Fui a Notre-Dame com 6 ou 7 anos, fruto da generosidade dos meus pais que me levaram a mim e à minha irmã numa viagem de carro do Montijo até à Disneyland Paris, com paragem obrigatória na capital francesa para ver, por entre Louvres e Arcos do Triunfo, a famosa Catedral de Notre-Dame. A minha memória vai sempre buscar os vitrais, ainda que não me lembre de nenhum em específico. O que me lembro é das cores e do facto de nunca ter entrado numa igreja tão bonita até então (nem depois disso, já agora). Não era um miúdo que amasse visitar museus ou monumentos (ao contrário da minha irmã), mas Notre-Dame ficou-me na memória.
Feito este ponto prévio, devo dizer que quando vi as imagens do incêndio de segunda-feira, essa minha visita não foi a única coisa que me veio à memória. Este que vos escreve tem 32 anos, cresceu com o renascimento da Disney nos anos 90, com “O Rei Leão”, o “Aladino” e, claro, “O Corcunda de Notre-Dame”. Até segunda-feira, nunca mais tinha pensado n’ “O Corcunda de Notre-Dame”, ao contrário dos outros dois exemplos que dei (e que vão ter remakes em breve). Mas o incêndio e a propagação de memes com Quasimodo que inundou a Internet nos últimos dias (já todos percebemos a “piada”, podem parar) deu-me vontade de rever o filme, um dos muitos que foram feitos baseados na obra de Victor Hugo.
Mas já lá vamos.
Em 1825, Victor Hugo tinha um problema. Estava preocupado com a preservação dos monumentos nacionais franceses e foi por isso mesmo que escreveu um panfleto intitulado “Guerra aos Demolidores”. Quatro anos depois, começou a escrever “Notre-Dame de Paris”, o título original da obra que viria a ser conhecida como “O Corcunda de Notre-Dame” e que foi publicada em 1831, dois anos depois, alegadamente devido ao facto de o autor querer ser muito meticuloso na descrição da catedral (à qual dedica dois capítulos do livro, de resto).
O sucesso do livro chamou a atenção para o estado de Notre-Dame, que foi, uma vez mais, objeto de restauro, algo que aconteceu várias vezes ao longo dos seus mais de 800 anos de história.
A história de Notre-Dame mistura-se, pois, com a história de França e da Europa. Como a Inês Alves brilhantemente escreveu no editorial do SAPO24 que explica o porquê de “vitralizarmos” a nossa página principal, a catedral é “uma construção do tempo de todos nós, um reflexo da história de França, da Europa, da nossa História.”
E é por isso que, para além de Victor Hugo, Notre-Dame inspirou escritores e pensadores como Proust e Freud, bem como filmes. São várias as películas em que a catedral desempenha um papel, d’ “O Fabuloso Destino de Amélie” a “Van Helsing”, passando, claro está, pelas adaptações para cinema e TV da obra de Victor Hugo (a Wikipédia diz que são 15) e pelo filme que me fez escrever tudo isto: a versão da Disney, de 1996, d’ “O Corcunda de Notre-Dame”.
O filme (que tem algumas diferenças relativamente ao livro) começa com uma família cigana a chegar a Paris numa doca perto da catedral de Notre-Dame. Só que assim que colocam os pés em terra são detidos e confrontados pelo terrível juiz Claude Frollo, que persegue uma mulher até à catedral, onde lhe consegue arrancar um bebé dos braços, acabando por matá-la.
Assustado pelo aspeto físico da criança, Frollo preparava-se para o deitar num poço até que é detido por um pároco – e pelos “olhares” das gárgulas de Notre-Dame –, que lhe pede para cuidar do bebé como se fosse seu. O juiz concorda (com o objetivo egoísta de que talvez, quando o bebé crescer, lhe possa ser útil de alguma forma) mas com a condição de que a criança viva na catedral de Notre-Dame, escondido na torre onde ninguém o possa ver. E dá-lhe o nome de Quasimodo, que significa “meio-formado”.
Quasimodo passa a viver na torre dos sinos de Notre-Dame e sai pela primeira vez à rua no chamado “Festival dos Tolos”, onde é “coroado” o homem mais feio de Paris e depois alvo de gozo e de agressões por parte da assistência, até ser salvo por Esmeralda, uma bela cigana que faz frente a Frollo que, como já se percebeu, não é propriamente fã de ciganos.
No meio de tudo isto há também Phoebus, um capitão da guarda que vive num dilema moral: obedecer a Frollo (o seu chefe, no fundo) ou seguir o seu coração não-discriminatório (e Esmeralda, já agora). E mais não conto, para que possam rever o filme como eu, que já não me lembrava da trama nem do seu final.
Na versão original, Tom Hulce (o Mozart de “Amadeus”, filme que venceu oito Óscares em 1985) dá a voz a Quasimodo, Demi Moore é Esmeralda e Kevin Kline é Phoebus. Ah, e Jason Alexander, o George Costanza de “Seinfeld”, dá também voz a uma das gárgulas falantes do filme (são três, vivem com Quasimodo na torre dos sinos e servem muitas vezes de comic relief na trama, uma espécie de Timon e Pumba+1 que se conseguem transformar em pedra).
Contudo, este não foi um dos filmes de maior sucesso comercial da Disney (fez “apenas” 325 milhões de dólares de bilheteira, longe dos 425 milhões d’ “O Rei Leão”, estreado dois anos antes, por exemplo). Não obstante, é por muitos apontado como um dos seus filmes mais “adultos”. Exemplo disso é o facto da própria Disney ter acreditado que o filme teria classificado como PG (sigla para Parental Guidance Suggested, que significa que a película pode conter cenas desapropriadas para crianças) nos EUA, apesar de tal não ter acontecido e do filme ter sido categorizado como apropriado para todas as idades.
De facto, “O Corcunda de Notre-Dame” aborda uma série de tabus como as fantasias sexuais de Frollo com Esmeralda ou a discriminação da etnia cigana (“O que eles têm contra pessoas que são diferentes?” diz Esmeralda, a certa altura, no filme) de forma bastante explícita e, não vou mentir, a cena em que Quasimodo é amarrado e atingido com vários objetos fez-me engolir em seco várias vezes tal a crueldade da mesma – sou um tipo sensível, ok?
Outra das coisas que esta nova visualização do filme me mostrou (e de que não tive noção da primeira vez que o vi) é que a Igreja é retratada como um refúgio para os proscritos, sendo exemplo disso a música de Esmeralda “God Help The Outcasts”, um tema que não é mais do que um pedido de ajuda a Deus (e que na versão portuguesa de Sara Tavares não é tão explícito).
A banda sonora tem, de resto, um papel importante em “O Corcunda de Notre-Dame”, tendo o filme sido nomeado para Óscar nesta categoria (a sua única nomeação) e originado um musical que já passou por várias cidades dos EUA e da Europa.
Não sei se Victor Hugo tinha em mente tudo isto quando escreveu “Notre-Dame de Paris”. Provavelmente queria “apenas” escrever um bom romance e, pelo caminho, chamar a atenção para um dos símbolos da capital francesa. Pois bem, a verdade é que, muito provavelmente, Quasimodo ajudou a salvar Notre-Dame.
E apesar da adaptação do livro feita pela Disney não ter sido do agrado dos familiares descendentes do escritor francês, à data, não é menos verdade que os temas que aborda estão ainda (e infelizmente) atuais. Pode um filme de animação de 1996 sobre um corcunda e uma cigana ajudar-nos a lidar com quem é diferente? A lidar com os tais “outcasts” que Esmeralda cantou?
Que Notre-Dame – o livro, o filme, o monumento – nos sirva de inspiração (como antes a Proust, Freud e Victor Hugo) para lambermos feridas, olharmos em frente e nos tornarmos todos um bocadinho melhores.
Artigo corrigido às 16h48
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