas horas e pouco de concerto. E tudo até tinha começado muito, muito bem: 'Gouge Away', baixo pulsante, bateria mínima e coesa, alguns floreados de guitarra até à explosão que deixa o povo em polvorosa: I break the walls / And kill us all!, e logo a seguir o grito violento, homicida, de 'Something Against You' antes de 'Hey' e, sobretudo, daquela linha de baixo nos fazer recordar tempos idos de mãos dadas com a mais que tudo (we're chained, claro, mesmo que os outros versos metam demónios e prostitutas), e transmitir-nos desejos de paternidade.
Só que, depois, o descalabro. A novidade nada é perante a história. Esta guarda em si o peso do mito, o peso da memória, o peso da sensação anterior - que, ao contrário do que escrevia Horácio e dizia a personagem de Robin Williams n'”O Clube dos Poetas Mortos”, é sempre superior às sensações do presente. Nem vale a pena escrever que a voz de Black Francis já não é a mesma; sabiamo-lo à partida, tal como sabemos que nem todos podem ser Iggy Pop.
Se 'Nimrod's Son' ainda nos transmite uma fagulha de crença em relação à nova vida dos Pixies pós-2004 e pós Kim Deal (voltou a abandonar a banda em 2013), com a laringe e os pulmões de Francis a debitar incesto, tudo o resto nos soa demasiado sonolento ou, pior ainda, irrelevante. O público parece pensar como nós, recebendo 'Monkey Gone to Heaven' como quem beija uma hóstia, e aplaudindo de pé o espetáculo à parte que foi o anti-solo de Joey Santiago em 'Vamos', onde se propôs brincar um bocadinho com a guitarra e os pedais de efeitos como quem liga para o 112 para pregar partidas.
'Here Comes Your Man' e 'Where Is My Mind?', os temas dos Pixies que poderiam ter sido sucessos de vendas se a grande máquina do capital sonoro apostasse no que vem do underground, foram dois dos momentos altos da noite. Por falar em máquinas: 'Bone Machine' também deu um ar de sua graça, antes de a banda quase derrubar o Campo Pequeno (até um curto mosh deu ares de sua graça) com 'Debaser' - “quase”, porque com esta idade já não se derruba, constrói-se. O final com 'Gigantic', semi-anti-climático (uma canção destas deveria ter sido interpretada bem mais cedo), mereceu aplausos retribuídos com simples acenos e sorrisos, como os pinguins do “Madagáscar”. Tudo somado, valha-nos mesmo a memória; é que destes Pixies do presente nada de digno poderá ser relatado.
Antes do quarteto, uma dupla transformada em quarteto: a que compõe os Blood Red Shoes, que no início desta década ameaçaram vir a ser um caso sério de popularidade (a culpa foi de “Fire Like This”, o seu segundo disco), e que agora se limitam, tal como os Pixies, a viver das glórias passadas e a debitar trabalhos novos só para mostrar que ainda respiram. Apesar disso, e apesar do curto intervalo de tempo que tiveram para mostrar as suas qualidades (uma escassa meia-hora), quando uma banda sobe ao palco para debitar tamanha dose de ruído rock n' roll só poderemos mesmo elogiar. E quando um baterista sobe para cima do seu instrumento como Steven Ansell subiu, numa oferenda ao Grande Deus Elétrico, só poderemos mesmo erguer os braços em mesura.
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