Esta obra, que se centra “num dos capítulos mais negros da História”, o da inquisição, descreve as consequências de um fanatismo religioso que hoje está novamente mais presente, mostrando como “as conquistas são frágeis”, disse Alexandre Vidal Porto, escritor e diplomata brasileiro, em entrevista à agência Lusa.

Tecida como uma ficção, é uma história com personagens reais, que parte de um acontecimento histórico: a saga de Luiz Delgado, um violeiro português natural de Évora, que foi enviado em 1669 para a cidade de Salvador, no Brasil colonial, em penitência pela prática de sodomia – um código para homossexualidade, tida como um dos crimes mais hediondos no Portugal inquisitorial do século XVII.

Chegado à Baía, Luiz Delgado arranjou trabalho como comerciante de tabaco e, empenhado numa vida de castidade, trabalhou arduamente e casou-se com a portuguesa Florência, herdeira do negócio do tabaco, um casamento por conveniência e de amizade entre ambos.

Contudo, apesar de viver atormentado pela culpa e empenhado em redimir-se, o protagonista não conseguiu resistir à tentação quando esta se lhe atravessou no caminho e, a partir daí, acabou por entregar-se sistematicamente a prazeres e paixões com rapazes, que lhe valeram novamente a sentença de degredo, para Angola, precedida de castigos físicos e sessões de tortura no potro, que lhe inutilizaram braços e mãos.

Esta história surgiu “totalmente por acaso”, no dia 31 de dezembro de 2020, quando Alexandre Vidal Porto estava a ler sobre um caso da homossexualidade, que relatava que no início da colonização do Brasil tinha havido “um fenómeno peculiar, que era a convergência de culturas muito tolerantes da cópula anal, fosse entre pessoas do mesmo sexo, ou em pessoas de sexo diferente”, provenientes de diversas tribos, que compunham as primeiras levas de escravizados, contou.

“Isso, na época, chamou muito a atenção da inquisição religiosa. No livro, diziam que havia muitas pessoas perseguidas por conta desse tipo de pecado contra a castidade”, usando os termos da época.

Então, Alexandre Vidal Porto escreveu a um grande antropólogo brasileiro, Luiz Mott, que lhe enviou um “pequeno dicionário biográfico dos sodomitas baianos perseguidos pela Santa Inquisição no Brasil, que tinha 203 pequenas biografias”.

“Passei a noite de ano novo lendo essas pequenas biografias. E aí, tinha muito material sobre Luiz Delgado. No dia seguinte, ele [Luiz Mott] me mandou uns capítulos sobre Luiz Delgado e eu me apaixonei pela história. Foi completamente acidental”.

A partir daí começou o trabalho de pesquisa, consultando registos históricos sobre a vida deste homem, tanto em Portugal como no Brasil.

“Mas havia vários vácuos. Então, a gente sabia que ele tinha chegado, degredado pelo crime de sodomia em Salvador, no ano de 1669. Em 1675, a gente tinha um outro registo dele, já negociante de tabaco, casado com uma portuguesa branca, cristã de quatro costados, que era uma coisa rara na época, mas a gente não sabe como ele saiu dessa situação de recém-chegado, degredado, para uma situação de comerciante respeitado na praça de Salvador”, contou.

Nessas “brechas”, o autor efabulou e foi tentando a desenvolver a personagem e a história, misturando realidade e ficção, mas todas as personagens que entram no enredo são reais e existiram naquelas circunstâncias.

“Sodomita” resulta numa sátira ao preconceito, à homofobia, à perseguição, em particular da Igreja, e ao fanatismo religioso, sem deixar também incólume a escravatura e o colonialismo.

A ironia e o humor são os tons dominantes que atravessam a narrativa, por escarnecer do pensamento e dos costumes da época em relação a estes temas, mas sobretudo pelo vocabulário que o autor utiliza: um “falso português arcaico”.

“Foi uma espécie de linguagem inventada, que imitava (…) essa língua do século XVII (…). Fui fazendo uma composição com linguagem jurídica [da sua formação], a linguagem do sertão do Ceará [onde viveu muitos anos], uns galicismos, uns espanholismos, umas coisas para fingir que era uma linguagem arcaica”, explicou.

Assim, os julgamentos morais relativamente à homossexualidade de Luiz Delgado inculcados no texto pelo narrador são subvertidos em ironia por essa linguagem, quando descreve, por exemplo, que Delgado, “com seu membro viril desonesto, penetrou no vaso traseiro” de um dos amantes, fazendo “por detrás como se faz com a mulher pela frente”.

Numa das passagens do livro, é afirmado que “Delgado estava todo possuído pelas trevas daquela vontade inimiga do género humano”, e noutra descreve-se como o protagonista teve de viajar numa nau separado “para não arriscar contaminação sodomítica da tripulação nem atiçar a ira divina contra a segurança das embarcações”.

Este é um tipo de pensamento em relação ao qual “houve muito avanço”, no entanto, “acho que essas conquistas são muito frágeis, porque hoje em dia [vê-se] um avanço de radicalismo religioso já no âmbito político”, considerou o autor, afirmando que atualmente “deputados radicais religiosos no Brasil utilizam contra os direitos das minorias sexuais exatamente o mesmo discurso que se usava no século XVII”.

“É muito chocante ver que, apesar de toda a evolução que houve em termos de direitos individuais, politicamente falando, no século passado e agora, nesses últimos 20 anos deste nosso século, ainda assim há a mesma retórica dos inquisidores, ou seja, Torquemada está entre nós, esperando um momento para se materializar”.

Para Alexandre Vidal Porto, “o preço da Liberdade é a eterna vigilância”, e importa “não esquecer que há mais de 70 países no mundo em que os atos homossexuais são criminalizados, em alguns casos são sancionados com pena de morte, exatamente o mesmo tratamento jurídico que existia no século XVII”.

O último registo que existe de Luiz Delgado diz respeito ao seu desterro para Angola, na sequência de uma visita do Santo Ofício a Salvador, em que foi denunciado por 31 pessoas, e dele nunca mais se soube nada.

Então, Alexandre Vidal Porto quis dar um final feliz à história e criou um último capitulo, narrado pelo próprio Luiz Delgado, em jeito de carta ou diário, que conta como foi integrado numa dessas castas angolanas em que “ser somitigo [um dos termos usados no Brasil antes do século XIX para designar homossexual] não era desonra, mas honra”.

“Eu acho que, na verdade, mais que um final feliz, é um final feliz utópico, de uma utopia que poderia ter acontecido com ele ou poderia acontecer ainda com os homossexuais de hoje em dia, uma espécie de idílio, em que você é aceite, em que você pode expressar o seu amor sem medo, em que seu amor é reciprocado com carinho e que existe uma possibilidade de futuro e uma tranquilidade no presente. E eu coloco isso como uma utopia das minorias perseguidas”, explicou.

“Sodomita” foi escrito entre 2021 e 2022, em período de pandemia, impulsionado pelo “bolsonarismo”, um período “extremamente incómodo para os homossexuais”.

“Eu queria de alguma maneira honrar a memória de Luiz Delgado e trazê-lo para hoje, para mostrar o que aconteceu com ele e mostrar os perigos do discurso religioso contra nós, homossexuais”, afirmou.

Por isso, “resistência” é a palavra que lhe ocorre para classificar este seu livro.

Vencedor do Prémio Machado de Assis 2024 e o Prémio Mix Literário 2023 (que reconhece os melhores livros brasileiros com temática LGBTQIA+), “Sodomita” é editado em Portugal pela Tinta-da-China e será lançado hoje ao final da tarde na Livraria Travessa, em Lisboa, onde o autor estará presente.