"Pobres Criaturas" é a última incursão pelo imaginário visceral e muito visual de Yorgos Lanthimos, realizador de "A Favorita", conhecido por mergulhar as suas personagens em ambientes bradados a humor negro e circunstâncias absurdas. Neste seu novo filme, que em algumas nuances faz lembrar "Canino" (2009), uma das suas primeiras longas, o grego convida o espectador a assistir à incrível evolução de Bella Baxter (Emma Stone), uma jovem mulher cujo corpo foi ressuscitado ao estilo de Frankenstein pelo Dr. Godwin Baxter (Willem Dafoe), um cientista brilhante/homem traumatizado que quer levar a sua ciência e a sua arte tão longe quanto possível (estando um pouco a marimbar-se para as regras da sociedade em que vive).
Na história, acompanhamos então o crescimento e maturação de Bella, um bebé preso no corpo de uma mulher adulta — e que a cada dia que passa fica ansiosa por aprender mais e absorver tudo o que a rodeia. Até que a determinada altura, faminta da mundanidade da vida que lhe falta e a sentir-se enclausurada pelas amarras e limites impostos pelo seu criador, Bella decide fugir com Duncan Wedderburn (Mark Ruffalo), um advogado debochado, numa aventura turbulenta que passa por várias cidades (Paris, Londres, Lisboa, Alexandria). E é durante essa escapadela envolta numa enorme aura de curiosidade que vamos testemunhar a jornada de emancipação de Bella, que vai combatendo amiúde os vários estigmas e preconceitos do seu tempo (o filme é propositadamente ambíguo quanto à data em que a ação decorre, embora misture a Era Vitoriana do séc. XIX com um futurismo distópico).
Resumir o filme em poucos parágrafos é difícil, mas João Dinis, uma das vozes do podcast, tentou fazê-lo. "É um coming of age feminista de um monstro", sugere, completando que aquilo a que assistimos é a "absurdidade" esperada quando se faz a "transferência de cérebro de um bebé e metemo-lo num corpo de um adulto" — com tudo o que possamos imaginar implicar do ponto de vista social e humano.
Mas "Pobres Criaturas" não é só sobre as dores de crescimento e os primeiros passos descoordenados de Bella durante a transição da infância até chegar à vida adulta. A par dos temas da sexualidade e dos constrangimentos sociais com os quais a personagem principal tem de aprender a lidar, é explorada também a necessidade de os homens do filme quererem controlar todos os aspetos da vida de Bella. Quem o diz é o australiano Tony McNamara (indicado ao Óscar por "A Favorita" e criador da série "The Great", é o argumentista responsável por adaptar o livro homónimo do escocês Alasdair Gray, publicado em 1992 e que está na origem desta história). Segundo McNamara, o filme, apesar tocar em temas como o feminismo, a ética, entre outros, é igualmente uma sátira mordaz aos homens.
A dar corpo e vida a tudo isto está um elenco repleto de talento, com nomes e caras conhecidas dos aficionados do cinema e séries, que vão bem além do trio principal. Emma Stone (que, é importante frisar, assume também o papel de produtora), Mark Rufallo e Willem Dafoe são obviamente os nomes que mais saltam à vista, mas Christopher Abbott, Margaret Qualley, Ramy Youssef ou Jerrod Carmichael também prestam o seu contributo. Mas, para o singelo coração luso, há outras duas personagens que são mais do que meros panos de fundo: a cidade de Lisboa e o fado de Carminho (mais concretamente a cena em que interpreta o tema "O Quarto").
No livro original, a narrativa decorre em Glasgow. Na adaptação para cinema, esta salta para várias cidades, sendo a capital portuguesa uma delas (ainda que com ares futuristas). É lá que Bella, depois de fugir com a personagem de Mark Rufallo, descobre o mundo e quer viver e experimentar tudo — desde um delicioso pastel de Nata aos prazeres da intimidade. É também em Lisboa que, pegando nas palavras de Rufallo, os dois constroem uma relação "ao estilo Sid [Vicious] e Nancy [Spungen] da Era Vitoriana", pois juntos são "apenas destruição, hedonismo e sexo".
"Pobres Criaturas", de resto, é um dos favoritos da crítica de 2023 e já amealhou mais de 350 nomeações para prémios. O sururu começou com o Leão de Ouro em Veneza, galvanizou ao ser o vencedor de dois Globos de Ouro — Melhor Filme (Musical ou Comédia) e e Melhor Atriz (Musical ou Comédia) — e nesta última semana recebeu 11 nomeações para os Óscares (incluindo as de Melhor Filme, Melhor Realizador, Melhor Atriz Principal, Melhor Ator Secundário e Melhor Argumento Adaptado).
Contudo, não se pode falar de todo este sucesso sem falar da interpretação de Emma Stone (que já conta com quatro nomeações para os Óscares, ganhando por "A Favorita"). Não só pelo trabalho que desenvolveu para conseguir interpretar os vários estágios de crescimento de um bebé/criança no corpo de um adulto (a fala balbuciada, a simples aprendizagem do andar, a inocência e ingenuidade próprias do desenvolvimento infantil), mas também pela maneira como elaborou toda a transição de uma mulher sem vontade própria e controlada por homens para uma mulher forte e determinada, e que desafiou a mentalidade de uma sociedade rígida ao querer assumir as rédeas do seu destino.
- Nos créditos finais, falou-se das nomeações para os Óscares, e de "Capitães do Mundo" (Netflix), "Registo Criminal" (Apple TV+), "Godzilla Minus One" (Cinema), "Echo" (Disney+) e "Pesadelo Americano" (Netflix).
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