I

Макарова...

A peculiar, antiga e bela vila de Estremoz dorme. Dorme sob uma escuridão de além-Tejo salpicada pela luz das estrelas, sob uma noite fria, tão fria quanto qualquer noite de inverno, tão fria quanto qualquer noite de outubro de 1989. Uma noite em tudo normal, ou quase.

— Cala-te, vadia! Onde é que ele está?

Gritos ecoam por toda a casa da família Simões.

Mais uma, como tantas outras, que brotam, espaçadas e sem encosto, para lá do rio parido em Espanha e findo em Lisboa, a pequena habitação é, em tudo, modesta. Caiada a branco, assim o exige o calor do dia, e enquadrada por uma larga borda azul, assim o sugere a tradição local, conta com quatro quadradas janelas, duas no andar de baixo ladeando a porta da frente, e duas no andar superior, responsáveis pela iluminação e arejamento dos dois quartos. Um ocupado pelo mais velho, gaiato de dezoito anos, o outro a aguardar que o mais novo dos irmãos se decida a dormir sozinho. Mesmo contando já com nove anos, não consegue evitar refugiar-se no quarto dos pais, no rés do chão, todas as noites.

— Deixa o moçoilo ficar só mais esta noite — diz a mãe sempre que o pai resmunga por ver o mais novo dos herdeiros camuflar-se entre as fronhas e as mantas da cama do casal.

— Larga-a, maldito!

São mais de uma dúzia. Parecem polícias, talvez militares. Verdadeiras cópias em altura, em largura, em musculatura, em fardamento, em armamento. Aproveitando a pacatez noturna, tomaram conta do interior da modesta habitação alentejana. Com eles, também o medo e a violência se instalam na casa. Trazem, na algibeira, objetivos muito claros.

— Larga-a?! Mas quem és tu para dares ordens? — berra um dos homens na direção daquele que aparenta ser o chefe de família, o pai da casa, enquanto o atinge na testa com o cabo da sua pistola Макарова (1).

De olhar vidrado e profundamente baralhado, cai desamparado sobre o chão de mosaico da casa. Quase instantaneamente, um fio de sangue jorra-lhe do local onde o cabo da pistola acertou.

Jorge Silva junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 29 de maio, uma quinta-feirapelas 21h00. Consigo traz "Esperança", a autobiografia do Papa Francisco publicada pela Nascente.

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"Esperança", uma autobiografia do Papa Francisco, era para ter sido publicada apenas após a sua morte, mas o pontífice decidiu que sairia no início deste ano, para assinalar o Jubileu 2025, dedicado precisamente à esperança.

Ao ver o marido estatelado no chão, a esposa solta um novo grito, um grito de quem não entende o que está a acontecer, ainda que suspeite. É-lhe óbvio que a sua casa está a ser invadida por homens desalmados, armados até aos dentes e sem pejo de usar essas armas, homens cuja visita ela e o marido nunca pensaram ter, embora a temessem vai para quinze anos. Ei-los, ei-los em sua casa, o lugar onde são o epítome da família perfeita há tantos anos.

— Não nos façam mal! Não façam mal aos meus meninos, suplico-vos! — clama a dona da casa, enquanto tenta sobrepor o seu sobre o corpo do filho caçula.

Mais depressa ela rogasse e mais depressa os invasores virariam a sua atenção para o jovem. Sem hesitarem, arrancam-no dos braços da mãe e apontam-lhe o cano de uma das armas à têmpora esquerda.

— Onde está o outro rapaz? Diz-nos já ou disparo!

Se dúvidas restassem ao casal, estas são dissipadas. Aquilo que nunca lhes saiu da memória durante a última década e meia, embora mantendo a esperança de que nunca aconteceria, parece estar mesmo a tornar-se realidade.

Vendo o seu filho à mercê de uns quaisquer brutamontes e tomado por um instinto irracional de pai protetor, o dono da casa ergue-se do chão e atira-se sobre os dois homens que ameaçam a vida do infante. Como diria Newton, qualquer ação tem uma reação. A reação a esta ação nada ponderada, mal executada e até estúpida não demora. Um dos invasores aperta o gatilho, o projétil sai disparado a uma velocidade estonteante e sedento por um alvo. Não tarda a encontrá-lo. A área é grande e a pontaria não é má. Um buraco abre-se no peito do homem. A bala atravessa-lhe a roupa, rasga-lhe a pele, termina-lhe a vida.

Desalmado, o homem cai estrondosamente sobre as patelas e, logo a seguir, afunda o rosto no mosaico duro do chão. A esposa, acabada de enviuvar, segue-lhe o movimento com os olhos. À medida que vê o corpo do marido tombar, apodera-se de si uma profunda letargia que a impede de gritar, reagir ou sequer raciocinar. Sente-se como se também uma parte de si tivesse acabado de morrer.

Também o filho o mira. Jamais poderia pensar que, quando se meteu entre os lençóis da cama dos pais ao anoitecer, seria a última vez que o faria com o pai vivo. Jamais acreditaria que o seu progenitor estava a horas de acabar morto em plena casa da família, durante uma tentativa impensada de protegê-lo.

O som do tiro é evidente. Ecoa nas paredes da casa. Propaga-se a todas as divisões. É alto, alto o suficiente para acordar o filho mais velho, que ocupa um dos quartos do piso superior.

Apercebendo-se do ruído exagerado e nada comum para tais horas da noite, vê a curiosidade apoderar-se de si. Passados curtos instantes, escutar vozes masculinas que lhe são desconhecidas aguça ainda mais essa curiosidade. Lutando contra o sono, ergue-se da cama a algum custo, desce a estreita escada que une os dois pisos e, sem que nada o preparasse para tal, dá de caras com o cenário mais dantesco que alguma vez pensou ver. Nem nos seus piores pesadelos sonhou em ver a sua casa invadida por um grupo qualquer de brutamontes armados até aos dentes, ver a sua mãe exibindo um ar de evidente pânico, lavada em lágrimas e imersa num profundo sofrimento, ver o seu irmão caçula erguido pela roupa de dormir e com um cano de arma encostado à cabeça, e ver o seu pai, tão inerte quanto a morte o exige, mergulhado numa abundante poça de sangue.

— Mãe! — solta, com a entoação de quem busca respostas vindas de quem não tem como dá-las.

— Ah, aqui está ele!

Alguns dos invasores apressam-se a virar os canos das suas Makarov na direção do jovem.

— Sebastião, foge! Corre, filho!

Quase sem tempo para processar mentalmente tudo aquilo que se lhe apresenta diante da vista, e habituado a seguir os conselhos que a mãe lhe dá, não hesita. Rodopia sobre os calcanhares e, em passo de corrida, lança-se sobre a porta das traseiras da pequena habitação, a mesma que dá para o pequeno jardim da casa e, cruzada uma pequena estrada de terra batida, para uma zona de cerrado arvoredo. É essa a única opção que lhe resta, escapulir-se por entre silvas, giestas e árvores, camuflar-se na negridão da noite.

Na penumbra imposta sobre a estreita estrada, uns metros mais abaixo, desenha-se o perímetro de uma viatura. Encostada a uma das bermas, estacionada, faróis desligados. No seu interior são percetíveis dois vultos. Um por trás do volante, o outro no banco traseiro. Apreciam o desenrolar dos acontecimentos, nesta vila cuja pacatez um grupo de homens resolveu macular.

Ao passar pela ombreira da porta, sente o volumoso grupo de invasores lançarem-se no seu encalço. Por se tratar de verdadeiros elefantes numa loja de porcelanas, apercebe-se do som de uns quantos cacarejos que, empurra- dos pelos brutamontes, se vão escacando sonoramente ao caírem ao chão.

Já na rua, detém momentaneamente o passo de fuga. Fá-lo ao ouvir dois novos tiros. Primeiro um. Logo de seguida o segundo. A sua mente é tomada pelos destinatários desses mesmos tiros. Não é ele. Os tiros foram dentro de casa. Só outros dois alvos podem ter sido os escolhidos. Duas pessoas que conhece desde que se lembra. Duas pessoas a quem chama família. Duas pessoas que ama e que o amam, ou amavam. O irmão. A mãe.

II

Pobre rapaz de fardamento verde...

Quis saber quem sou.

Abril de 1974. Vigésimo quarto dia do mês. Vinte e duas horas e cinquenta e cinco minutos. Toca a telefonia. Canta Paulo de Carvalho, representante português, com o aval do Estado, no Festival da Canção. Ouve-se «E Depois do Adeus».

O que faço aqui.

Na Pontinha instalou-se o posto de comando do movimento revolucionário. Chefiado por Otelo Saraiva de Carvalho, aguarda pelo momento ideal para avançar com o plano que há muito se traçou, um plano que mui- tos tentaram pôr em prática e que outros tantos falharam.

Quem me abandonou.

Entrado cadete na escola do exército, Otelo duvidava das suas capacidades militares, da vontade de encarar o encargo militar, do altruísmo exigido a quem serve a nação. Além disso, jamais adivinharia que esse mesmo serviço patriótico o levaria ao epicentro da maior e mais importante revolução da História de Portugal.

De quem me esqueci.

— As tropas estão a postos, Otelo.

— Também estavam há um mês, nas Caldas, e deu no que deu. Calma!

Perguntei por mim.

O militar refere-se à Intentona das Caldas, uma tentativa falhada de golpe de Estado que se deu a dezasseis de março de 1974 e que levou ao encarceramento de dezenas de militares. A crescente insatisfação, espalhada pelas forças armadas portuguesas envolvidas na guerra colonial, aliada ao desprestígio da carreira militar causado pelo facilitismo imposto pelo Estado Novo a todos quantos desejavam entrar nas tropas, fez com que vozes militares antirregime se fossem fazendo ouvir com progressiva veemência.

Quis saber de nós.

As vozes descontentes são paridas, sobretudo, por elementos do Movimento das Forças Armadas, também conhecido por Movimento dos Capitães ou simplesmente MFA. Esta organização, formada no seio do exército, visava opor-se à abordagem seguida pelos governantes durante a guerra civil em curso e, por inerência, ao próprio regime.

Mas o mar.

Depois de muito encher, há sempre uma derradeira gota que provoca o vazamento. Essa gota foram as demissões de António de Spínola e Francisco Costa Gomes, generais das tropas, por parte de Marcello Caetano, depois de estes faltarem a uma das habituais sessões de vassalagem, de beija-mão, ao ditador. Por não mais suportarem as sucessivas injúrias à sua honra, dois dias depois os militares decidem sair à rua. Comandado pelo capitão Armando Marques Ramos, o quinto regimento do exército parte das Caldas da Rainha em direção à capital para, uma vez aí chegados, dar por findado o regime iniciado por Salazar e continuado por Caetano.

Não me traz.

Mero azar ou profunda impreparação, a verdade é que as forças da ordem do regime depressa souberam da coluna que se aproximava de Lisboa. Em pouco tempo, um volumoso e heterogéneo ajuntamento de efetivos da GNR, da Legião, da PIDE (2) e de muitos outros fiéis ao regime, apetrechados com todos os tipos de carros de combate, armas e munições, instalou-se às portas da cidade. Alertados para tal, a coluna militar não teve outra escolha que não a de voltar ao ponto de partida. Aí, volvidas algumas horas, o regimento foi cercado por tropas leais ao ditador e todos os envolvidos na intentona acabaram divididos pelas prisões de Santa Margarida e Trafaria.

Tua voz.

Curiosamente, é graças ao malogro das Caldas que a revolta contra o regime de Caetano sobe de tom e se espalha a ainda mais elementos das forças armadas portuguesas. Revoltados por verem irmãos de armas enclausurados e torturados, os capitães do MFA apressam-se a rescrever todo o plano de motim, de revolução.

Em silêncio, amor.

— Hoje será diferente. Vamos virar isto — afirma um dos militares.

— Vamos libertar os nossos camaradas! — lança um segundo.

— As coisas que falham são o prelúdio das coisas que vencem — acrescenta um terceiro, num tom mais poetizado para exibir a sua eloquência.

Um pouco mais pragmático e com a memória do dia dezasseis de março ainda bem fresca, Otelo mostra-se sereno.

— Calma, homens, esperemos pela segunda senha sem nos precipitarmos.

Livro: "Portugal Vermelho"

Autor: Pedro Catalão Moura

Editora: Saída de Emergência

Data de Lançamento: maio de 2025

Preço: € 19,90

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Em tristeza e fim.

Abril de 1974. Vigésimo quinto dia do mês. Zero horas e vinte minutos. Toca a telefonia. Canta Zeca Afonso, um artista revolucionário, crítico do regime e totalmente censurado, em plena Rádio Renascença. Ouve-se «Grândola, Vila Morena».

Eu te sinto, em flor.

O princípio do fim. Hoje terminam quatro décadas de nada. Quarenta anos despidos de liberdade, sem amor ou paixão, nus de arte, cegos aos livros e surdos à música, cerrados para o mundo, voltados para si. Quarenta anos! Parece impossível, mas não é. É possível, é realidade, é facto e é, a partir de hoje, memória, página indelével e digna de ser lembrada eternamente dos livros de História, da História de Portugal.

Eu te sofro, em mim.

— O movimento está em curso. Não há volta a dar. As tropas que avancem!

Eu te lembro, assim.

É com voz firme que Otelo dá as ordens aos companheiros de armas que partilham a sala consigo. Estes, por sua vez, apressam-se a garantir que todos os batalhões, regimentos e núcleos das tropas se põem em circulação.

Partir é morrer.

Ao contrário do acontecido um mês antes, o plano de hoje foi cuidadosa e meticulosamente arquitetado. Não foi rabiscado num qualquer guardanapo de restaurante ou considerado um sucesso antes de sê-lo. Não foi, como diz o povo mais culto, feito às três pancadas de Molière. Não foi, como diz o povo menos letrado, tirado do cu com um gancho. Foi construí- do pelos melhores estrategas e ponderado para que nada falhe. Foi, acima de tudo, motivado pelas dezenas de irmãos de armas que se quedam encarcerados desde março.

— À falta de melhor motivo, e no mínimo dos casos, a ação será desencadeada para libertar esses homens! — grita-se, em jeito de mote.

Como amar.

Começam as movimentações. A norte, Carlos de Azeredo faz uso da autoridade que tem enquanto tenente-coronel e avança sobre o quartel-general da Região Militar do Porto. Forças vindas de Viana do Castelo impõem o controlo do Aeroporto de Pedras Rubras. A estes homens vêm juntar-se muitos outros saídos dos respetivos regimentos para garantirem que a sua vontade é imposta.

É ganhar.

Por correrem depressa, as notícias não tardam a chegar ao ditador e a todos os seus lacaios vulgarmente intitulados de ministros e aos quais se dá cargos de aparência. Cargos que lhes permitem exercer o poderzinho. O poder, verdadeiro e absolutista, esse reside em Marcello Caetano por herança de Salazar.

E perder.

Apanhados de surpresa, a surpresa necessária a uma iniciativa deste tipo, apressam-se a exercer esse poderzinho. Dão-se ordens de contrarrevolução. Caem em saco roto.

Tu vieste em flor.

— O que fazemos, comandante? — questiona o primeiro-cabo, militar que acaba de receber as ordens vindas do Ministério da Defesa. — Querem que avancemos sobre o Porto e restabeleçamos a ordem.

— Palavras loucas, ouvidos moucos.

Eu te desfolhei.

— Está no ar, comandante, pode falar — informa Joaquim Furtado, jornalista do Rádio Clube Português, cujas instalações acabam de ser invadidas por oito militares do MFA.

— Aqui posto de comando do Movimento das Forças Armadas. As forças armadas portuguesas apelam para todos os habitantes da cidade de Lisboa no sentido de recolherem a suas casas, nas quais se devem conservar com a máxima calma. Esperamos sinceramente que a gravidade da hora que vivemos não seja tristemente assinalada por qualquer acidente pessoal, para o que apelamos para o bom senso dos comandos das forças militarizadas no sentido de serem evitados quaisquer confrontos com as forças armadas. Tal confronto, além de desnecessário, só poderá conduzir a sérios prejuízos individuais que enlutariam e criariam divisões entre os portugueses, o que há que evitar a todo o custo. Não obstante a expressa preocupação de não fazer correr a mínima gota de sangue de qualquer português, apelamos para o espírito cívico e profissional da classe médica esperando a sua acorrência aos hospitais, a fim de prestar a sua eventual colaboração, que se deseja, sinceramente, desnecessária (3).

Tu te deste em amor.

De Santarém, sai a formação com uma das muitas tarefas do dia, quiçá a mais importante.

— Meus senhores, como todos sabem, há diversas modalidades de Estado. Os Estados sociais, os corporativos e o estado a que chegámos. Ora, nesta noite solene vamos acabar com o estado a que chegámos. De maneira que, quem quiser vir comigo, vamos para Lisboa e acabamos com isto. Quem for voluntário, sai e forma. Quem não quiser sair, fica aqui.

Eu nada te dei.

Capitaneada por Salgueiro Maia, a Escola Prática de Cavalaria só cessa a marcha em pleno Terreiro do Paço. Ainda nem o Sol deu um ar da sua graça e já o centro da capital está lotado. Homens fardados, Chaimites apetrechadas, armas carregadas e gentes com ganas, com ânsias de liberdade.

Em teu corpo, amor.

Entre a multidão que enche as ruas desde o Terreiro do Paço até ao Rossio está Celeste Caeiro. Celeste é empregada no Sir, restaurante inaugurado precisamente a vinte e cinco de abril de 1973 e que hoje comemoraria o primeiro aniversário oferecendo cravos a todas as clientes. Não podendo abrir portas por haver uma revolução em curso, o dono entrega o ramalhete à sua fiel funcionária para que faça com ele aquilo que melhor lhe aprouver.

Eu adormeci.

— Olhe, desculpe, o que se passa?

Chegada ao Rossio, espantada com a tenda armada, depressa aborda um dos membros da esquadra. De mãos nos bolsos e olhar distante, jeito de marinheiro ou de soldado, pobre rapaz de fardamento verde, negra madeixa ao vento, boina maruja ao lado.

— Nós vamos para o Carmo para deter o Marcello Caetano. Isto é uma revolução.

De origem humilde mas com forte saber político, vê-se tomada por um misto de alívio e de medo. Alívio por sentir um futuro melhor bater à porta. Medo por saber que já antes se tentara e que em nada dera.

Morri nele.

— Tem um cigarro? — pergunta-lhe o militar.

Celeste não tem cigarros, mas sente pena do jovem que, ladeado por tantos iguais a ele, arriscam a vida pela vida dos seus. Olha em volta. Tudo fechado. Loja alguma se arriscaria abrir em dia tão conturbado. Não poderá comprar cigarros para oferecer ao moço, nem sequer um pequeno farnel que lhe dê ânimo.

— Se quiser, tome. Um cravo oferece-se a qualquer pessoa.

E ao morrer.

O jovem militar agradece-lhe com um sorriso. Um sorriso aberto que lançaria à própria mãe se esta ali estivesse a mirá-lo. Mirá-lo-ia com o orgulho de uma mãe que vê o filho lutar por aquilo em que acredita. Sem hesitar, pega no cravo e deixa-o cair sobre o cano da espingarda.

Renasci.

Cativados pela atitude, outros seguem-lhe os gestos e, em poucos minutos, a revolução floresce. Transforma-se num mar vermelho. Não de sangue, esse nunca foi o propósito de quem planeou, mas de flores, algo frágil mas belo, algo singelo mas tão simbólico. E assim se vê Celeste, sem cravos depois de todos ofertar.

E depois do amor.

Com o Sol a pique, Salgueiro Maia chega ao Carmo, tal como vaticinado. O ditador em queda refugiou-se no quartel rodeado por uns quantos, poucos, os últimos, apoiantes. À porta, a população vai-se apertando cada vez mais. Trazem consigo a mesma ânsia que sentem desde que escutaram o primeiro comunicado do MFA, ainda mal começara o dia. Parecem uvas apertadas numa qualquer tina à espera dos pés que as esmagarão em vinho.

E depois de nós.

Ciente de que a situação pode descontrolar-se, não por haver muitos com vontade de morrer por uma causa perdida mas porque, no calor do momento e pressionado por Marcello, algum elemento afeto ao regime pode cometer uma loucura, Salgueiro Maia dá as ordens que lhe foram incumbidas. De megafone em riste, faz-se ouvir.

O dizer adeus.

No interior do quartel, o ditador à beira da desgraça escuta-o. Recebe ordem de rendição. Nada lhe acontecerá caso se entregue. Salgueiro Maia dá-lhe tempo, mas o tempo passa sem movimentos do interior. Não resta alternativa. Não sai a bem, pois que saia a mal.

— Fogo!

O ficarmos sós.

Pobre fachada, maculada por disparos assemelha-se ao rosto de um adolescente borbulhento. São grandes, os danos materiais, mas não superam os morais. Com os disparos caem pedaços de reboco, tinta e pedra ao chão do Largo do Carmo, e cai o governo, a censura, a perseguição, a tortu- ra e a mordaça. Cai Marcello Caetano.

Teu lugar a mais.

O dia vai longo. Marcello Caetano cede, mas não o faz sem uma última imposição. Aos revoltosos que aguardam para encarcerá-lo garante negociar a sua rendição, mas só o fará perante um representante do MFA com patente não inferior a coronel.

Tua ausência em mim.

— Otelo, é o Spínola.

Uns dirão que foi exigência do próprio ditador, outros que o general só estava no local certo à hora certa. Seja como for, é o general Spínola quem se chega à frente e trata de pôr-se em contacto com o Movimento dos Capitães.

— Ele está a pedir a nossa permissão para receber a rendição do ho- mem — faz saber Otelo aos demais elementos do MFA presentes no posto de comando da revolução.

Os militares entreolham-se. Apesar de Spínola ter, em certa medida, colaborado com os objetivos dos revoltosos, não pertence ao MFA. Além disso, as suas reais intenções nem sempre são percetíveis. O general é um homem inteligente, ambicioso, com propósitos próprios e digno de cuidado.

Tua paz.

— General, está aí? — Fale, meu caro.

— Em nome dos elementos do MFA, está autorizado a representar-nos e a receber a rendição do Presidente do Conselho.

Que perdi.

Negociada a rendição, Salgueiro Maia manda entrar uma Chaimite no quartel. No seu interior levará Marcello Caetano, agora ex-ditador, e alguns dos seus ministros para a Pontinha, ao encontro do posto de comando da revolução. Daí, usufruindo de um salvo-conduto, partirão para a ilha da Madeira e, logo de seguida, para o exílio eterno no Brasil.

Minha dor que aprendi.

De todas as instituições salazarentas, resta uma, a que mais sofrimento impôs. Resta a Polícia Internacional e de Defesa do Estado, a PIDE.

De novo vieste em flor.

Curiosamente, esta é a principal falha de todo o plano traçado. Algures durante o dia, um grupo de comandos deveria ter tomado a sede da polícia do regime, coisa que não viria a acontecer por recusa de um dos responsáveis envolvidos.

Te desfolhei.

Sabendo da sua teima em deporem as armas, uma massa humana acorre à António Maria Cardoso, rua onde se sedia a PIDE, para aí se concentrarem e pressionarem os elementos sobrantes do regime.

E depois do amor.

Vendo-se cercados e tomados por algum desespero, quiçá medo de verem fazer-lhes aquilo que eles próprios fizeram aos seus inimigos durante anos, não hesitam em abrir fogo contra os manifestantes. É esse mesmo fogo o responsável por macular a perfeição da revolução, por adicionar os primeiros nomes à lista de vítimas da revolta.

E depois de nós.

São quatro os revoltosos que perecem às últimas balas disparadas pelo regime. Quatro valorosos cidadãos que, tendo sentido o cheiro a liberdade às primeiras horas do dia, quiseram garantir que essa liberdade era, de facto, afiançada e imposta. Infelizmente, não poderão usufruir dela. Mas resta um alento, o alento de que as gerações vindouras não saberão o que é viver em ditadura.

O adeus.

Às mãos dos militares, finda-se o Estado Novo, finda-se a ditadura, finda-se Salazar, finda-se Caetano, finda-se a censura, finda-se o lápis azul, finda-se a prisão, finda-se a tortura, finda-se! Começa a democracia, começa uma nova regência, começa a fala, a escrita e a criação solta, começa a liberdade, começa a igualdade, começa um país novo. Ou assim se espera...

O ficarmos sós (4)

(1) Makarov.

(2) Oficialmente denominada por DGS (Direção-Geral de Segurança) desde 1969, mas popularmente denominada por PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado).

(3) Excerto da comunicação original.

(4) «E Depois do Adeus», José Niza.