Uma hora e oito minutos. Foi quanto bastou para que Anderson .Paak conquistasse o ceptro que já era seu quase como que por direito antes de começar o seu concerto, o ceptro de estrela maior de um dia onde se criaram novas estrelas. Sabíamo-lo depois de ouvir “Malibu”, álbum que o cimentou como uma das novas grandes vozes da música negra, em todas as suas vertentes, editado em 2016. Sabíamo-lo depois de ouvir 'Am I Wrong', maravilhoso tema a roçar o house, presente nesse mesmo álbum e onde conta com a companhia de Schoolboy Q. Sabíamo-lo porque Portugal já o tinha acolhido, para a primeira parte de Bruno Mars nesta mesma Altice Arena, no ano passado.
Foi quanto bastou? Na verdade, longe disso. Saímos do espetáculo .Paak com um amargo enorme de boca, porque o queríamos ter ouvido por mais tempo. Queríamos tê-lo sentido por mais tempo. Para um suposto cabeça de cartaz, uma hora é um espaço temporal demasiado curto para que se consiga absorver tudo aquilo que queríamos do espetáculo, para que se consiga gastar todas as energias que tínhamos ainda, enviá-las rumo ao corpo e aos pulmões do norte-americano para que este, num assomo de coragem DragonBalliana, lançasse a sua esfera universal em direção ao grande vilão que é o aborrecimento.
Apesar desse sabor amargo, “universal” é a melhor maneira de descrever aquilo que foi o concerto de Anderson .Paak no segundo dia de Super Bock Super Rock. Porque ele parece ter recolhido dicas de todos os quadrantes, da soul ao funk, do house ao R&B, do hip-hop ao rock, transformando cada uma dessas influências em algo de incrivelmente mágico e avassalador. Saudemos a sua omnipresença deífica por toda a música, e brindemos à descida do Divino sempre que ele o chamava, no yes lawd! que acabou com todos os yes lawds! que se poderiam dizer daqui para a frente. Porque não é de todo crível que a presença de .Paak em palco tenha sido algo menos que sobrehumana.
Lisboa, pareces estar melhor que no ano passado!, brincou ele a dada altura. Talvez não tanto, mas o cocktail que foi servindo ajudou e muito, bem como a alegria de viver contagiante que demonstrou ter em palco. Quanto à sua energia, só não poderemos escrever “inesgotável”, como quereríamos, porque Anderson .Paak não ficou connosco durante mais horas, mais dias, mais meses, apenas a fazer aquilo que não julgávamos ser possível: assinar um concerto tão fabuloso que não teremos outra opção que não a de falar dele para sempre.
Não só pela mistura de géneros, mas também pela mestria com que os usou, demonstrando um flow corrido e impecável (imprescindível no hip-hop), uma certa sensação de vertigem e perigo (como no rock), e uma enorme aptidão para a dança e para fazer dançar (igual à da melhor eletrónica), o que demonstrou agarrando-se, a determinada altura, a um dos seguranças posicionados junto ao palco. Alie-se a isso a sua soberba prestação na bateria, onde se sentou por diversas vezes, sem esquecer a métrica própria dos seus versos – não raras vezes distinta daquilo que tocava. De 'Heart Don't Stand a Chance', passando por 'Am I Wrong' e chegando a 'Luh You' (com uma curta incursão por 'Niggas In Paris', de Kanye West e Jay-Z, pelo meio e por parte do seu teclista), o que faltou ao norte-americano foi mesmo a possibilidade de apresentar todo o seu catálogo, sem exceção. Falta rock? Não, falta é mais .Paak. Sempre.
Se Anderson .Paak conquistou o título de maior estrela rock de um dia dedicado ao hip-hop, Travis Scott apresentou-se em palco como se já o tivesse conquistado. Entre o fumo, as labaredas e o auto-tune, o rapper fez as delícias dos muitos que se concentraram na Altice Arena especialmente para o ver, sem que tenham saído de lá desiludidos (se bem que se possa apontar, também, como falha a curta duração do seu espetáculo). Aliás, conquistou-os logo à segunda canção, despindo a t-shirt que envergava e oferecendo-a imediatamente a um fã ali presente; as canções vieram depois, rematadas por um DJ e hype man e interpretadas futuristicamente por Travis Scott. Só não foi excecional porque é impossível comparar um aspirante a um rei. Tal como não se lhe poderá comparar uma princesa, neste caso de nome Nokia, que levou alguns fãs mais atentos até ao Palco EDP, pouco antes, entrando logo a matar: ainda a publicidade se fazia ouvir no PA e já Princess Nokia estava a disparar em todas as direções. Entre o rap e o R&B de caráter mais “experimental”, a artista mostrou todos os seus dotes quando cantava a cappella, e todas as suas falhas quando se via obrigada a recorrer a uma backtrack que fizesse as vozes dos colaboradores que não estavam presentes.
Nem todos conseguem fazer de tudo. Mas há quem consiga: Olivier St. Louis, que teve honras de abertura no Palco EDP, mostrando um rock próximo dos Strokes e um funk próximo do groove sensual que exige ao funk, e que depois voltou ao palco com os Good Company, banda que acompanhou o rapper Oddisee, duas horas mais tarde. Ficará sobretudo na memória o primeiro concerto, com Olivier bastante interventivo fazendo, a dada altura, com que o público se separasse por géneros: rapazes a ladrar, mulheres a miar. Do segundo não rezará muito a história, apesar do rap de tons soul debitado por Oddisee. Ficarão na memória, isso sim, os dois momentos em que ProfJam mandou o som de palco abaixo – sendo obrigado a retirar-se, e levando muitos a pensar se estariam na presença de um novo momento Korn-no-Rock-In-Rio. Não aconteceu; tudo estabilizou e o rapper português conseguiu dar um bom espetáculo à vasta legião de fãs que ocupou quase toda aquela zona junto ao Pavilhão de Portugal. E foi dele a melhor tirada do dia: “uma vez estávamos com uma grande pedra... tipo Flintstones”. Hilário.
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