Em 2004, um senhor chamado Diplo lançou uma mixtape intitulada “Favela on Blast”, uma espécie de mapa do tesouro que levou inúmeros aventureiros até àquela que é uma das maiores pérolas da música eletrónica feita no Brasil: o baile funk. Partiu do produtor e DJ norte-americano o primeiro olhar mainstream sobre a música que se fazia (e faz) nas favelas e guetos do Rio de Janeiro, e não só; uma música sobretudo rítmica, onde pequenos pedaços e frases curtas de ordem convivem com samples e melodias roubadas a outros tantos artistas e canções e géneros musicais, dos Kraftwerk à 'Bella Ciao', do rock e do metal ao forró e ao samba. A Diplo, seguiram-se nomes como M.I.A., que gravou, também ela, uma mixtape com influências do baile funk na companhia do primeiro.
De lá para cá, o género explodiu. Das favelas, seguiu para as tabelas. Do minimalismo expresso em computador e quarto imundo, passou para os estúdios e para as mãos de grandes produtores. Mas nunca perdeu o seu rumo ou a sua linha de base. É, ao mesmo tempo, uma espécie de hip-hop Made in Brazil, e um punk adaptado a uma máquina de ritmos. Simples, mas direto. Cru, mas grandioso. Potenciador de artistas que hoje enchem salas de espetáculos por todo o globo e de êxitos que são repetidos, ad nauseam, por todos quantos os ouvem – lembremo-nos, por exemplo, do recente e inescapável 'Tá Tranquilo, Tá Favorável', de MC Bin Laden, que chegou até ao Museu de Arte Moderna de Nova Iorque.
Tudo isto, apesar da controvérsia. No Brasil, são ainda muitos os que veem no baile funk uma música criminosa, misógina, que banaliza a mulher até esta não ser mais que mero objeto sexual, e cujos produtores estão ligados ao tráfico e consumo de drogas nas favelas do Rio. Há quem diga que a exportação do baile funk é ostensivamente uma vergonha para esse país, quando comparada com a exportação da bossa nova cinquenta anos antes. Como se ambos os géneros não nos deleitassem, ainda que de formas diferentes. Como se não fossem ambos expressões culturais extremamente válidas. Como se o mundo fosse composto apenas por preto e branco e não por gigantescas quantidades de cinzento.
Anitta popularizou-se através desse meio funkeiro e é hoje uma mega-estrela no seu Brasil, estando prestes a sê-lo no mundo todo. Não foi ela quem exportou o ritmo do baile funk, não será ela a cantá-lo da melhor maneira, não é ela o expoente máximo do género. Mas é, sobretudo, uma figura de respeito. Uma diva no sentido que se costuma dar à palavra em meios musicais. Beyoncé, dizem alguns, não é nada comparada com Anitta. Talvez não consigamos concordar (plenamente) com essa afirmação exagerada, mas percebemos de onde ela parte. Porque Anitta só precisou de subir ao Palco Mundo do Rock in Rio, como rainha (do Brasil, do mundo, ou do universo), para que um burburinho enorme se instalasse no seio do público. Isto já depois de alguns gritos terem ecoado pelo recinto, pelo nome Anitta, que até é mais marca que nome.
Bastou-lhe subir, dizíamos, ao Palco Mundo. Ou melhor; bastou-lhe aparecer, por detrás de uma enorme caixa de metal onde se podia ler, como escrito acima, Made in Brazil. Acompanhada por um vasto grupo de dançarinas de todas as formas e feitios e por ginastas treinados, Anitta estreou-se em Portugal com um espetáculo onde nada foi deixado ao acaso e tudo pareceu correr com o mais puro rigor, desde os temas cantados à cenografia, passando pela banda que ia debitando ritmo atrás de ritmo, vindo da pop, do reggaeton, de algum samba, e de tudo o mais que fizesse abanar o rabo, perdão, a bunda – especialmente a da cantora, que foi mostrada uma e outra vez nos ecrãs laterais, através de planos mais ou menos aproximados.
A efusividade com a qual Anitta foi recebida não pareceu, nos primeiros instantes, ter-se transformado em movida por entre o público, que ostentou bandeiras muitas – sobretudo a do Brasil e a bandeira arco-íris. Talvez este ainda estivesse meio zonzo, aturdido com o que tinha acabado de acontecer, a vinda de Anitta. Talvez estivesse de boca caída no chão, num embasbacanço geral. E a própria cantora tê-lo-á percebido. Poucos minutos depois, pediria a Lisboa para “sair do chão”, levando toda aquela multidão a pular em uníssono. O terramoto provocado deverá ter sido sentido em Madrid...
Terramoto, cometa, onda gigante, todas estas expressões poderiam ser aplicadas a Anitta, que ao longo de pouco mais de uma hora entoou as suas canções e as de outros (houve espaço para uma versão de 'Garota de Ipanema', clássico da bossa nova que fez a ponte entre o antigo e o moderno), rebolou de forma sensual, trocou por três vezes de roupa e ainda deu espaço a um DJ para que este apresentasse alguns temas mais atuais do baile funk. Isto, já depois de ter dito estar ali, àquela hora, em “representação dos funkeiros” de todo o Brasil, mostrando não esquecer ou esconder as suas raízes. Melhor ainda: arrancou-as do chão para que todo o mundo as visse. Durante um concerto que só poderia terminar com um “Show das Poderosas”, Anitta foi dona disto tudo; do festival, do país, dessa coisa chamada baile funk, das bundas, do ritmo. Prostremo-nos perante a sua realeza.
Tendo isto em mente, Bruno Mars poderia ter trazido as coroas que quisesse, e que adornaram os ecrãs poucos minutos antes da sua entrada em palco. Era ele a razão principal para que milhares atrás de milhares de corpos se enfiassem num canto ou num canteiro, junto do gradeamento ou preenchendo as colinas do Parque da Bela Vista, entre barracas de brindes ou árvores muitas (qual Jamor em dia de final de Taça, faltando apenas o churrasco); nenhum esforço foi poupado na demanda por um local com boa visibilidade. Houve, até, quem na véspera dormisse ao relento, na avenida que dá para o recinto, à espera do músico norte-americano. Que só foi diva no mau sentido, não permitindo a reportagem fotográfica do seu concerto.
A espera terminou quando uma voz em autotune perguntou aos presentes se estariam prontos, pedindo gritos, sumindo para dar lugar à banda e à pirotecnia e a uma das maiores estrelas pop de hoje em dia: o homem que quer reclamar o lugar que era de Prince como dono do funk – não o brasileiro, mas o original, o americano. Bruno Mars tenta-o através de temas como 'Finesse', que dá o mote para um concerto que em termos de alinhamento em (quase) nada destoou do espetáculo que deu na Altice Arena, em abril do ano passado. A digressão continua a ser a de “24K Magic”, o seu último álbum, e surpresa só mesmo a quantidade de fogo-de-artifício gasta esta noite pelo músico, entre cada canção.
No entanto, para que Bruno Mars possa ocupar o trono que deseja, sem medos, ainda faltará percorrer muito caminho. É certo que do público obterá sempre a aprovação costumeira; telemóveis no ar, guinchos agudos e passinhos de dança para cá e para acolá, especialmente quando o norte-americano se presta a clichés e arrisca cantar alguns versos de 'Calling All My Lovelies' em português (com sotaque do Brasil). Mas falta aqui algo. Falta raça e querer, falta algo mais que não seja a bonomia e o espetáculo pelo espetáculo, algo que o distinga de tantas outras estrelas pop. Não existindo isso, ficam só as canções: o funk borbulhante de 'Chunky', a candura 60s de 'Marry You' e os Police, chapadíssimos, em 'Locked Out of Heaven'. Pelo meio, uma homenagem ao supracitado Prince, através do riff de 'Purple Rain' e de um palco preenchido com púrpura, o inevitável confetti e um final com 'Uptown Funk', já quando uma vasta multidão abandonava o recinto, que segunda-feira é dia de trabalho.
Demi Lovato também poderia ter trabalhado um bocadinho mais. Começando com 'Confident', levou de imediato o público a captar cada segundo da sua prestação para o Instagram. Pouco depois, o telemóvel alheio tornar-se-ia ponto de luz, num daqueles momentos que tantos gostam de apreciar em concertos ao vivo. Mas a pop da norte-americana, vestida de soul e de funk, pouco mais fez que levar às lágrimas alguns dos fãs mais acérrimos, para além de ter servido de trampolim para que Lovato demonstrasse todo o timbre da sua voz. Valeu pelo momento rave com 'Neon Lights' e pelo final com 'Sober', canção editada esta semana e que foi estreada ao vivo em plena Lisboa.
Ainda a tarde aquecia a pele quando um momento de enorme alegria e efusividade toma conta das primeiras filas junto ao Palco Mundo: o foco oferecido pela câmara, olá e tchauzinho para todos os que estivessem a ver, nos ecrãs de palco e nos ecrãs lá de casa. Pouco depois, entra Agir e seus dançarinos, numa prova de que se a música portuguesa está bem e é recomendável não será certamente por culpa dele. “Ainda não acredito que estou no Palco Mundo”, disse. Tendo em conta que por ali já passaram nomes como os Arcade Fire, Rolling Stones, Metallica, Queens of the Stone Age, Paul McCartney e Bruce Springsteen, nós também não conseguimos acreditar. Para a história ficarão não as baladas xaroposas para criança ver que Agir cantou, mas sim o pedido de casamento de um Diogo à sua noiva não identificada. Que sejam muito felizes, algo que durante uma hora não conseguimos ser.
O Rock in Rio regressa já na próxima sexta-feira, para mais duas levas de concertos. Serão os James, os Xutos & Pontapés, os Chemical Brothers e os Killers a mostrar serviço. Ainda há bilhetes: 69 euros, à venda em todos os locais habituais.
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