PREFÁCIO
A paragem cardíaca que acontece fora do hospital tem habitualmente mau prognóstico e leva a morte súbita. Está estimado que cerca de um terço dos doentes com enfarte agudo do miocárdio morrem antes de chegar ao hospital. Em metade dos casos, a paragem cardíaca é a primeira manifestação de uma doença desconhecida até então. Mas poderia não ser sempre assim. E é possível melhorar a estatística!
Como cardiologista a trabalhar em serviços de cardiologia muito diferenciados tenho assistido a muitas histórias felizes. Na análise destes casos há sempre um elemento comum – a situação foi rapidamente identificada, activados os sistemas de emergência e iniciadas manobras de reanimação cardio-respiratória até à chegada de ajuda mais especializada. E lembro-me de muitas histórias com bom desfecho em que a intervenção de testemunhas foi providencial – o enfermeiro que estava a tomar café numa pastelaria quando um jovem vindo do treino de futebol tem um colapso; o cirurgião que se apercebe da perda súbita de consciência de uma vizinha, à porta do prédio onde morava; o anestesista que socorre um colega de treino no ginásio; o professor de ténis que reanima uma aluna que perde a consciência.
Em todos estes casos foram iniciadas manobras de reanimação (denominam-se de «suporte básico de vida») até à chegada de ajuda especializada. Nalguns, a existência no local de um desfibrilhador automático externo (DAE) permitiu restaurar as funções vitais ainda antes da chegada dos serviços de emergência. Todos já vimos estas «caixinhas» que estão dentro de vitrines em locais públicos (ginásios, centros comerciais, aeroportos, supermercados) em número cada vez maior.
Foi o conhecimento, há muitos anos, do mecanismo da paragem cardíaca que permitiu o desenvolvimento de estratégias e tratamentos que permitem reverter o quadro. O evento inicial é uma instabilidade eléctrica do coração, que resulta do sofrimento das células do mesmo e que degenera num ritmo denominado fibrilhação ventricular.
A causa mais frequente (acima dos 35 anos) é o enfarte agudo do miocárdio. Em idades mais jovens há outras causas (como miocardiopatias e doenças eléctricas primárias). A fibrilhação ventricular é um ritmo caótico em que as células do músculo cardíaco deixam de ter contracção. A circulação sanguínea é interrompida, o que leva a perda súbita de consciência e paragem de funcionamento de todos os órgãos e sistemas. Se nada for feito nos minutos seguintes, toda a actividade eléctrica do coração cessa. A probabilidade de a situação ser irreversível aumenta à medida que o tempo passa. Está provado que o início de manobras de ressuscitação (compressões torácicas/massagem cardíaca) e desfibrilhação precoce (choque eléctrico na região torácica) conseguem, muitas vezes, restaurar a actividade cardíaca. Há muito poucos minutos para reverter a situação e cada segundo conta. O número de doentes aos quais são iniciadas manobras de reanimação, por testemunhas no local da paragem, é baixo.
A ajuda que se pode dar está bem sistematizada – existem programas de treino em suporte básico de vida e utilização de desfibrilhador automático externo, e programas mais aprofundados denominados de suporte avançado de vida. Estes cursos são de frequência obrigatória para profissionais de saúde que trabalham em hospitais e têm de ser repetidos com frequência (por exemplo, de cinco em cinco anos, pois a competência em reanimação vai-se perdendo ao longo do tempo). Também existem programas específicos para não profissionais de saúde – em muitos países são obrigatórios nas escolas secundárias, assim como acções de formação para segmentos grandes da população – nos países anglo-saxónicos são denominados de mass training.
Em 2019 a Sociedade Portuguesa de Cardiologia levou a cabo um destes programas com o treino simultâneo de cerca de 1200 pessoas. Estes cursos são eminentemente práticos – os formandos são expostos a cenários de simulação de paragem cardíaca, com treino de todos os passos envolvidos e a aplicação de algoritmos que são iguais em todos os países da Europa.
Francisco Moita Flores sofreu uma paragem cardíaca na Feira do Livro de Lisboa em Setembro de 2022.
No presente livro, o autor, com a eloquência a que nos habituou, descreve o que ocorre nos momentos antes do colapso e o que ocorre nos dias/semanas depois do mesmo. Do evento em si não tem obviamente memória – uma vez que houve perda de consciência. A paragem cardíaca foi-lhe depois relatada por quem assistiu.
Na leitura desta história compreendemos o que é necessário para aumentar a probabilidade de tudo correr bem. Quando se preparava para iniciar uma sessão de autógrafos, sentiu-se mal e perdeu a consciência. Estávamos vários profissionais de saúde presentes. Os funcionários da Feira estabeleceram um perímetro de segurança (encontrava-se muita gente na Feira). Ao chegar perto da vítima, apercebemo-nos que estava em paragem cardíaca (não respirava e não tinha pulso). Iniciámos então manobras de reanimação (suporte básico de vida), ao mesmo tempo que pedimos que se ligasse para o 112 e se dissesse que se tratava de uma paragem cardíaca e que tinham sido iniciadas manobras. É importante dar as informações correctas aos serviços de emergência – ao saberem que se trata de uma paragem cardíaca vão enviar ajuda mais especializada. Além de ambulância medicalizada activam também o «carro médico» (viatura em que vem médico e enfermeiro treinados para este tipo de situações).
Os vários profissionais de saúde eram médicos, enfermeiros, tripulantes de ambulância. Não nos conhecíamos e nunca tínhamos trabalhado juntos – mas rapidamente estabelecemos uma equipa de reanimação. Essa é uma das mais-valias dos programas de reanimação – de repente, para todos nós, os cenários que tínhamos treinado nos cursos estavam na nossa cabeça e sabíamos o que fazer. Fomo-nos apoiando uns aos outros, relembrando os algoritmos estudados nos cursos e revezando na massagem cardíaca – as compressões torácicas devem ser feitas a um ritmo rápido (100 a 120/min) e, ao fim de uns minutos, é importante trocar de operador (a fadiga faz com que as compressões sejam menos eficazes).
Pedimos logo de início um desfibrilhador automático externo – de alguma forma adivinhámos que num evento como a Feira do Livro deveria existir um desfibrilhador. O aparelho analisou o ritmo e administrou dois choques. Todo o processo é automático e é o aparelho que decide se deve ou não administrar o choque. A utilização do DAE é muito simples, mas exige treino.
Quando chegou o INEM, a vítima já tinha pulso e respirava. Foi então iniciada uma segunda fase de cuidados mais diferenciados. E, nesse momento, passámos os cuidados para esta ajuda mais especializada de quem está treinado para o auxílio «na rua» e a nossa missão terminou. Pelo médico e enfermeiro do INEM foi obtido um acesso venoso (veia para administrar medicamentos), iniciado oxigénio e ventilação. Nos momentos seguintes, foi feito um electrocardiograma. O electrocardiograma mostrava alterações compatíveis com doença aguda das artérias coronárias. O INEM activou então a via verde coronária. Este programa, proposto em 2005 pelo Prof. Dr. Seabra-Gomes (na altura coordenador nacional do Ministério da Saúde para as doenças cardiovasculares), transporta para serviços especializados e laboratórios de hemodinâmica (onde se fazem cateterismos 24h/dia) os doentes com enfarte agudo do miocárdio. Francisco Moita Flores (só quando chegou o INEM e fomos rendidos nos apercebemos de quem era) foi transportado para o Serviço de Hemodinâmica do Hospital de Santa Marta e, depois de cateterismo, submetido a cirurgia de revascularização miocárdica (pelo Prof. Dr. José Fragata).
A descrição anterior evoca os quatro elos da «cadeia de sobrevivência» – após uma paragem cardíaca devem ser activados os serviços de emergência (1), iniciadas manobras de reanimação (2), desfibrilhar precocemente (3) e obter cuidados mais diferenciados (4).
Diogo Cavaco, médico cardiologista
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