INTRODUÇÃO - CONGREGAR A PALAVRA
«A principal função de um grande shaykh é congregar a palavra de todos.»
Paul Dresch, Tribes, Government and History in Yemen
Oradores e predadores
Antes do nascer do sol de um dia de inverno em princípios do ano 630, um cativo na cidade árabe de Iatrebe observou como os homens desse lugar se reuniam num pátio no exterior da sua cela. Distinguia mal o que via entre uns poucos clarões de luz. Mas quando o chefe deles chegou — tinha de ser ele, pois os murmúrios tinham parado — e os homens se dispuseram em filas, o cativo sentiu que estava prestes a acontecer alguma coisa momentosa. Veio-lhe um pensamento, mais frio que a alvorada: «Creio que tencionam matar-me…»
Não teria sido surpreendente. Havia anos que os homens de Iatrebe assaltavam as ricas caravanas comerciais do povo do prisioneiro; ele mesmo comandara um certo número de contra-ataques. Tinham morrido muitos; havia sangue entre eles. Embora nesse mesmo ano um tratado tivesse interrompido as escaramuças, tinha sido recentemente quebrado por aliados da tribo do cativo. Mas não havia realmente maneira de saber o que iriam fazer os homens de Iatrebe: eram um grupo dissidente que atravessava as fronteiras tribais e que era chefiado por um vidente rebelde, mas carismático — um primo, na verdade, do cativo — e as suas ações eram imprevisíveis.
O que aconteceu a seguir assombrou o prisioneiro. O vidente posicionou-se sozinho defronte das filas de homens, entoando alguns dos estranhos encantamentos pelos quais era famoso, inclinou-se e depois prostrou-se. As fileiras de homens copiaram os seus movimentos. Parecia-se um tanto com as cerimónias dos cristãos que o cativo testemunhara nas suas viagens de comércio à Síria. Mas estes homens eram tão precisos, tão treinados nos seus movimentos, que se moviam como um só corpo. Enquanto o prisioneiro observava, lançou um juramento à velha alta divindade da sua tribo:
Por Alá! Nunca vira disciplina como a que vi hoje, e em homens que vêm de Ceca e Meca, de toda a parte… Não, nem entre os nobres Persas, nem entre os Bizantinos com as suas melenas entrançadas!
O cativo era um chefe de clã de Meca chamado Abu Sufiane. O seu primo rebelde chamava-se Maomé, e havia alguns anos que os seus captores se chamavam a si mesmos «muçulmanos».
O que tanto surpreendeu Abu Sufiane foi a unidade daqueles homens de Iatrebe (ou Madinat Rasul Allah, «a cidade do Mensageiro de Alá» — al-Madinah ou, abreviadamente, Medina — como lhe começavam a chamar em honra do seu líder). Era um grupo de gente de diversas origens que não era unido nem pelo sangue, nem sequer, como era o caso da maior parte dos agrupamentos tribais, pelo fingimento de uma relação de sangue. Alguns deles, aliás, eram da sua própria tribo de coraixitas, que ao longo das cinco últimas gerações se dividira em clãs concorrentes. A maior parte deles, todavia, eram de tribos que havia muito se tinham instalado aqui em Iatrebe, mas provinham originalmente do Sul da Arábia — al-Yaman, «o Sul», uma terra de montanhas e desfiladeiros, florestas e campos, distante e diferente nas suas línguas e costumes. Havia até uns poucos judeus árabes nas suas obedientes fileiras. Porém, ali estavam todos, a mover-se, a responder como um só corpo. Maomé tinha conseguido, com um êxito espectacular, o que todos os pretendentes a líderes árabes tinham sempre tentado fazer: tinha «congregado a palavra» das pessoas — tinha conseguido unanimidade e silenciado qualquer discordância.
A comparação feita por Abu Sufiane com Bizantinos e Persas é reveladora. Como mercador experiente no comércio internacional, não lhe eram estranhos os vizinhos imperiais beligerantes da Península. Mas sabia que, por mais que fossem as suas reivindicações de unidade interna, esses impérios estavam eles mesmos divididos por discordâncias políticas e disputas sectárias. Aqui, perante si, no coração da Arábia em eterna discórdia, estava um paradigma de unidade — de unanimidade, a palavra congregada — que envergonhava essas pretensões imperiais.
Era bom de mais para durar. Em menos de três décadas, o filho de Abu Sufiane estaria numa guerra sangrenta com o genro de Maomé pela autoridade — o controlo sobre o povo e sobre um rendimento que teria dado a volta à cabeça do velho mercador abastado. Em certo sentido, esse mesmo conflito continua hoje, com ramificações e números exponencialmente acrescidos, frequentemente simplificado, pela aplicação de um verniz sectário, como um conflito entre sunitas e xiitas, mas que, de facto, continua a nada ter que ver com o dogma, mas sim com poderes terrenos: o poder sobre a riqueza, o poder sobre o povo, o poder sobre o poder.
De momento, porém, Maomé tinha encontrado as duas chaves da unidade. A chave imediata, como mostravam aquelas disciplinadas fileiras de fiéis, era a vassalagem partilhada prestada a uma única divindade. Apesar da forma de oração de aspeto cristão, com as suas prostrações, a divindade não era tanto à maneira dos Bizantinos e Etíopes, com as suas intermináveis discussões sobre a natureza divina. Nem era Ele bem como o dos judeus; podia ter sido, se as coisas tivessem corrido de outro modo, mas a maior parte dos judeus de Iatrebe tinha rejeitado as apresentações de Maomé nos seus primeiros tempos na cidade. Em vez disso, Ele tomava o Seu nome do deus supremo do culto da cidade ancestral do próprio Maomé, Meca, um dos últimos grandes bastiões do politeísmo num Próximo Oriente largamente cristianizado ou judaizado. Quanto à Sua natureza — uma natureza severamente minimalista, despida de atributos, sobre os quais não precisavam de surgir discussões — era tão simples e discreta como as pedras do deserto que os Beduínos encontravam e instalavam como seus deuses, ou até mais. Aliás, a divindade era inimaginável, a não ser reflexamente, através da Sua criação e através da Sua palavra tal como revelada ao Seu profeta. Essa palavra inculcava uma vassalagem partilhada à divindade por meio de orações diárias. Forjava também uma unidade mais ampla, mais profunda, expressa não no parentesco, mas no culto.
A outra chave para a unidade, a definitiva, tornava disponível essa primeira chave. Era o domínio da linguagem por Maomé — não a língua falada no dia a dia, mas a linguagem oracular especial, o árabe culto com o qual demónios e espíritos familiares inspiravam os tradicionais videntes árabes; exceto que, no caso de Maomé, a língua era inspirada, por via de um anjo, pelo mesmo Deus abstrato que tinha escolhido Maomé para Seu «nobre mensageiro». Maomé tinha recebido a palavra de Deus e congregado a palavra do homem. Mas ele sabia que a unidade que tinha trazido era única e estava condenada. Seja ou não verdade que ele tenha dito: «Esta comunidade dividir-se-á em setenta e três seitas», sabia a partir do seu Alcorão, a coletânea de recitações enviadas por Deus e transmitidas por ele, que a realidade era a desunião:
Pela noite que nos envolve,
Pelo dia na sua brilhante alvorada,
Por Aquele que criou varão e fêmea,
Digo-vos que os vossos esforços levarão a fins diferentes.
Estava também consciente de um paradoxo. A mensagem oracular que, na sua boca, se tornara divina visava especialmente o povo que melhor a entenderia — as muitas pessoas de toda a Península que sabiam o árabe culto da adivinhação e da poesia, ou que, pelo menos, podiam ser movidas por ele; por outras palavras, a maior parte dos árabes tribais. Isto pode parecer óbvio, mas é afirmado no Alcorão, de maneira autorreferencial, uma e outra vez. Por exemplo,
Enviámo-lo como Alcorão arábico, de modo que o possais entender.
E, contudo, as únicas pessoas a que o Alcorão se refere como árabes — aquelas que se poderia esperar que a mensagem mais comovesse, e nas quais poderia produzir algum benefício espiritual — eram as que provavelmente menos a atenderiam:
Os a’rab são os piores em descrença e hipocrisia e os que provavelmente menos conhecerão as leis que Alá enviou ao Seu mensageiro.
Divinas palavras, portanto, em orelhas moucas. É certo:
Dos a’rab, alguns há que acreditam em Alá e no Último Dia.
É certo também que a forma a’rab (um plural, enquanto ’arab é um coletivo… uma diferença trivial) é muitas vezes tomada como referência aos puros nómadas que viviam nas margens do ambiente de mercadores sedentários que Maomé conhecia. Mas, mesmo assim, era do ethos saqueador daqueles nómadas que dependia o êxito militar da nova comunidade, que, com o tempo, lhe daria vantagem sobre os impérios envelhecidos que a rodeavam. Os nómadas e as suas aptidões predatórias tinham de ser incorporados na comunidade dos crentes.
O livro arábico mais antigo, o Alcorão, parece, portanto, dizer que há duas conotações do arabismo — a eloquência da língua árabe erudita e a turbulência dos povos entre os quais essa língua se desenvolveu; que os Árabes podem ser oradores, mas também predadores. Olhando para a história árabe antes e depois de Maomé, isto faz sentido. Uma potente mistura de retórica e pilhagem alimentou o ciclo de unificação e fragmentação, e ainda o faz.
Uma verdadeira e duradoura unidade, como Maomé sabia, era impossível sem um grande princípio, o da absoluta igualdade diante de Deus. Entre os belicosos clãs e tribos da Arábia, tornar-se parte de uma unidade maior significava ceder poder; ceder poder a alguém mais forte do que nós — que não a Deus todo-poderoso — era admitir uma derrota. Mas mesmo sob o comando de Deus, esse princípio de igualdade, uma das bases perenes do islão, tem sempre sido fugidio por todo o planeta. Assim tem sido também, por conseguinte, a unidade: continua a ser uma cintilante miragem no horizonte, enquanto pelo caminho a palavra é às vezes congregada por líderes com vozes que são eloquentes, persuasivas ou simplesmente sonoras; impõem um perigoso uníssono, depois parece que tudo desaba inevitavelmente numa cacofonia de retóricas concorrentes. A harmonia — a conjunção de várias vozes, em que todas têm um direito igual a falar e um dever igual de escutar — raramente tem sido ouvida.
Mas — estão a ver como é fácil? — com Maomé, Abu Sufiane e o islão, também eu comecei pelo meio. É um «momento» (provavelmente o momento) que ilumina a história árabe, se pode dizer-se que tais momentos existem; lança luz sobre o que aconteceu antes e sobre o que viria depois. Medina, também, é outro meio: medeia entre a Arábia nómada do Norte e do Oriente e a Arábia mais sedentária do Sul e do Ocidente; entre as tribos ’arab e os povos árabes meridionais — os dois principais elementos que estavam a juntar-se hesitantemente num só todo «árabe». E, ainda assim, Medina estava longe de ser o único ponto médio da Arábia. E Maomé, mesmo sendo o grande congregador da palavra, não era o primeiro. Voltar atrás e procurar os princípios da longa busca da unidade será, em parte, «desislamizar» a história dos Árabes, apontar o holofote às pessoas, em vez de as ver apenas contra o fundo rico e perturbador do que o islão se tornou. É também rearabizar a história do islão e mesmo dos Árabes — ver o islão não apenas como a fé mundial que hoje é, mas também como uma ideologia nacional unificadora e Maomé como um herói nacional árabe.
Uma outra coisa se torna clara se voltarmos atrás, ao princípio. Philip Hitti, na sua velha e grande (e ainda muito útil) História dos Árabes, viu a língua arábica como «o terceiro estádio numa série de conquistas» dos Árabes, depois das armas e do islão. Na realidade, a língua arábica foi a primeira conquista dos Árabes. Sem ela, as outras conquistas nunca teriam acontecido; nunca teria havido histórias árabes para escrever.
Um dos melhores de entre os primeiros historiadores árabes, al-Mas’udi, comparou a tarefa de contar a história árabe à de «alguém que encontrou um monte de pedras desorganizadas, dos mais diferentes tipos e cores, e as enfiou, depois, por ordem, fazendo delas um colar precioso».
Mil e cem anos depois, o tesouro é tanto maior e ainda mais variado, mas a tarefa é a mesma. A pura cronologia fixa uma grosseira ordem de enfiamento; o desenho final depende de como o historiador escolhe as diferentes formas e cores e as junta, e, em certa medida, do gosto dos tempos. Mas o êxito do colar também está dependente da força do fio. O meu é a língua arábica, a que chamo «o fio mais profundo de “ser árabe”»; valeria a pena percorrer rapidamente 3000 anos dessa história nas poucas páginas que se seguem, antes de os acontecimentos propriamente ditos — muitos deles curiosos, pasmosos e perturbadores — serem enfiados nele. A língua, a palavra, é o fio oculto: é, no fim de contas, aquilo sobre o que a unidade árabe com tanta frequência se tem congregado.
No princípio era o poeta
Ao longo dos três milénios de história árabe registada, a palavra congregada desencadeou três vagas de unidade. Para usar outra vez o termo de Ibn Khaldun, a ’asabiyyah, a «solidariedade de grupo», recebeu sempre o seu impulso do ’arabiyyah, a língua arábica erudita por excelência. A escala dessas vagas, porém, tem sido muito maior do que a de Khaldun, da tribo ou da dinastia. A primeira vaga, antiga, lenta, mas profunda, foi a de uma autoconsciência étnica que cresceu ao longo do milénio anterior ao islão. A segunda foi um tsunami de expansão física, o das conquistas árabes dos séculos VII e VIII e seu rescaldo, que se dissipou tão depressa como começara e acabou numa longa pausa, mas deixou atrás de si um sedimento de língua rico e duradouro. A terceira vaga, alimentada por forças adormecidas que foram despertadas pelos movimentos nacionalistas da Europa do século XIX, foi de redescoberta da identidade própria étnica, cultural e, mais tarde, religiosa. Esta última vaga ainda agora está a rebentar. As três vagas dão forma às secções maiores deste livro em três grupos desiguais em anos, mas mais ou menos iguais em páginas: «Emergência» e «Revolução» (de 900 a. C a 630 d. C); «Domínio» e «Declínio» (de 630 a 1350); «Eclipse» e «Ressurgimento» (de 1350 até à atualidade).
Os começos da primeira vaga, a da consciência de si, são obscuros e difíceis de fixar no tempo. Parece que, com a crescente mobilidade que veio da domesticação dos camelos como animais de carga e com Árabes a trabalhar no transporte e no comércio de longa distância, tinha de formar-se uma língua que pudesse ser entendida por falantes dos diferentes dialetos do Norte de África (os árabes do Sul falavam outro grupo de línguas, parentes afastadas, mas incompreensíveis para os nortenhos; a distância era parecida à que há entre alemães e italianos). Mais tarde, num tempo muito anterior ao século V d. C. e possivelmente na península central, também ganhou forma uma versão «erudita» da língua unificada do Norte. Esta, o ’arabiyyah, não era falada no dia a dia, antes era uma «língua mística» usada para «conceder oráculos e [para] a recitação de poesia». Aqueles que conseguiam dominar esta língua especial — sobretudo o sha’ir, mais tarde um «poeta», mas na aceção mais antiga provavelmente algo mais parecido com um vidente ou um xamã — atraíam seguidores. Em tempo de razias, o sha’ir desempenhava também o papel do poeta de Whitman, «a mais mortífera força da guerra […] ele consegue que cada palavra que diz faça sangue».
O pó levantado pela impetuosa entrada do islão no campo da história esconde muito do que havia ali antes. E, contudo, alguns aspetos são claros na névoa que se estende desde essa menção mais antiga aos Árabes em 853 a. C. até à sua súbita aparição sob os holofotes internacionais. A existência humana em quase toda a antiga Arábia era itinerante, físsil, belicosa; linhagens que vagueiam num meio ambiente duro, pela sua própria natureza, dividem-se e competem pela sobrevivência. O tempo era medido pelos nomes de antepassados em vez de ser registado em monumentos e anais. Para o fim do primeiro milénio antes de Cristo, todavia, as margens exteriores desta sociedade heterogénea (se se lhe pode sequer chamar isso) tinham já começado a formar-se através do contacto com os seus vizinhos imperiais — Roma, Pérsia e Arábia Meridional, essa terra fértil de montanhas no calcanhar e peito do pé da Península, onde Sabá (a Sabá bíblica) e os impérios que lhe sucederam reinaram sobre povos, em larga medida, sedentários.
Os impérios, hierárquicos e piramidais por natureza, preferem lidar com cadeias de comando mais claras do que aquelas que as estruturas horizontais que tribos e clãs podem oferecer. As hierarquias árabes começaram assim a emergir através do reconhecimento concedido pelas grandes potências, incluindo os filarcos (chefes tribais) e, mais tarde, os «reis dos Árabes». A antiga vida nómada, fluida, começou a assentar, a fixar-se nas bermas: os reis governavam de centros entre os troços de deserto e as terras semeadas que eram metade acampamento, metade capital. Era como se a sociedade, nas terras árabes do Norte e Centro da Arábia, estivesse a solidificar de fora para dentro, como a cera num molde. E, se os reis precisavam do reconhecimento dos seus vizinhos, precisavam também do do seu próprio povo: viviam do louvor e da propaganda, matéria de poetas na sua guisa posterior. Foi aqui que a língua erudita se afirmou e assumiu a forma que tem ainda hoje. A língua continha, também, o potencial de uma unidade mais profundamente sentida. Herder, um dos fundadores teóricos do nacionalismo europeu moderno, conhecia o poder da poesia. «Um poeta», escreveu em 1772, «é o criador da nação [Volk] em torno de si; dá-lhe um mundo a ver e tem na mão as almas do povo, para o conduzir a esse mundo.»
Na Europa de Herder, esse mundo ainda era novo: nalgumas zonas de França dessa época, por exemplo, «andar em qualquer direção durante um dia era tornar-se incompreensível» e o ideal de uma língua unificada estava longe de ser realizado. Não era assim no mundo arábico. Reynold Nicholson, que o compreendeu melhor do que a maioria, tinha razão em dizer que a poesia tornou os Árabes «moral e espiritualmente uma nação muito antes de Maomé».
Ninguém, é claro, falava a língua dos poetas na vida real. A formação de uma «Nacionalidade» era um ideal poético, realidade apenas no domínio da retórica. Sempre o tem sido.
A palavra espalha-se
No século VI da nossa era, enquanto ganhava impulso este processo de construção étnica, fixação física e edificação espiritual da nação, as potências em torno da Arábia entraram em guerra: Romanos (agora Bizantinos) contra Persas e o Império Etíope de Axum contra a Arábia do Sul himiarita. Conforme o molde imperial se rachava à volta deles, a sociedade meio formada dos Árabes implodia. Com a perda dos seus apoios imperiais, os reis da Arábia perderam a sua raison d’être, os Árabes perderam o artigo definido e a Arábia rebeduinizou-se, tornando-se uma confusa luta móvel de retóricas concorrentes, cada tribo com os seus poetas, e agora — pois a profissão da palavra multiplicava-se e especializava-se — com os seus próprios khatibs, oradores, e kahins, adivinhos ou videntes.
Desse fermento de palavras e profecias veio Maomé. Mas ele levou a retórica incomensuravelmente mais longe do que os seus predecessores. O que viria a ser o islão era empoderado pela língua; não só pelo novo e excitante universo áudio-espiritual do Alcorão, cuja linguagem nascia do velho arábico culto oracular, mas também pelo uso de slogans — sobretudo daquele que proclamava o poder do velho deus supremo de Meca: Allahu akbar, Alá é grande. Maomé era ao mesmo tempo o mensageiro de Alá e o Seu arauto.
Como disse Ibn Khaldun, Maomé «congregou os árabes na palavra do islão». Era o exemplo primordial de uma função primordial do shaykh — congregar a palavra; e era o melhor exemplo da maneira como as palavras podem ser usadas para a disseminação instantânea de ideias e para a inserção dessas ideias nas mentes. Talvez seja, de facto, o exemplo supremo na história humana de como a linguagem, em vez do simples interesse pessoal e da força bruta darwinianos, permite dominar. Pois menos de 100 anos após o assombro de Abu Sufiane perante a disciplina instilada por Maomé, as forças árabes do islão tinham conquistado, ou talvez mais exatamente pilhado e ocupado desigualmente, uma área muito maior do que a do Império Romano no seu apogeu. Poucas décadas depois, os Árabes alcançaram a escala global com a sua nova capital, Bagdad, e os seus quatro portões principais, que levavam aos quatro cantos do mundo conhecido. A língua também se tornou global, fundando e depois fundindo — mais depressa, em ambos os sentidos, do que poderia fazê-lo o dogma religioso — o grande e duradouro império cultural chamado islão.
Ao mesmo tempo, os Árabes viriam a ser vítimas do seu próprio êxito. A língua que lhes tinha dado unidade cultural antes do islão e, sob ele, unidade política, destruía agora essa unidade. Após mais algumas breves gerações, o velho ’arabiyyah, oracular e poético — o árabe culto, o «marcador» étnico acima de todos os outros — tinha-se tornado o veículo da cultura, do culto e da administração em todo o império; a palavra, uma vez congregada, estava agora dispersa por um vasto espectro de povos arabizados do Pamir aos Pirenéus. Geneticamente, os árabes estavam por toda a parte. Linguisticamente, a sua fala condimentava esta extensa cultura com o seu sabor distinto. Mas eles próprios tornaram-se invisíveis, dissolvidos no seu império como o sal na água do mar.
Uma ilustração literal, embora tardia, desta ausência pode ser vista em The Arabs: A History, de Eugene Rogan, que cobre o período de 1500 a 2000: as duas primeiras gravuras não são de árabes, mas imagens florentinas de turcos. Como veremos, os séculos de «invisibilidade» ocultam, de facto, uma expansão árabe quase tão notável pela sua extensão como a primeira erupção do islão — talvez mais notável por ser tão discreta; mas foi uma expansão apenas pela porta traseira do mundo árabe, rumo ao oceano Índico. No resto, os Árabes mantiveram-se em casa e ficaram a assistir enquanto os outros assumiam a tarefa de construir impérios.
Talvez as histórias tenham «gramáticas» que podem ser analisadas; se assim for, então a maior parte dos Árabes, que tinham sido tão ativos e tão presentes no mundo, tinha recolhido agora a uma longa passividade vivida no seu próprio passado. Na gramática árabe atual, a voz passiva é chamada «desconhecida» ou «anónima» — e os árabes, em certa medida, perderam o seu nome e desapareceram na grande totalidade muçulmana.
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