A nova era da incerteza
O ataque russo à Ucrânia foi um acontecimento à escala da bomba de Hiroxima (1945), da queda do Muro de Berlim (1989) ou do ataque às Torres Gémeas (2001). Se sabemos como é que cada um destes mega-acontecimentos mudou o mundo, a única coisa que se pode dizer sem receio de erro é que esta guerra vai mergulhar o mundo numa nova era de incerteza.
Incerto é, desde logo, o desfecho das hostilidades. No momento em que este livro vai para o prelo todas as hipóteses estão em aberto: luta de posições prolongada, como a I Guerra Mundial? Partição da Ucrânia em dois países com regimes antagónicos como sucedeu na península da Coreia? Ocupação russa de todo o país mas tendo de enfrentar uma guerrilha de modelo iraquiano ou afegão? Mesmo que novas negociações desemboquem num cessar--fogo, que garantias há de este ser mais respeitado do que foi no leste da Ucrânia desde 2014?
No futuro, este conflito será estudado nas academias militares por várias razões. Os limites do poder militar russo foram evidenciados: dificuldades logísticas, rigidez da cadeia de comando, extrema heterogeneidade, quer dos efectivos quer do material. As reformas introduzidas desde a invasão da Geórgia em 2008 e a forma como correu a intervenção na guerra civil síria convenceram muitos peritos ocidentais de que a máquina de guerra de Putin se tinha modernizado e ganho desempenho ao nível do que de melhor havia no mundo. Era uma ilusão de óptica: fazer operações na Síria com as melhores tropas e os melhores equipamentos, enfrentando adversários aguerridos mas mal equipados era uma coisa; planificar e executar uma invasão à escala de 150 mil soldados, levada a cabo em diversas frentes e enfrentando um inimigo motivado e senhor do terreno era outra.
As armas russas de elevada tecnologia expostas nas paradas da Praça Vermelha, como os caças furtivos SU-57 ou os tanques semi-robotizados T-14 Armata, não foram utilizadas, ou por estarem ainda em desenvolvimento ou por serem poucas e caras. A Rússia evidenciou progressos na utilização de mísseis tácticos, fossem de cruzeiro, lançados quase sempre de navios, fossem balísticos como o Iskander. Mas deixou a ideia de que ou o arsenal não estava muito bem fornecido ou foram usados com demasiada liberalidade nos primeiros dias de guerra, à razão de meia centena por dia.
A excepção que confirma a regra foram casos isolados de uso de mísseis hipersónicos, como os Kinjal, lançados a partir de aviões Mig-31. Ficou claro que neste domínio específico a Rússia como de resto a China e eventualmente a Coreia do Norte terão ganho um avanço substancial sobre os EUA, avanço este que talvez se alargue aos mísseis estratégicos (com cabeças nucleares ou convencionais) como os planadores hipersónicos, com consequências imprevisíveis num mundo que parece ter desistido de acordos internacionais de controlo de armamentos.
Esta guerra pode, também, ter sido o dobre de finados pelos tanques pesados que dominavam os campos de batalha desde a II Guerra Mundial. Mesmo com blindagens aperfeiçoadas (reactivas, explosivas, adaptativas, etc.) revelam-se vulneráveis aos lança-foguetes portáteis, como os NLAW e os AT-4 de patentes suecas ou os Javelin norte-americanos, capazes de os atingir em pontos críticos, mobilizando-os ou destruindo-os. É verdade que o groso dos tanques perdidos pelos russos foram modelos antigos como T-72, fragilizados por um defeito original de projecto, mas há relatos de dezenas de tanques mais modernos igualmente postos fora de combate, caso dos T-80 e T-90. Também sucedeu que os estrategas russos contavam com uma neve mais dura, tornando possíveis ataques blindados em massa, prelúdio de uma blitzkrieg. O terreno, degradado por um Inverno glacial, mostrou-se pouco praticável para os tanques e a partir de meados de Março o degelo – a temida raspoutitsa, a estação das más estradas – obrigou a afunilar o avanço das viaturas pela rede de estradas pavimentadas, com o risco de cair em zonas minadas, em campos de tiro previamente preparados ou deparar com pontes destruídas. Os tanques não vão acabar mas a sua utilização e características talvez se alterem em função desta experiência.
Em sentido oposto, registe-se a confirmação dos drones como as armas dos pobres e com uma importância crescente. Os Bayraktar TB2 fornecidos pela Turquia aos ucranianos desempenharam as mais diversas missões e foram decisivos para retardar a marcha das colunas blindadas russas. Não haverá guerra futura sem armas deste tipo, tanto nos grandes como nos pequenos exércitos.
Os efeitos de uma guerra não se restringem ao campo de batalha. Esta deu origem ao maior movimento de refugiados na Europa desde a II Guerra Mundial. Teve impactos imediatos nos preços dos combustíveis, os quais, se nos países mais avançados geram algum descontentamento e efeitos económicos perversos, em países pobres podem ter efeitos sociais tremendos, agravados pelo encarecimento dos cereais, farinhas e outros produtos alimentares de base dos quais Ucrânia e Rússia eram grandes exportadores e países como Somália, Tunísia, Paquistão, Moldávia, Líbano ou Egipto eram grandes importadores.
Do ponto de vista geoestratégico os efeitos desta guerra ainda agora estão a ser analisados. Uma coisa é certa: a Rússia diz tê-la começado para construir uma zona de segurança à volta do seu território mas conseguiu o efeito oposto, ou seja pôr todos os vizinhos, mesmo os neutros, como a Suécia e a Finlândia em pé de guerra e a reverem políticas de defesa. A NATO, da qual Macron chegara a dizer que estava em morte cerebral, renasceu das cinzas e reforçou o seu papel na defesa das fronteiras europeias. EUA e Europa reaproximaram-se de uma forma que há muito se não via, ficando em aberto saber se a União Europeia consegue traçar algum caminho autónomo ou fica a reboque de Washington, política, económica ou militarmente. Confirma-se o basculamento da Rússia para leste, em busca do apoio da China, mas resta saber se Putin e os seus sucessores serão vistos como irmãos de armas ou como meros vassalos com algum grau de autonomia pelas futuras lideranças chinesas.
Já a União Europeia exibiu, pelo menos nas primeiras semanas de guerra, uma unidade até há pouco impensável. Os polacos, principais protectores dos refugiados, limparam, para já, a sua imagem de europeus desconfiados de Bruxelas e não muito respeitadores do estado de direito. Já o governo húngaro, ao fazer jogo duplo, tanto condenando formalmente Moscovo como não deixando transitar armas para a Ucrânia pelo seu território, isolou-se, mesmo no seio dos países vizinhos com cujas posições habitualmente convergia no Grupo de Visegrado (Hungria, Polónia, República Checa e Eslováquia).
Ambientalmente, esta guerra marcará um retrocesso, uma vez que, na busca da independência energética, a União Europeia terá de transigir por mais algum tempo com energias do passado, desde o gás natural (doutras fontes que não russas) ao próprio carvão, enquanto o nuclear talvez perca alguns anticorpos e as energias renováveis vão, ainda que mais devagar, fazendo o seu caminho.
Símbolo do que a cooperação pacífica pode fazer, a Estação Espacial Internacional, tripulada por astronautas do leste e do oeste prossegue as suas órbitas tranquilas pois do espaço não consta que sejam visíveis os bombardeamentos sobre Mariupol.
Comentários