Quando o episódio de estreia de “Princípio, Meio e Fim” foi para o ar, temi que o novo programa de Bruno Nogueira não se distinguisse, de alguma maneira, do "Como é Que o Bicho Mexe", os diretos do ator e comediante que, ao longo do último ano, fizeram companhia a milhares de pessoas nas noites de confinamento.
Afinal, entravam em cena alguns daqueles que foram os protagonistas dos lives de Instagram da conta do @corpodormente. Estava lá o Albano, a Jéssica, o Markl, o Pipão, o Salvador, nomes que foram perdendo os apelidos para ganhar forma de amigos que, à hora do costume, apareciam para beber um copo de vinho e meter a conversa em dia, como se fosse uma qualquer ida rotineira ao café, depois de jantar, naquele mundo muito 2019 em que tudo isso era possível.
É inegável a ligação do corpo e do conteúdo ao segmento das redes sociais, mas “Princípio, Meio e Fim” vai além do Bicho, mostrando que se tudo o que aconteceu neste último ano, que levou o país a celebrar um Natal em maio, se não tivesse acontecido, podia ter sido inventado.
Numa versão muito resumida, o programa é um jantar.
Na verdadeira essência, é um processo que vai da escrita de um guião, em apenas duas horas, por Bruno Nogueira, Nuno Markl, Salvador Martinha e Filipe Melo, à produção e encenação desse tal jantar, onde cinco personagens interpretam o texto acabado de escrever.
A primeira parte do programa, o “princípio”, é condensado em 10/15 minutos, com vários ‘takes’ da troca de ideias entre os guionistas e a escrita do guião propriamente dita, com tudo o que pode acontecer com a pressão de o fazer em apenas duas horas, com ideias que nem sempre encaixam, até aos erros de ortografia. Isto é depois entregue a Sandra Faria (produção) e Cristiana Miranda (realização), que até então estão às cegas sobre o guião que terão de dar vida. É aqui, juntamente com a entrega do texto ao grupo de atores, Albano Jerónimo (Paulo), Nuno Lopes (Stone), Rita Cabaço (Maria João), Jessica Athayde (Francisca) e Bruno Nogueira (Luís Henriques), que faz aqui um papel de agente duplo, de guionista e ator, que acontece o “meio”. O “fim” é a encenação do guião, com a produção possível, perante o imaginário e coerência entregue pelos guionistas, sem tirar nem pôr. Erros incluídos. Ações sem sentido, idem.
Pode-se dizer que “Princípio, Meio e Fim” é, em parte, um Bicho encenado. Se a primeira parte parece ser quase uma homenagem aos diretos de Instagram, com quatros imaginários a colidirem e a criar, a segunda é essa mesma troca de ideias a tornar-se definitiva e a ganhar vida em cinco personagens que são figuras de ficção.
Aquele que foi o primeiro de seis jantares, por exemplo, levou à descoberta da origem de um portal orgásmico de Paulo, de onde saíram mulheres, dois robalos, rolos de papel higiénico e João Manzarra, e onde se perdeu Luís Henrique. Até aqui chegarmos houve requeijão por toda a cara de Stone e um momento de peixinho dourado de Francisca, em que nenhuma fala saiu da sua boca.
Estar a fazer uma previsão com base no descrito acima, sobre o que poderá ser o resto da primeira temporada de “Princípio, Meio e Fim” é, portanto, uma missão complicada.
O que posso tentar fazer é olhar para o programa e esmiuçá-lo, com o meu tímido currículo de quem acompanha as várias criações do humor nacional. Assim, posso dizer que vemos ali traços de alguns dos melhores trabalhos de Bruno Nogueira, como "Odisseia" e "Sara", o humor de situação de Salvador Martinha, a forma como as ideias aparentemente estapafúrdias de Nuno Markl se transformam em fio condutor ou o transtorno obsessivo compulsivo de Filipe Melo na construção do guião.
Mas fazer esta análise é redundante porque, se continuasse, iria acabar no Bicho, depois de uma breve paragem em "Uma Nêspera no Cu". Porque tudo aquilo que disse, já o vimos, de alguma maneira, no Instagram, naquele fenómeno que nos fez passar a ver televisão no telemóvel (ou nos obrigou a descobrir como replicar o ecrã do smartphone na televisão). O Bicho mostrou-nos que não estamos nisto sozinhos e que é possível tirar algum riso disto tudo (ou chorar em conjunto).
E ainda bem, porque se não fosse isso, e tendo em conta o formato arrojado, temia que o programa que estreou este domingo na SIC pudesse passar por um grupo de amigos, por acaso talentosos, a quem foi dado um cheque e 40 minutos para brincar em televisão. Uma coisa quase egoísta, como se o espectador fosse secundário. Uma coisa um bocadinho na ótica do “se gosta, boa, se não gosta, azar”. Eles próprios assumem que fazem este programa "porque queremos" e "porque podemos". E até podia ser tudo isto que acabei de escrever, não tivesse sido o exercício em comunidade que foi acontecendo ao longo do último ano que nos fez espectadores próximos daquele grupo de amigos, de algumas das histórias que partilham, boas e más, e dos temas aos quais se atiram. Não há na cumplicidade daquele grupo, naquele humor aparentemente randoom, nada que exclua o telespectador. Nós participámos nisso, não só no humor e nos diálogos, como somos o trampolim para (mais um) salto de fé que Bruno Nogueira dá para este formato que só é possível depois do que aconteceu no "Como é Que o Bicho Mexe".
Mais, “Princípio, Meio e Fim” honra verdadeiramente o processo de criação, não só porque mostra a troca de ideias que depois vemos reproduzida no jantar, mas porque torna esse brainstorm numa fase marcante do episódio e não em algo que sentimos que podemos saltar. Quando terminou o primeiro episódio, não nos lembrámos só da cabeçada de Luís Henrique na porta de vidro ou da fala "o principio da frase pode esrae escreiro mas io dinakl so os draioes sageraão". Também recordaremos, por exemplo, Salvador Martinha a escrever o guião de olhos fechados.
O trabalho não só honra o processo criativo, o erro e, por vezes, a incoerência de ideias, o imaginário cru de uma história, portanto, como nos dá um visual de como este surge. De como as ideias batem umas com as outras para chegar ali.
Chegar aqui é, essencialmente, um exercício de liberdade. Depois de se revelar numa companhia contra a prisão que foi o confinamento, o Bicho dá origem a um programa inovador no panorama do humor e da televisão portuguesa, contrastando com as adaptações de formatos estrangeiros que o antecedem, na SIC, RTP e TVI, e mostra quanto o absurdo pode fazer sentido quando a matéria é o riso. O que faz dele também um risco.
Não tenho como antecipar o que vem aí. Tudo o que sabemos, através do canal de televisão onde o programa é transmitido, é que “as duas primeiras páginas do que eles dizem no jantar são sempre as mesmas, em cada episódio. A partir daí, está tudo em aberto”. Portanto, teremos processo criativo, discussão com a produção e um jantar. A trama, essa, é tão previsível como era um direto do Bicho em que de repente tínhamos um Vhils a esculpir um Zeca Afonso na sala ou João Manzarra a apresentar um burro como o seu novo animal de estimação.
Acho, por isso, que toda a possível crítica a este regresso de Bruno Nogueira, ou melhor, de um programa pensado por Bruno Nogueira, é que o primeiro episódio, de certeza, não se deixou influenciar por Mercúrio retrógado.
*artigo corrigido às 12h11 com a correção do nome do guionista que escreve parte do guião de olhos tapados.
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