No quarto dia de julho de 1899, Ricardo Jorge recebeu um bilhete, “enviado por um comerciante da Rua de São João”, que chamava a atenção para “mortes inopinadas e consecutivas” na Fonte Taurina, na zona da Ribeira, junto ao rio. O médico municipal da cidade do Porto não demorou até ir visitar os infetados e volvidos dois dias alertava as autoridades para aquilo que observara naqueles “prédios miseráveis e imundíssimos”, junto aos cais do Douro, onde viviam os carrejões espanhóis que se debatiam com uma “epidemia de febre infecciosa”. Oito dias mais tarde, comunica em relatório ao Governador Civil, que a “sintomatologia e a marcha da epidemia assemelham-se às da peste bubónica”, a doença que no século VI matou entre 25 a 50 milhões de pessoas e que no século XIV se acredita que tenha sido a causa da peste negra que devastou a Europa, África e Ásia, causando 50 milhões de mortes.
A doença colocaria a nu uma cidade com condições de vida e higiene pré-industriais, quase medievais. O Porto que introduziu a luz elétrica em 1886, importou o primeiro carro em 1895, que à beira do virar do século era pioneiro na fotografia e no cinema, contrastava com a “cidade cemiterial” e “mortuária” descrita por Ricardo Jorge:
“Cada vez mais insalubre, a cidade não tem nas condições devidas nem água, nem esgotos, esses dois elementos imprescindíveis de limpeza, que a experiência tem demonstrado reduzirem a cifra da mortalidade geral. O hospital é um antro infecto, onde se amontoam doentes fora de todos os limites da tolerância e num desprezo repugnante das leis mais comezinhas da boa higiene. As classes pobres, o mundo dos proletários, vegetam ancoradas nuns alvéolos húmidos e lôbrengos, sem ar e sem luz, e abandonadas a uma especulação torpe que tão sordidamente as explora com a miserável edificação das ilhas. Há a desfiar um estendal de misérias e vergonhas, de males e de incúrias. É forçoso lavrar um protesto contra tanto desleixo, contra tanta inépcia, contra tanta loucura criminosa” .
Ricardo Jorge, que começou mostrar fascínio pela neurologia e hidroterapia, viria a destacar-se na área da saúde pública. Ganhou espaço e visibilidade com a realização de quatro conferências sob o título “A higiene em Portugal; A evolução da sepultura; Inumação e cemitério; A cremação”, que lhe valeram o convite de Oliveira Monteiro, então presidente da Câmara Municipal do Porto, também médico e seu colega, para integrar uma comissão técnica de estudo sobre as condições sanitárias da cidade.
O estudo, apresentado publicamente em 1888, para além de evidenciar uma elevada taxa de mortalidade (32,9%), muito superior à de zonas rurais (25%) e de outras cidades europeias, mostrava que “o problema que a todos sobreleva, que na cidade atinge toda a sua complexidade e importância, é o problema sanitário, provocado pelas condições materiais da vida em comum num espaço limitado. O formigueiro humano germina em si próprio o veneno da sua destruição. A vida social ganha em intensidade à custa da duração da vida individual”.
Para o Porto mudar enquanto cidade eram necessárias duas medidas fundamentais: “fornecer água pura, captada e canalizada; praticar a desinfecção e o saneamento”. As principais propostas para o combate aos problemas de salubridade baseavam-se no exemplo das cidades inglesas. Ricardo Jorge sugeria um conjunto de propostas que passavam por um inquérito ao saneamento, esgotos, natureza do solo, estatística populacional e legislação municipal, a criação de serviços de exaustão pneumática de fossas, uma organização completa do serviço de limpeza viária e remoção do lixo, a criação de sanitários públicos pela cidade, entre outras.
O relatório teria como consequência o convite da vereação da Câmara Municipal para que Ricardo Jorge ficasse à frente dos Serviços Municipais de Saúde e Higiene da Cidade do Porto, responsabilizando-se ainda pela secção bacteriológica. A intervenção levado a cabo na cidade prestigiavam o homem que aos 37 anos, em 1895, subia a “lente proprietário” [posição académica semelhante à de um professor catedrático] da cadeira de Higiene e Medicina Legal na Escola Médico Cirúrgica do Porto.
É nesta posição que Ricardo Jorge se volta a reencontar com a nossa história, para enfrentar uma doença que reaparecia mais de 200 anos depois, naquela que seria a terceira pandemia de peste bubónica, pela primeira vez a uma escala realmente planetária, atingindo todos os continentes.
Quem é o espanhol de 47 anos de idade que se demorou na latrina?
Quando Ricardo Jorge respondeu ao bilhete enviado por um comerciante portuense e se dirigiu à Fonte Taurina para realizar as primeiras observações, o médico municipal, inteirado dos novos casos de peste bubónica tinham sido identificados na província de Yunnan, na China, no final da primeira metade do século XIX, retirou várias amostras para tentar identificar o vírus. A oito de agosto, o trabalho laboratorial feito em paralelo com Câmara Pestana - diretor do Instituto de Bacteriologia de Lisboa - permitiria chegar a uma identificação sem margem para dúvidas e que era agora comunicada oficialmente ao país.
Sobrava uma questão: como tinha a peste, que ressurgia no continente asiático, chegado ao Porto, sobretudo se o próprio Ricardo Jorge verificou que no últimos meses só atracaram no cais do Douro embarcações vindas de portos europeus? Para a pergunta que nunca chegou a encontrar resposta certa — as responsabilidades ficaram repartidas entre os ratos e as pulgas e um navio de guerra vindo de Macau que atracou em Viana do Castelo no ano anterior, tendo o clínico a classificado como um evento "tão extraordinário que figurará por certo com realce especial nos anais da peste" —, o médico exibiu algo igualmente raro numa pandemia naqueles tempos: o perfil de um espanhol, o doente número um. O seu nome era Gregório Blanco.
"Espanhol, de 47 anos de idade, era carrejão de bordo e de armazéns de porto. Andava há pouco tempo adoentado duma pontada no lado direito, sem inchaço algum, quando a 5 de junho passado depois de um dia de serviço, entrou no domicílio taciturno e cambaleante; a gente da casa chegou a supô-lo embriagado. Foi à latrina, e como se demorasse, os companheiros foram dar com ele já morto. Trabalhava ultimamente em carrego de trigo para os armazéns da casa Barreto", pode ler-se nos registos de Ricardo Jorge.
Peste? Qual peste?
Os casos identificados de peste bubónica não tinham grande eco na imprensa do Porto da altura que procurava abafar o tema, insistindo que não se vivia uma situação epidémica, com os jornais a guiarem-se por um discurso apaziguador e de apelo à higiene urbana, mesmo quando já tinham sido identificados casos no Largo de São Domingos e na rua de Santa Catarina, na zona alta da cidade, distantes da Fonte Taurina.
A verdade é que o dispositivo sanitário também não causava grande alarido. Em julho, as medidas levadas a cabo pelo Governador Civil ter-se-ão limitado à limpeza e queimadas de algumas das casas onde se registaram surtos de doença suspeita e a visitas sanitárias a mercados e a locais com más condições de salubridade. No entanto, era na sombra que Ricardo Jorge ia produzindo um trabalho que lhe valeu o prestígio internacional como epidemiologista.
O clínico determinou o isolamento dos doentes, numa primeira fase, no Hospital de Santo António e teve o cuidado de mandar desinfetar o pessoal que transportava os infetados. No entanto, as ações rápidas e a comunicação simples e concisa não encontravam resposta semelhante na Junta Consultiva de Saúde Pública.
Só 20 dias depois do primeiro relatório de Ricardo Jorge e mais de dois meses volvidos após o primeiro óbito registado é que o governo progressista de Luciano de Castro emite o decreto que segue as diretrizes traçadas por aquele instituto de saúde pública nacional. O documento seria o primeiro esboço do cerco que estaria para chegar, uma vez que para além de proibir a realização de feiras, romarias e ajuntamentos, só se ocupa de medidas de limitação de circulação de pessoas e mercadorias a partir do Porto. Quem chegava de comboio à cidade, por exemplo, passava a estar obrigado a uma inspeção médica no destino e, novamente, na partida. Além disso, partiriam do Porto com uma guia sanitária e tinham a obrigatoriedade de, nove dias depois da chegada, fazer novo exame. As bagagens, essas, não eram esquecidas, devendo ser desinfetadas. As mercadorias passavam a só poder circular pelo mar a não ser que pudessem também elas ser desinfetadas.
Perante uma peste que não afetava o quotidiano das pessoas e os casos que não eram em demasia, as medidas do governo central de Lisboa, que nunca mandara uma delegação ao Porto para se colocar a par dos acontecimentos, causavam desconfiança entre a população em relação à epidemia. A imprensa, que alimentava o sentimento de paz na cidade e de guerra contra o governo central da capital portuguesa, fazia aumentar essa desconfiança. No dia 20 de agosto, o jornal Voz Pública publicou a carta do médico Ferreira Vaz sobre o que se passava na cidade e na qual é dito que uma “epidemia é caracterizada pelo acometimento de uma doença ao mesmo tempo e no mesmo lugar de grande número de pessoas”, interrogando-se se tal “não é cómico e muito para rir não fora o enorme prejuízo que acarreta” quando se fala da situação do Porto.
O cerco ao Porto
A aclamação de Ricardo Jorge entre a classe médica estava longe de ser partilhada pelos portuenses, que desconfiavam cada vez mais da peste e que viam no médico municipal a razão para as medidas que condicionavam a vida e a economia da cidade. O ânimo da população contra o médico escalaria em vários episódios. Um deles, após o suicídio da viúva de António Rodrigues dos Santos, a quem Ricardo Jorge tinha diagnosticado a peste. Esta, vivendo em isolamento com dois filhos menores, atirou-se da janela do número 32 da rua Escura.
“Atirou-se seminua e uma multidão não inferior a 300 pessoas seguiu a maca até ao hospital”, relata o Jornal de Notícias à época. No dia seguinte, o funeral de Maria de Oliveira Pinho é seguido por uma multidão que protestava contra as medidas sanitárias em vigor. Enterrado o corpo, uma massa de pessoas que se diz não inferior a mil, desfilou até casa de Ricardo Jorge. Sorte a do médico que não vivia na rua do Almada para onde se dirigiu o protesto que, ao engano, apedrejou a casa do pai de forma incansável até uma vizinha os conseguir convencer que Ricardo Jorge já não vivia ali.
O médico que detetara a peste era agora o alvo da ira popular, inflamada pelos jornais que o desacreditavam, alicerados na opinião de outros médicos portugueses que não rejeitando a doença, rejeitavam a situação de epidemia e criticavam as medidas do governo. A situação de insatisfação chegou a tal que as brigadas de higienização e equipas médicas eram apedrejadas e insultadas na rua, ao ponto de a transferência de doentes para hospitais e locais de isolamento ter de passar a ser feita à noite.
De uma Lisboa, amedrontada que a peste se espalhasse pelo país e que Espanha fechasse as fronteiras, o que resultaria em avultadas perdas económicas para Portugal, começa a chegar o rumor de que o Porto seria fechado com um cordão sanitário. O medo veio anunciado nas páginas do Voz Pública do dia 20 de agosto: "O Porto teve a peste, a fome e a guerra quando do cerco homérico que experimentou; e a geração altaneira desse tempo não tremia diante dos micróbios, como não tremia debaixo da metralha. Se há coisa hedionda agora, não é a peste infeta: é o medo infeto da peste", podia ler-se. "Estas ideias de isolamento são a calamidade mais espantosa. [...[ Isolar o Porto, dadas as relações económicas que o prendem particularmente às províncias do Norte, implica decretar a miséria", acrescentava.
Dois dias depois, a Junta Consultiva de Saúde Pública oficializava os rumores. Era decidido “isolar o Porto por meio de um rigoroso cordão sanitário, estabelecendo-se além de outras medidas por enquanto de caráter reservado um lazareto e pontos de desinfeção.” O diploma determinava que, enquanto durar a epidemia da peste bubónica no Porto, “será interrompida a liberdade incondicional das suas relações com o resto do reino por meio dum cordão sanitário, disposto pelo modo mais ajustado”. Preparava-se assim um dispositivo composto pela Infantaria 3 de Viana do Castelo, Infantaria 20 de Guimarães, Cavalaria 6 de Chaves e Cavalaria 10 de Aveiro. Seria um cerco militar com cerca de 2.500 homens.
O resultado da medida foi um êxodo brutal. Os números que nos chegam hoje divergem, mas a imprensa da época afirmava que entre 20 a 40 mil pessoas fugiram do Porto.
O ‘cerco’ a Ricardo Jorge
A ideia da cerca sanitária como solução para lutar contra a peste vinha da segunda pandemia, há centenas de anos. No período entre a segunda e terceira pandemia de peste bubónica já tinha sido descoberta a natureza infecciosa da peste, em 1894, por Alexander Yersin, do Instituto Pasteur, que batizou assim a doença. Uma vacina com sucesso só chegaria em 1933, com os soros produzidos até 1899 a serem pouco eficazes. Tinha-se também provado que o cerco sanitário já não era a melhor solução. Foi com esse tema que O Comércio relatou a experiência que um delegado inglês levou à conferência de Veneza, sobre a peste bubónica, e na qual o próprio disse que Inglaterra tinha identificado três casos por importação, mas que foi “sem recorrer a medidas quarentenárias, e com o único auxílio dos meios profiláticos que a ciência aconselha” que tinha conseguido “não só evitar o desenvolvimento da doença, como ainda curar aquelas três pessoas atacadas”.
Em Portugal, os grandes nomes da medicina falaram contra o cordão, apelidando-o de uma medida que já não pertencia a este tempo, salientando a necessidade do reforço da higiene e saneamento da cidade e a adoção de medidas profiláticas para com os infetados.
Em relação a Ricardo Jorge, só uma referência na imprensa existiu em relação à sua opinião sobre o cerco: ‘O estabelecimento de cordão sanitário é um disparate máximo, tanto mais que a peste bubónica acha-se já em diversas localidades do país. O cordão servira para aqui nos devorarmos uns aos outros’”.
A decisão que vinha de Lisboa era vista no Porto como um golpe numa cidade que prosperava, como uma vingança contra a cidade que nesse mesmo ano elegera três deputados republicanos. No Porto, fechado, as pessoas juntavam-se, reclamavam a independência acima do Mondego, rogaram pragas à capital. Exigiram mudanças, mas a cidade apenas gritou sobre si mesmo. O Porto que pouco mais de 60 anos antes tinha sido último baluarte das tropas liberais de D. Pedro contra o cerco miguelista e absolutista, padecia perante Lisboa que não arredava o cerco, mesmo face à enorme e notória crise económica que se avizinhava com fábricas e lojas fechadas, a pobreza a alastrar na cidade e a dificuldade em fazer entrar mercadorias.
O clima de tensão, à falta de um representante do governo central, recaía cada vez mais sobre Ricardo Jorge que começa a considerar intolerável continuar nas suas funções. Mas tudo iria ainda piorar. Primeiro com a guerra aberta à imprensa, com a ameaça de suspensão dos jornais, que resultou num movimento maior contra o seu nome e o aumento de tiragens dos títulos da época que faziam a ginástica necessária para conseguir chegar às pessoas. Depois, com a chegada de Gomes da Silva a Portugal, afamado médico que vivera nos últimos anos em Macau onde combateu a peste.
Gomes da Silva, em entrevista ao Comércio, acabaria por confirmar que o Porto tinha sido atacado pela peste bubónica, mas um ataque “fraco e obscuro”, o que o levava a dizer que estávamos perante “endemia, mas nunca poderá chamar-se-lhe epidemia”, acrescentando ainda que o “cordão sanitário era um absurdo prejudicial” e o isolamento de casas “uma selvajaria”. O médico colocou ainda em dúvida a data do aparecimento da peste, defendeu o saneamento como principal medida e assumiu ainda duvidar de muitos diagnósticos feitos a pacientes que observara.
Cansado, desacreditado e com uma cidade que o olhava como rosto de todas as maleitas, Ricardo Jorge escrevia ao Governador Civil: “como se já não fosse triste o lutar com armas insuficientes contra uma epidemia devastadora vemo-nos sem força moral e legal para prosseguir no combate. Há trezentos anos havia mais e melhor; parece que até nisto se mostra mais uma vez a degeneração da sociedade portuguesa”. Sem resposta animadora, o destino parecia traçado e Ricardo Jorge acabaria mesmo por a 18 de outubro aceitar ocupar o lugar de diretor da nova Direção-Geral da Saúde e Beneficência Pública, partindo assim para Lisboa.
O cordão sanitário seria levantado em vésperas de Natal desse mesmo ano, sem grande alarido, com uma cidade que se habituava a uma nova rotina e que furava uma cerca cada vez mais frágil. Até ao final do ano os casos mantinham-se relativamente concentrados no centro do Porto, com exceção do surto registado em Baguim, Gondomar. Em Gaia, do outro lado do rio, não se registavam, até à altura, contaminados.
A peste ficou na cidade, endemicamente, até 1915. No total, houve cerca de 320 casos e 132 mortes. O Porto foi a última grande cidade europeia a viver a peste como verdadeira catástrofe, apesar de a ter havido em locais como Paris, Marselha e Açores, mas de reduzida expressão. Nesta terceira pandemia da peste, o país mais fustigado foi a Índia que registou entre 13 a 15 milhões de mortos nos 12 anos seguintes.
Até hoje, vive a memória da catástrofe, da revolução higiénica e sanitária e uma cidade que já não conseguiu lutar como outros tempos e que foi cercada e vaticinada à pobreza e à fome pelo governo central, contra a opinião especializada. Hoje, 121 anos depois, falou-se somente na possibilidade de um cordão sanitário ao concelho do Porto e logo imediatamente a Câmara liderada por Rui Moreira disse que não, que tal medida não fazia sentido e disse não reconhecer autoridade na Direção-Geral da Saúde que curiosamente nascera na sequência daquele episódio negro da história da cidade. Fustigado por outro vírus e outra pandemia, o Porto segue como uma nação que não se verga, mas que se trata.
Este artigo foi escrito com base nos seguintes escritos: "O cerco da peste no Porto - Cidade, imprensa e saúde pública na crise sanitária de 1899", tese de mestrado de David Pontes; A Peste Bubónica no Porto, Ricardo Jorge; O Cerco – Sobre a epidemia de peste bubónica no Porto em 1899; "Ricardo Jorge e a Saúde Pública em Portugal - Um "Apostolado Sanitário""
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