A série-novela terá 16 episódios, que têm saído todos os dias de semana na RTP e na plataforma de streaming RTP Play, e tem batido os recordes de audiência da estação para conteúdos deste género. De acordo com Manuel Pureza, “Pôr Do Sol”, apesar de brincar com os maneirismos das novelas, pode ser considerada uma homenagem a algo que dá muito mais trabalho do que aquilo que as pessoas imaginam. E ele sabe do que fala dado que passou 10 anos a realizar novelas.
A origem da ideia para a série, a utilização dos atores clássicos de novelas para a protagonizar, a importância do humor, uma comparação pouco óbvia com "Deadpool" e ainda o potencial de uma série portuguesa ficar popular na Netflix foram alguns dos temas em destaque neste episódio, cujo jingle (infelizmente) não será cantado por Toy num fato de motard.
Vê aqui todos os episódios do “Pôr Do Sol” na RTP Play
- Ouve o episódio aqui:
Pode também ler aqui a conversa de Manuel Pureza com João Dinis, Mariana Santos e Miguel Magalhães:
João Dinis (JD): A conversa de hoje é com o ex-monitor de campos de férias e atual realizador da série "Pôr do Sol", que tem sido um fenómeno nas redes sociais, Manuel Pureza. Manuel, estás bom?
Manuel Pureza (MP): (Risos) Estava bem até agora. Esta introdução agora coloca uma pressão... "Ex-monitor de campos de férias" é muito mais importante do que ser realizador, sem dúvida nenhuma. Estou muito contente de estar aqui convosco. Espetacular.
JD: Ter sido monitor de campos de férias (foi um "passarinho" que nos disse isso) ajuda-te a fazer novelas e séries hoje em dia, ou não?
MP: Acho que ajuda qualquer dinâmica de grupo. Penso muitas vezes nisso. Já não faço novelas há uns 2 anos [mas] fiz novelas durante 10 anos e muitas vezes comparo o ambiente que se vive numa rodagem com o que se vive num campo de férias: é um trabalho de equipa.
Mariana Santos (MS): São meninos para fazer birra?
MP: Também. Atores, esses bichos [Risos].
JD: O "Pôr do Sol" é, provavelmente, o maior fazedor de memes do Twitter português nos dias que correm. Quem anda pelo Twitter já deve ter visto pelo menos um ou outro. E é uma série, que é uma paródia a novelas, e - isto é uma opinião minha - um festival de cringe assumido. É justo dizer isto?
MP: É absolutamente justo, apesar de o termo "cringe" ter "nascido ontem". Agora um gajo anda na rua e diz "ah, estou a ser tão cringe". Não, estás a ser parvo, só. A particularidade desta série é que quase toda a gente que fez parte da equipa artística (atores e técnicos) está habituada a fazer novelas e aquilo que nós fizemos foi permitir-lhes brincar com "isto". É muito diferente uma pessoa dizer "ah, as novelas são todas parvas, agora vou gozar com as novelas"; outra coisa é "eu já lá estive. I've seen things". É completamente distinto porque tu já estiveste no caldeirão a arder, portanto podes dizer que o inferno é mais ou menos assim. No meu caso, comecei por ser assistente de realização em cinema de vários realizadores portugueses e aprendi com muitos deles. Mas acho que o meu maior "ginásio" foi mesmo as novelas porque obrigam-te a pensar rapidamente, com pouco tempo e dinheiro QB.
A indústria em Portugal é das novelas, não é do cinema. Mas, de qualquer das formas, há ainda uma certa sobranceria a falar sobre novelas. Se acham que as novelas portuguesas são uma grande porcaria, vejam as novelas espanholas... São muito piores. As novelas portuguesas têm a vantagem de estar aqui no cu da Europa e perto do Brasil. Houve uma grande quantidade de atores brasileiros que de repente entraram nas novelas portuguesas. Eu dirigi pessoas que vi nas novelas quando tinha oito anos. Há três anos dirigi pessoas que eram vilões das novelas que eu via quando era puto. Isso é muito assustador porque eu sou animador de campos de férias. Foi assim uma ideia louca, foi isso.
JD: Há uma legitimidade diferente por teres feito novelas? Quase como "só se fores gordo é que podes fazer piadas de gordos"?
MP: (Risos) É mais ou menos isso. Uma coisa que me deixava muito triste é que as pessoas não fazem ideia do que é que é fazer uma novela. É pior do que fazer a maratona, é terrível. São nove meses em que eu vejo mais o Manuel Cavaco [ator que também entra em "Pôr do Sol"] do que o meu filho. Isto é grave, e eu adoro o Manuel Cavaco. Isto acaba com famílias, amizades, outros projetos que uma pessoa queira fazer. Hoje em dia, acho-me mais realizador de séries do que de cinema ou novelas, apesar de o meu currículo ter muitas mais coisas de cinema e bastantes novelas.
Eu fui assistente de realização do Fonseca e Costa durante oito anos, fiz curtas, ganhei o MOTELX. Sei que ainda sou novo, mas já fiz algumas coisas e trabalhei com atores de quem gosto muito. O "Arena", do João Salaviza [curta-metragem portuguesa que recebeu a Palma d'Ouro no Festival de Cannes em 2009], começou a ser escrito na cozinha da minha casa porque éramos todos amigos. Tenho um gosto enorme nos bons realizadores que surgem aí, mas acho que é um pouco injusto quando as pessoas dizem: "isso é malta das novelas". A Isabel Abreu já fez novelas comigo [por exemplo].
JD: Quase todos os atores portugueses que têm algum reconhecimento acabaram por passar pelas novelas.
MP: [Ironiza] Há pessoas que passam muito "despercebidas", como o Albano Jerónimo, o Nuno Lopes e diria até o Pêpê Rapazote: fez a "Rainha das Flores", que é uma cena muito importante, e depois entrou no Narcos, também era uma série pequenina…
JD: O projeto é da tua autoria, do Henrique Dias e do Rui Melo. O Henrique Dias escreveu já para uma série de pessoas, e fazia parte, com o Roberto Pereira e o Frederico Pombares, do "Ferro Ativo", que também foi um fenómeno de culto. E o Rui Melo, que é ator e foi também o encenador do "Avenida Q", que também foi, há pouco tempo, um fenómeno no teatro. Estava a ler uma entrevista do Henrique Dias em que ele citava o Conan O'Brien, que dizia que o humor é uma intersecção entre a parvoíce e a inteligência. Achas que o "Pôr do Sol" é um pouco isso?
MP: Eu tenho uma sorte gigante de ter ao meu lado o Henrique e o Rui. Há uma coisa que o Conan também diz no seu discurso de despedida do seu último programa, que é "faz aquilo de que gostas com as pessoas de que gostas". Tenho por eles os dois a maior estima e a maior admiração pelos profissionais que são e aquilo que são capazes de dar. Mesmo que tudo falhasse e a realização fosse uma bela bosta, os textos são tão bons que o meu trabalho é só dizer ação e tapar os olhos. [Risos]
Não é fácil fazer humor inteligente. Nós podíamos ter caído na "bardajonice". Apesar de o cavalo se chamar Testículo [uma das personagens da série tem um cavalo com esse nome], há uma razão: ele ganhou a volta mais rápida do Autódromo do Estoril porque é mais aerodinâmico e "pela garra que ele tem" [cita uma das falas da série]. Ele só tem um testículo, mas o Lance Armstrong também. E está muito atrás do Testículo em termos de velocidade, como toda a gente sabe. Eu acho que o Henrique tem razão. [Risos]
Para além dissom há uma outra figura importante, que é a Andreia Esteves, que não só é minha namorada e mulher, mas também é a pessoa na Coyote Vadio que manda no dinheiro, produz as coisas e faz acontecer. Eu tenho uma ideia e ela diz "pois, não há dinheiro para isso, tens de ter esta ideia".
Este conjunto de quatro pessoas fez acontecer uma coisa que, a nós, nos divertiu imenso e que agora as pessoas estão a fazer memes. Queres melhor do que isso? Parece quase que têm t-shirts com a nossa cara. Ontem fui jantar à Praça do Chile com a Andreia e na outra ponta da rua alguém gritou "Pureza, Pôr do Sol!", mas eu não sabia quem era. "Nós gostamos muito da série". Eu fiquei muito confuso. Como é que eles sabiam quem eu era? Eu estou atrás da câmara.
MS: Eu sinto que, por detrás de todas as partilhas, de toda a malta que acha que isto é genial, há sempre uma pergunta que é clichê: como é que se lembraram de fazer isto?
MP: Eu podia dizer que tinha sido efeito de estupefacientes, mas não foi. Se perguntares a qualquer pessoa em qualquer país que tenha feito um dia uma novela, quando estava a dizer determinado texto, [já terá pensado] "e se eu dissesse isto a gozar?". Houve uma série que eu fiz, a "Maternidade", para a RTP, e os estagiários da Maternidade eram o Fernando Pires e o José Mata. Entre takes, nós fazíamos versões B. Os gajos estavam a dar oxigénio a alguém e de repente agarravam na máquina, inalavam e caíam. Nunca pudemos filmar isso porque a produtora era uma produtora maior, o cliente era a RTP e era uma coisa sobre bebés, sobre dar à luz e ter esperança e não era um gajo estar a drogar-se com oxigénio ao lado de uma grávida. Mas nós tirávamos muito gozo desses entre takes. Entre dizer "não, ela tem de viver. Vamos ligar a máquina, por amor de Deus" e inalar e cair, tivemos sempre de optar pela versão oficial. Acho que isto nasceu daí.
Não sei se vocês fazem ideia, mas o Rui Mendes, o Duarte do “Duarte e Companhia”, é o ator português com melhor timing de comédia porque é um fervoroso fã do John Cleese. E nós temos sempre o Rui Mendes como o avô porreirinho, coitadinho e ele é o tipo que está sempre a propor uma versão B. A ideia surgiu de uma espécie de cobrança geral que nós fizemos a nós próprios de "um dia ainda vou fazer um cavalo que se chama Testículo e só corre para trás" [Risos].
Miguel Magalhães (MM): Não é a primeira vez que tu tentas, de certa forma, satirizar a televisão. Já tinhas feito com o "Desliga a Televisão" há uns anos. O que é que achas que correu melhor no "Pôr do Sol" do que no "Desliga a Televisão" para se poder ter tornado num fenómeno maior?
MP: A equipa do "Desliga a Televisão" é praticamente a mesma que está a fazer o "Pôr do Sol". Desta vez o Henrique [Dias] agarrou nas rédeas da coisa e, não descurando de todo o valor da Fremantle enquanto produtora, esta é produção nossa. Depois do "Até Que a Vida Nos Separe" [série realizada por Manuel Pureza para a RTP que saiu em 2021] que , a Coyote Vadio começou a cimentar algumas coisas e começámos a produzir à nossa maneira. Isto é, a interlocução direta e de confiança entre eu, realizador/produtor, com o canal é uma mais valia gigantesca porque eu não estou a falar com um produtor, que também tem uma opinião sobre o que é que tem piada ou não. Aquilo de que o Henrique gosta, eu também gosto. Portanto aquilo que vocês gostam provavelmente eu também gosto. Aquilo de que gosta um produtor que tem mais 30 anos do que eu se calhar não é bem a mesma cena. Ou seja, não é que eu esteja a dizer que a malta da Freemantle é mais velha, não é nada disso. [A questão é que] de facto, por mais que eles gostassem daquilo que eu gosto, há sempre um interlocutor a meio. E isso é um bloqueio.
Posso dizer-vos que a nossa relação com a direção de programas da RTP é boa ao nível de "vamos discutir a ideia". Isto não é muito comum. Eu acho que o maior problema que acontece na nossa televisão e no nosso meio é haver pessoas com muitas certezas. "Ah não, isso não vai ter graça". Calma, vamos tentar. Eu acho que vai ter graça um cavalo chamado Testículo, tenho quase a certeza porque em última instância ele vai dizer "meu Deus, estive a minha vida a tratar do Testículo e não liguei à minha mulher". Sabemos que estas frases vão acontecer.
Há aqui várias coisas que foram testadas, nomeadamente eu acho que várias vitórias foram importantes. 30 minutos de programa é uma vitória para o humor; 45 minutos de programa é cansativo, é um exagero e tu a meio não vais ter fôlego na captação e concepção das coisas. A proposta inicial era de 20 e tal episódios de 45 minutos e nós dissemos "não, não, pouco e curto". Foi uma vitória de negociação. E, depois, era evidente que teria de ser diário, porque se estamos a fazer esta sátira, então formalmente isto tem de ser absolutamente colado àquilo que estamos a satirizar. Se tivesses o "Pôr do Sol" uma vez por semana as pessoas não se agarravam.
MFS: Sim, já não te lembravas sequer de quem é que era irmã de quem, o que é que tinha acontecido.
MP: Esquece, não dá. Tu quando clicas na Netflix fazes aquele binge watching manhoso em que te sentes miserável porque não tens mais nada para fazer a não ser veres a série por completo. Mas chegas a final a achar "ah, muito fixe". E, de repente, viste seis temporadas d'"Os Sopranos" e o teu filho já tem 17 anos e está na universidade. Para responder à tua pergunta de forma concisa, desta vez, muitas coisas das que foram batalhadas e negociadas até pela RTP funcionaram. E o reconhecimento vem sobretudo da malta que reage não só no Twitter, mas o crescimento que temos tido nas audiências. Tem sido uma coisa sustentada, que tem vindo a crescer. E, apesar de eu não ser um tipo obcecado com números, gosto de ver que além de ser uma coisa que acho que está a resultar no Twitter, no Instagram, nas redes e tudo mais. Gosto de ver como é que as pessoas que não veem a coisa na RTP Play estão a reagir. Sabemos também que na RTP Play está a ser um boom fantástico e isso é bom - há outras maneiras de ver televisão hoje em dia.
JD: Que feedback é que tiveste de quem está a fazer novelas agora?
MP: Inveja. Recebo telefonemas a ameaçar-me. "Se houver uma segunda temporada e eu não entrar, eu nunca mais te falo". Isso deixa-me feliz, obviamente, mas isto foi escolhido a dedo, como devem calcular. É óbvio que o Manuel Cavaco tinha de entrar, é óbvio que a Noémia Costa tinha de entrar, a Carla Andrino, o Marco Delgado, a Gabriela Barros, o Rodrigo Saraiva, a Sofia Aparício, todos eles. Há mais pessoas que vão entrar e é óbvio que tinham de fazer determinadas personagens.
É óbvio que há mais uma dezena de pessoas que eu gostaria muito de convidar, evidentemente. Há história para isso, assim que queria Deus Nosso Senhor do Coisinho [referência à série] cá estaremos para trazer mais coisas, com o risco gigantesco de [tal como] o segundo álbum de uma banda de rock de que uma pessoa gosta: o primeiro é altamente, o segundo é "o que é que aconteceu aqui?". Já estamos a preparar-nos com armas e bagagens para se houver uma segunda temporada.
MS: Falavas há bocadinho que o "Pôr do Sol" estava a correr particularmente bem na RTP Play. Este formato foi de alguma forma pensado para ir buscar o público mais jovem, quer pelas referências, quer por poder ser visto online?
MP: Eu gosto disto. Eu fiz uma coisa que eu gostasse de ver. Nós fizemos coisas que gostássemos de ver. Não tenho nada contra as séries de época, mas já quando fizemos o "Até Que a Vida Nos Separe" as séries em que me inspirei foi o "High Maintenance", o "Ramy", o "Six Feet Under", até um certo ponto "Os Sopranos". Isto é o que eu gosto de ver, portanto eu acho que é natural que faças esta pergunta, mas acho que devíamos era começar mesmo a tentar contar histórias de agora. Não há mal nenhum com "O Atentado", com o "Terra Nova" ou até um certo ponto a "Crónica dos Bons Malandros", mas nessas séries tem de se perceber que as barreiras que se estão a quebrar na ficção (Netflix, HBO, etc.) já não estão nestes moldes, estão noutras narrativas - "Sex Education", "The End of the F***ing World", "Euphoria". Não precisa de ser só sobre malta fixe que é bué rock and roll e se droga, não é nada disso. São só novas narrativas, novas maneiras de montar, novos ritmos, etc.
Eu sei que o meu filho que tem 10 anos não vê televisão; vê Netflix, Youtube. O tempo que ele aguenta perante uma determinada narrativa pomposa, um episódio só dedicado a descrever como é que é o Ramalhete dos Maias... não vai dar. Já é difícil de ler, muito mais de ver um episódio só sobre o Ramalhete, é estranho. E, atenção, eu adorei "Os Maias" e adorei esse episódio, mas o que a malta quer ver agora é o que nós sempre quisemos ver. Vejam o "Taxi Driver"... não é "O Atentado", nem é o "Até Que a Vida Nos Separe", nem sequer é o "Pôr do Sol", mas o ritmo, a montagem, a violência, a cadência, o conflito interior são coisas trabalhadas a um nível que eu acho que o "Pôr do Sol" foi só uma coisa que nós queríamos muito fazer porque gostávamos muito de ver na televisão.
O Henrique tem 50 anos, ok? Mas escreveu o "Herman Enciclopédia", escreveu o "Curral de Moinas", escreveu uma série de coisas. Ou seja, fez parte da equipa das Produções Fictícias para coisas emblemáticas da minha juventude e da minha infância. A nossa conjugação de gostos levou a que nascesse uma coisa que nós, sim, achamos que a malta nova vai gostar, como nós gostámos do "Herman Enciclopédia", como nós gostámos do "Crime na Pensão Estrelinha", coisas deste género.
MFS: Sim, a verdade é que a série está cheia de referências que eu não esperava encontrar. Desde "Tu és uma mulher independente, até tens MB Way e tudo" ou um drama por causa de uma Insta story. Sinto que é uma coisa que apela muito à geração Z mas que não impede que seja feito de forma inteligente.
MP: Qualquer pessoa de 70 anos que tenha netos já se cruzou com stories e até já foi "vítima". Tipo "Parabéns, avó". Ela nunca vai ver. Nós temos reações de pessoas mais velhas que estão a adorar ver isto. E, portanto, também se conseguem relacionar. O público do “Pôr do Sol” é uma mescla muito interessante, que, mais tarde ou mais cedo alguém, no seu triste curso de sociologia, vai estudar e vai dar uma tese engraçada. É malta que vê no RTP Play, é malta que vê em diferido nas boxes, malta que vê em direto, malta que vai à procura.
MM: A primeira coisa que o “Pôr do Sol” me fez lembrar foi o “Deadpool”, porque satirizou o cinema e os filmes de super-heróis. Tendo um orçamento inferior em relação a outros filmes de super-heróis, parte do sucesso foi como comunicou. E o “Pôr do Sol”, se calhar não tendo isso como influência, seguiu um bocadinho essa receita para poder crescer e estar a crescer cada vez mais de episódio para episódio.
MP: Eu adorei o “Deadpool”. Adorei precisamente por essas coisas todas que referiste. Mas a comunicação é feita também por nós os quatro. E é um bocado aquela onda de: porque é que no dia a seguir a uma novela há sempre uma cena assim “líder no horário, líder nas cenas das cenas, líder da cena da nice às nove da noite, share 23% da minha avó”. E um gajo pensa assim: “Man, eu não preciso de saber isto”. Ou quando o telejornal para para dizer assim: “Este mês fomos outra vez líderes de não sei quê, havia queijo Limiano”. É bueda chato!
Então a nossa ideia foi, e aí sim é uma cena mais agressiva, todos os dias de manhã, às oito da manhã, eu, com esta máquina que Deus me deu [aponta para o telemóvel], de repente tenho de fazer esse post a dizer: “Hoje foi a novela mais vista em televisões das novas, daquelas fininhas. Obrigada por estar connosco”. E temos várias preparadas até ao final, e eu acho que aí é agressividade da boa, com fair play, que é aquela coisa de: “Se os outros comunicam desta maneira, porque é que comunicam desta maneira”? Será que é porque não têm a certeza do que é que quer dizer rating? Sim, talvez seja isso. Vamos pôr aqui rating na frase. “Obrigada pelo nosso rating.” What the fuck?
E isso é que é fixe. Para já, é saber as regras do mercado. Quem fez o “Deadpool” conhece perfeitamente o universo daquele tipo de filmes. É a mesma coisa que tu fazeres jazz: tu conheces a gramática da música, e, como dominas a gramática da música, consegues depois ir para a frente e tudo mais. É como a poesia. O Jodorowsky dizia “Poetry is violent”. É aquela coisa de: um gajo domina a técnica e depois começa a criar poesia. E o “Deadpool” é exatamente isso: eu sei o que os gajos fazem, agora vou abandalhar isto tudo e dizer “Ya, nós também pensámos em cenas com pessoas sem cabeça”. Isto é fixe, é ótimo, é espetacular. E acho que nós fomos um bocadinho por aí e agora que falaste no “Deadpool” eu pensei “Ya, é verdade”.
JD: Hoje os três principais canais da televisão, a RTP, a SIC e a TVI, têm novelas e séries em que o teor cómico às vezes acaba por estar mais presente do que o teor dramático. O “Amor, Amor”, o “Festa é Festa” e agora o “Pôr do Sol”. Achas que isto é um sinal dos tempos? Ou seja: que as pessoas precisam de mais humor por causa da situação que estamos a viver de pandemia? Ou achas que já vem tarde e que já se devia ter feito isto há mais tempo?
MP: Como é óbvio [já devia ter sido feito há mais tempo]. Eu não sou gajo de dizer assim: “Não, nós é que estamos a passar a pior cena do mundo, uma pandemia.” Man, a segunda guerra mundial diz alguma coisa a alguém? Pessoas a matar outras pessoas com bombas, mães a fugirem com os filhos, judeus a morrerem ao tiro! E mesmo assim, há de ter havido alguém nessa altura que fazia um humor do caneco!
É claro que o período que nós atravessamos é chato e difícil, e é dramático em muitas situações. Eu perdi pessoas para a COVID. Portanto estou à vontade para falar. Não é que seja a cena da legitimação do gordo. É um período difícil, mas o humor é essencial para tudo, para viver! O humor é das perspetivas mais interessantes sobre a vida, quando é bom. Sim, o “Festa é Festa”. Sim, o “Amor, Amor”. A diferença para o “Pôr do Sol”, e não menosprezando de todo os outros produtos, é que quando entra graça no “Pôr do Sol” não entra o “fó nó nó nó nó, vem lá o núcleo cómico, chá, lá, lá” [a cantar].
MFS: Não estás a dizer às pessoas que têm de se rir.
MP: Ya! “Vêm lá os tontos. Pi pi ri ri pi pi” [a cantar]. Quando fazia novelas, e fiz dez anos de novelas, aquilo que mais odiava eram os núcleos cómicos. Odiava de morte. Porque não achava graça. É horrível, mas eu não acho graça a dizer assim “Epá, hoje, pá, estou com o lápis afiado”.
O desafio do “Pôr do Sol” foi: como é que nós fazemos o núcleo da Madragoa, se ele é o mais próximo do núcleo cómico de novelas? É fazer a Madragoa o mais Madragoa possível. O Tó Mané [personagem da série] quando entra: “Epá, não sei quantas, mandas as fotos da tua cenoura à tua cunhada”. Pum, pum, pum, pum, pum, pum, pum [a cantar]. E eu aí acho piada porque já tive de fazer cenas assim. E ele também, o Tó Melo [ator que encarna a personagem Tó Mané] também teve de fazer. Eles encontraram uma maneira de fazer que não precisa do “fom, fom, rom, rom, fom, fom” [a cantar]. Por isso é que a Ivone diz “Ó Elsa, olha que fica tudo a cheirar a ‘Somos Portugal’!”. Eu ainda gosto mais da “Olha que o puto está a fumar as beatas do chão.”
JD: Eu adoro que o Tó Mané nunca tenha uma letra para os fados que canta [a personagem canta fado mas nunca se percebe grande parte da letra].
MP: La, la, rai, la, la, rai, la, rai, rai [a cantar]. Essa foi no momento. O Rui Melo compôs esse trecho e eu comecei a pensar: “nas casas de fado, um gajo que é bonacheirão faz o ‘La, la, rai, la, la, rai, la, rai, rai’. E o gajo fez essa e eu chorei a rir no ensaio. Parámos dez minutos, toda a gente a rir, os figurantes todos a rir, o gajo a rir-se. E eu disse: “Pá, vamos fazer a cena, o ‘la, la, rai, la, la, rai, la, rai, rai”, cantas o refrão, a malta bate palcas, tu vens à mesa, comes uma bucha e no momento em que já não houver texto começas outra vez”. E eu acho que as pessoas percebem.
Por exemplo: o José Cid e a Dulce Pontes, que levaram connosco ali no primeiro episódio [há várias piadas dirigidas a ambos nos episódios]. É por admiração. O fadista de bairro, do “la, la, rai, la, la, rai, la, rai, rai”, se olhar para isto com atenção, percebe que é de profundo carinho. É a mesma coisa que o Monchique a fazer de Amália. E tu ficas tipo: “Man, é exatamente isto”. E um gajo gosta da Amália.
JD: Porque é que achas que se continuam a fazer mais novelas do que séries? É porque é mais barato ou é porque as novelas são mais exportáveis?
MP: Essa coisa do exportável é muito relativo. Estamos a exportar novelas para onde? A que preço? Qual é que é o preço de custo e qual é que é o preço de venda? Isso dava pano para mangas para muita conversa. Eu acho que se fazem mais novelas do que séries porque o público é um bicho difícil de compreender e que demora tempo a treinar, sem menosprezo nenhum. Ou seja: não estou aqui a dizer que tem de ser um público treinadinho ou amestradinho. Pelo contrário. A questão é que a novela está enraizada como o formato narrativo que chega a muita gente.
Se tu pensares na realidade brasileira, a maneira de educar muita gente é através da novela. Porque ela tem esse caráter de ação social e de formação e de educação. No nosso país, o formato novela está enraizado na sociedade como o escape, como a companhia. A série é uma situação recente. Lembro-me de, quando era muito miúdo, havia uma série italiana que era “O Polvo” sobre a máfia, e o país parava. Eu tentei fugir às regras dos meus pais para ver o “Twin Peaks” quando passou. Era um fenómeno! Porque havia uma de vez em quando que passava à terça-feira ou à quarta-feira.
Agora as séries chegaram para ficar, porque são formatos curtos, muito mais interessantes do ponto de vista narrativo, de construção e de produção, mas são mais caras. Uma novela não é barata, mas é uma economia de escala. Tu fazes 300 episódios, que te saem naturalmente mais baratos ao episódio do que sairá uma série.
E o dinheiro envolvido numa produção da RTP é diferente do dinheiro envolvido numa produção da SIC ou da TVI. A SIC e a TVI não investem em séries desta forma. Apesar de a SIC agora estar com a Opto a fazer alguns investimentos interessantes, porque, lá está, está a fazer uma plataforma em que tu, para veres, pagas "X" euros. "X" euros vezes 100 pessoas são muitos mais euros que depois podem legitimar um bocado o investimento. A indústria está nas novelas ainda. Nós temos excelentes realizadores de cinema, excelentes realizadores de séries. Mas muitos deles já passaram também pelas novelas, porque é lá que tu tens aquela garantia de que isto nunca vai mudar.
Acho que a novela está a ameaçar mudar há imenso tempo. As ideias não se estão a esgotar, mas estão a repetir-se muito. Tu picas um lado, picas o outro: o bem me quer e a serra. Na serra há queijo e há pão. Dentro daquela lógica, são todos do campo, enfim. E o “Pôr do Sol” vai buscar os cavalos da “Terra Brava” e da “Roseira Brava”...
MFS: Manuel, pegando no que estavas a dizer há bocadinho de as séries terem vindo para ficar e também pegando numa coisa em que disseste no início deste episódio em que mencionaste a “Casa de Papel”, eu queria que tu me dissesses quando é que achas que vamos ter uma “Casa de Papel” portuguesa. Brevemente vamos ter na Netflix a primeira série portuguesa, a HBO também vai tendo umas coisinhas. Quando é que achas que vamos ter assim um fenómeno que também pode ser ele cheio de clichés?
MP: Eu não me quero alongar muito nisso. A Netflix está atenta. Sem dúvida nenhuma está muito atenta. Do lado da Coyote, esta viagem mais a sério começa há três ou quatro anos quando começámos a produzir filmes e produzimos depois o “Até Que a Vida Nos Separe”. O “Até Que a Vida Nos Separe” foi um marco mesmo muito importante para nós. E eu sei que as plataformas estão muito atentas e sei que, mais cedo ou mais tarde, isso há de acontecer sem dúvida alguma. O “Glória” [primeira série portuguesa a ser produzida especificamente para a Netflix] vai ser um marco absolutamente extraordinário.
Provavelmente está para mais breve do que pensamos o dia em que em vez de um telejornal anunciar que um ator português conseguiu entrar na série “White Lines”... O “White Lines” passa em cinco países, não passa em 198. É excelente, mas é a prova da nossa pequenez. E é um dos nossos grandes atores. É o Nuno Lopes, que é brutal. .
Portanto, a Netflix ou a HBO funcionam nessa lógica regional e o global footprint de uma série desse género está para acontecer muito para breve, para lá do “Glória”. E o primeiro grande teste será, sem dúvida, o “Glória”. Nós também precisamos disso para a televisão portuguesa, que é: “então se nós estamos a fazer isto para a Netflix porque é que não vamos apostar cá porque temos a RTP Play?”. A RTP Play é incrível enquanto plataforma. Então eu acho que nós também devemos começar a virar a coisa ao contrário e a dizer: “Epá, se calhar aqui era mais fixe fazermos qualquer coisa mais aguerrida, com mais qualidade”.
JD: Aliás, a “Casa de Papel” é um ótimo exemplo disso, porque começou na televisão espanhola e só depois é que foi comprada pela Netflix.
MP: Exatamente.
MM: Para fechar, não fossemos nós um podcast e uma newsletter de sugestões, além do “Pôr do Sol”, obviamente, o que é que tu recomendarias aos nossos ouvintes e leitores?
MP: No momento eu estou a regressar aos “Sopranos”, porque regresso aos “Sopranos” vezes sem conta. Estou a ler o “Misery” do Stephen King. Estou a adorar. Estive a ler também o “Farewall to Arms” do Hemingway. Tenho lido assim uns livros engraçados. De séries, aquilo que eu tenho estado a consumir é o “Kingdom” da Netflix e estou a curtir imenso. Porque estou um bocado farto de zombies. Eu tenho o “Walking Dead” todo em banda desenhada e adorava a banda desenhada. Mas quando começou na televisão eu pensei “aquilo é um ganda estucha”, já sei que os gajos estão todos mortos e, ya, a sobrevivência. A certa altura começou-me a fartar um bocado. Mas o “Kingdom” tem um approach um bocadinho diferente. Vale a pena. É assim uma espécie de conspiração palaciana numa aldeia coreana e de repente há lá uma doença que não é assim muito fixe.
E depois aquelas que eu acho que são as maiores maravilhas dos últimos dez anos. O “Horace and Pete”, do Louis C K, é obrigatório. O “High Maintenance”, na HBO. E o “Ramy” [também na HBO]. E se alguém tiver filhos, e eu não sei se o vosso público tem assim filhos ou não, mas se tiver, o “Sweet Tooth” para filhos é incrível. O meu filho ficou super deprimido por saber que a nova temporada só chega em 2023.
MFS: Está a começar a ter problemas de adulto, não é?
MP: Sim! Ainda por cima, vocês viram os teasers da nova temporada? Os gajos receberam placas de chocolate gigantes e ele “Porque é que nós não recebemos uma?” e eu “Porque nós não somos atores”. Portanto as minhas sugestões ficariam por aí. E no cinema, por amor de Deus, “Suicide Squad” já.
JD: E o que é que vais fazer agora a seguir?
MP: Se não apanhar COVID, embora já esteja vacinado, estou a preparar um filme que é uma adaptação de uma peça de teatro de um grande amigo meu, do Luís Lobão, ele que fez de Daniel, mais novo, nos anos 90, no “Até Que a Vida Nos Separe”. É uma peça que foi levada a cena no Teatro da Comuna, em 2018, chamada “Os Infanticidas” e que é um filme para quatro atores, que é uma coisa um bocadinho experimental e que vou começar no dia 5 de setembro. Estou a gostar muito de o preparar e espero que logo a seguir pegue numa segunda temporada dos nossos amigos do “Pôr do Sol”, mas isso dependerá de como isto acabar para a semana.
JD: Pensei que ias dizer que ias pegar na Netflix.
MP: Não vou dizer nada. Não posso dizer nada, o meu agente não me deixa, sou expulso do clube, não posso falar, o mister é que sabe. É um bocado esta a conversa que eu posso ter sobre isto.
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