Na história da música o romantismo é um dos períodos mais inovadores, com o seu lirismo melódico, harmonias ricas e expressividade emotiva. Os românticos ambicionam a sociedade ideal, o reencontro com a humanidade não corrompida. São eles os inventores da paisagem de montanha, das planícies esmagadoras coloridas de melancolia — e do Natal doméstico e burguês, que duzentos anos mais tarde é responsável por toneladas de desperdícios na manhã do dia 26. Mas as cartas aos amigos e à família destes homens e mulheres que chegaram aos tops mostram um Natal diferente.
O Natal vai até aos reis
Uma das grandes composições criadas para as celebrações religiosas da temporada mantém o lugar no repertório das salas profanas, a Oratória de Natal de Bach. A paixão de Berlioz pela música de Bach torna a oratória uma espécie de prelúdio ao Natal romântico e burguês, mas da maneira como Bach celebrou o Natal com a família numerosa hoje pouco sabemos; do que não há dúvida é de que as épocas especiais eram para ele como para a maior parte de nós momentos de acréscimo sério de trabalho.
Das mais de mil obras incluídas no catálogo mais usado de Bach, uma boa parte foi produzida para corresponder a exigências dos empregadores por ocasiões como esta. A educação católica de Berlioz, o compositor romântico por excelência, não o impediu de se tornar um missionário de Bach, um luterano tranquilo esquecido após a sua morte e recuperado pelo compositor francês. A Oratória de Natal do alemão acompanha as celebrações do Natal aos Reis e foi executada pela primeira vez nos dias próprios do Natal de 1734 na Igreja de São Tomé em Leipzig.
Chega a árvore, e as prendas
O verdadeiro Natal burguês só viria mais tarde, e a correspondência trocada pelos músicos, os principais artífices das festividades, mostram a celebração que conhecemos hoje na sua autenticidade. Sobressaem elementos como a família, a árvore e os presentes.
Berlioz, que viria a afastar-se da religião, é apesar disso autor de um tema importante do repertório de Natal — a oratória L’Enfance du Christ, com uma estrutura que recorda as Paixões do mestre. Numa carta de Outubro de 1854 assume a popularidade do tema do nascimento de Cristo e destaca o êxito esmagador da composição na imprensa francesa, inglesa, alemã e belga.
As crianças estão omnipresentes nos textos pessoais dos músicos, assim como os sentimentos próprios da infância. Robert Schumann, outro dos expoentes musicais do romantismo, numa carta empolgada de agosto de 1837 diz sentir-se “como uma criança que anseia pelo Natal”. Noutra carta, dirigida de Viena em dezembro de 1838 à cunhada Theresa Schumann como saudação para o Natal, diz que nessa noite estará em pensamento com Clara, a futura mulher, e a observar Theresa a ornamentar a árvore. Noutro momento, dessa vez em carta a Clara da mesma época, remete um presente, uma composição original intitulada Bunte Blätter, dedicada “em saudação de noite de Natal” à noiva, e antevê a emoção do seu abraço aquando da oferta de outros presentes: “um chapéu, diversos brinquedos e algumas novas composições”. Melhor será possível?
As referências dos compositores do romantismo ao Natal incluem os rituais e as tradições europeias típicas, mas também aludem à solidão do dia por as obrigações profissionais os separarem da família. No começo do novo século, Beethoven, um dos compositores que com Berlioz marcam o arranque do movimento romântico na música, manifesta numa carta de dezembro de 1806 como a temporada é marcada pelo trabalho para os músicos, e lembra a importância do cumprimento de uma promessa do ano anterior, de levar a cabo um concerto claramente preso à agenda das festividades religiosas. As alternativas eram o dia da Anunciação (25 de Março), e, nove meses depois, um dos dias do calendário de Natal.
A árvore de Cristo
Felix Mendelssohn é uma das testemunhas mais curiosas da origem do Natal romântico. Nascido numa família judaica burguesa assimilada, e de um meio cultural privilegiado, trocou uma correspondência extensa. Na sua família, como em muitas outras de origem judaica até à guerra de 14-18, o Natal é celebrado como uma festa familiar de que a ocasião religiosa começa a ser um pretexto vago. Numa carta de dezembro de 1843 à irmã Rebecka, então em Itália, conta que a véspera de Natal fora celebrada em sua casa e naquele exato momento as velas estavam a ser postas no candelabro da sala azul, onde a árvore seria montada no dia seguinte.
A referência do compositor é uma das muitas que mostram como a árvore começa a ser o símbolo por excelência do Natal europeu. Fixada num suporte de madeira pintado de verde com o formato de uma cruz, ornamentada discretamente com figuras douradas e prateadas, iluminada com pequenas velas e rodeada de presentes, cedo é importada dos territórios de influência germânica pelas restantes aristocracias europeias e depois pelas camadas mais populares. Nessa carta do Natal de 1843, Mendelssohn dá conta dos presentes na base do pinheiro e de como seriam distribuídos: a Cécile, a mulher, 16 plantas, um vestido preto de cetim, um bonnet, algumas trivialidades, e uma paisagem verde em cartão da sua autoria. Ao irmão Paul uma paisagem comprada a Sachse, um vendedor de imagens; à irmã Fanny uma toalha para a sala azul; ao cunhado, Hansel, enchidos e vinho clarete; ao sobrinho Sebastian um candeeiro de estudo; aos filhos ainda crianças um conjunto de mobiliário em miniatura. Nesta última escolha deu primazia dos desejos dos pequenotes: “Eles têm querido esta mobília.” Dos presentes pensados por Mendelssohn emana a preocupação de que se adequem à idade e ao gosto do presenteado.
Numa carta de 27 de dezembro, Rebecka dá conta à irmã Fanny das celebrações de Natal em Itália e junta à carta uma pequena vinheta com uma árvore de Natal pintada por Kaselowsky. Lamenta a falta de um abeto e refere que em Itália o lugar da árvore tradicional é ocupado por um loureiro “que toca o tecto”, maravilhosamente adornado com rosas, grandes cachos de uvas, laranjas e um elemento tipicamente romano: frutos cristalizados. Acrescenta que na base da árvore há uma coroa de loureiro, maçãs, nozes, e os incontornáveis presentes. Entre estes destaca um vaso para cinza de charuto de giallo antico, uma pilha de charutos artesanais e um suporte para tinta, entre outros numa celebração de Natal em que lamenta a ausência de crianças.
O idílio romântico de Tribschen
No Natal de 1870, Richard Wagner e Cosima recebem em Tribschen um convidado especial, Friedrich Nietzsche, que numa carta enviada à mãe e à irmã refere que no dia 25, o do aniversário da “Sr.a Wagner”, ouviu pela primeira vez o o Idílio de Tribschen (mais tarde intitulado Idílio de Siegfried), fragmento sinfónico composto por Wagner para esse dia, e enumera os presentes recebidos: “No dia de Natal recebi um magnífico exemplar do Beethoven, uma luxuosa edição completa de Montaigne (que venero) e — qualquer coisa de único! — o primeiro exemplar da edição para piano do primeiro ato de Siegfried.”
Cosima Wagner divorciara-se do compositor, pianista e maestro Hans von Bülow para casar com Richard Wagner, o seu grande amor, que venera. Numa das entradas dos dois grossos volumes de diários que deixou refere no dia de Natal de 1870 a surpresa com esse presente especial, a peça sinfónica de aniversário, a sua comoção bem como a dos cinco filhos. Já em 1867, ainda não formalmente divorciada, Cosima refere os “belos presentes”, a “bracelete com a pedra da esperança, as imagens de lendas e contos de fadas”, e todos os brinquedos que “o amigo” trouxera de Paris.
Para lá dos Urales
O compositor e químico russo Alexander Borodin parece-nos curiosamente próximo do Natal que conhecemos — refere o contributo da doença e da tranquilidade da época para o processo criativo numa carta que escreve em Moscovo em Junho de 1876: “É necessário tempo para a concentração, para entrar na disposição certa, ou então criar um trabalho bem sustentado é impossível. No Inverno apenas posso compor quando estou doente porque desisto das palestras e trabalhos de laboratório. Então, e desafiando os hábitos, os meus amigos nunca me dizem ‘espero que se encontre bem’, mas ‘espero que se encontre doente’. No último Natal a gripe impediu-me de ir para o laboratório. Fiquei em casa e completei o coro de Ação de Graças para o último ato do Igor. Também escrevi o lamento de Yaroslavna quando me encontrava doente.”
O Pai Natal e a neve
Nos volumes de cartas que Johannes Brahms trocou com a também compositora Elisabeth von Herzogenberg encontram-se referências interessantes ao Natal. Em carta de Leipzig em dezembro de 1880, Elisabeth manifesta a emoção de ter recebido nesse Natal do seu grande amigo os duetos de Händel trabalhados para piano. A excitação por a missiva ter chegado “meia hora antes de a árvore de Natal ser iluminada” mostra que se tratava de uma ocasião com mais solenidade que o momento em que hoje ligamos o interruptor.
No período os presentes de Natal eram em geral postos em mesas separadas numa divisão previamente preparada para a ocasião, onde no centro estava a árvore iluminada. Um hino cantado precedia a cerimónia de entrada na sala, onde em seguida os presentes eram desembrulhados.
Numa outra missiva, de 29 de dezembro de 1880, Elisabeth von Herzogenberg começa com um “Meu querido Pai Natal, não imagina como nos encantou com a sua visita surpresa...” E desculpa-se mais à frente por a “casa estar tão agitada” e o quarto enfeitado tão carregado de “coisas de Natal que pouco espaço sobrava para o bom Brahms”. E é Brahms que na véspera do Natal de 1890 escreve à amiga Clara Schumann: “Aqui ao lado, na minha biblioteca, também está montada uma grande e bela árvore que esta noite será velada pelos dois meninos queridos da minha empregada.” E prossegue: “Não poderíamos ter um tempo mais delicado neste Natal. Todas as árvores e arbustos estão cobertos de gelo e de neve, uma verdadeira alegria para quem sai para um passeio. [...] Mas não vou detê-la mais tempo. Desejo-vos um feliz Natal e um feliz ano novo.” É como terminam em geral as cartas de oitocentos, como as de novecentos, e os artigos de 2020, ainda que em contexto pandémico: com votos de feliz Natal e feliz ano novo.
*A primeira versão deste ensaio foi publicado na edição impressa do Jornal i do dia 31 de dezembro de 2015.
Comentários