a mosca e o ladrão
uma dessas noites tudo vai embora
leve-nos, ladrão
adriana calcanhotto, cantando noite
Uma mosca lânguida dançava.
O som chegava, libertino, do mar – como um vento adocicado. A mosca exercitava movimentos concisos, rápidos, frenéticos. Transe ou passe desajeitado. O seu corpo obedecia a uma interferência magnética não percetível. Mas que a mosca dançava – dançava.
As nuvens embalavam a madrugada. A brisa fraca trazia em si restos de sal, e memórias, e sorrisos de vidro, que a todo o momento se podiam quebrar.
Talvez o amor seja isso: restos de vidro e belas cicatrizes.
Ele dormia no quarto. O aquário dormia na sala. Os peixes não.
“Uma destas noites...”, dizia-lhe eu.
Ele dormia, sob o mosquiteiro encarnado.
“Quero que me ofereças um mosquiteiro: E que seja encarnado.”
Distingui com nitidez os passos do ladrão na cozinha. Calculei até o seu peso. Afligia-me não detetar nenhum odor.
Pousou o que fosse um saco ou uma mochila pequena. Foi acumulando objetos. Talvez a minha colher preferida. O meu prato fundo trazido da Argélia com desenhos finos, feitos à mão, lembrando estrelas no deserto frio. As minhas chávenas de todos os cafés tomados. Tudo o que ordenava a minha escuridão numa pauta de gestos quotidianos. A minha escuridão. A escuridão da sala.
Era uma janela enorme. Cabiam nela a madrugada e a mosca.
A mosca era, como outras, pequena. Outrora, o amor tinha sido enorme. Do tamanho de uma obsessão.
“Uma destas noites tudo vai mudar.”
Ele dormia sob a paz encarnada do mosquiteiro. Deslocou-se, o ladrão, da cozinha para a sala. Sem hesitação. A mosca parou a sua dança.
Viu-me. Compreende que, não o tendo visto, eu já sabia da sua presença. Não tendo gritado, já não o faria. O ladrão não podia gritar.
Pousou a mochila no chão, em gesto de entrega. Olhou a sala, o armário de madeira. Tocou os livros como se soubesse deles. Olhou a mulher na sala. Era eu.
Viu a janela. A mosca ainda lá estava. A madrugada também.
Trazia nos pés um par de sandálias dotadas de uma simplicidade comovedora, os pés limpos, e nem aproximando-se pude identificar o seu odor. Algum resto de incenso. Talvez madeira já esculpida.
– O que leva desta casa que não encontrou nas outras?
O ladrão sentou-se no sofá comigo. Mas não chegou perto.
– Comida.
Cruzou as pernas como se não tivesse pressa. Eu olhava alternadamente o ladrão e a mosca. Ele dormia lá dentro, no quarto. A janela acolhia a mosca.
– Também tem os livros de poesia reunida, isso poupar-lhe-á algum trabalho. Leve pelo menos a poesia oriental e a brasileira.
Ele acedeu com a cabeça. Fechou os olhos, respirando fundo, libertando-se não do cansaço, mas de uma espécie de futuro. Olhou de novo para mim. O ladrão emanava uma certa culpa. Atrapalhado por não ter mais que dizer, sentia cada oferta como um dardo doloroso.
– Leve-me consigo, ladrão.
– Vou para muito longe.
– Era esse o meu desejo.
Levantou-se. Alcançou um dos livros de poesia reunida.
– Levo uma vida já ocupada. Mulher e dois filhos. Não me leve a mal.
Estendeu-me a mão. Tocaram-se os corpos. Era mão não de homem mas de pessoa.
Trazia nela, confirmei, um cansaço para além das atividades diurnas ou das coisas materiais. E, nessa proximidade, constatei, não possuía odor algum.
A mosca voltou aos seus movimentos desajeitados. No seu bailado havia algo de caos organizado. Contudo, o tempo de exposição da dança não me permitiria detetar um padrão. O corpo do ladrão obedecia a uma melodia de retirada que não sofreria nenhuma interferência feminina.
A madrugada continha em si restos de sal, sorrisos e memórias de vidro que a todo o momento se podiam quebrar.
Talvez o passado seja somente uma bela cicatriz.
Regressei ao quarto. Havia um mosquiteiro. Era encarnado. No mosquiteiro, havia uma fresta aberta. Ninguém dormia na cama. Não houve, nunca, um homem adormecido na minha cama.
Difícil é aceitar lembranças.
Sei de um ladrão que não liberta odor algum. E (que) nunca tinha visto uma mosca dançar.
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