Se as músicas de Margarida Falcão fossem um quadro seriam “Starry Night” [“A Noite Estrelada”], de Van Gogh: “Cheio de cor e movimento, parece que falam”, diz. E é assim que gosta de pensar que é a sua música. Há outros quadros do artista que admira, mas este viu ao vivo no MoMa, o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, de onde regressou há pouco. Agora, é ela que vai estar ao vivo, já amanhã, no NOS Alive, no passeio de Algés.
Margarida cresceu entre as guitarras do pai e as pinturas da mãe. "Sempre vivi numa casa muito musical. Eu e as minhas irmãs andámos num coro e tocávamos piano - não muito bem, ri-se - e guitarra. E lembro-me que harmonizávamos, fazíamos call response nas viagens de carro, em particular com “When The Saints Go Marching In”, conta.
O primeiro instrumento que recebeu foi uma bateria de criança, que queria muito. “Fiz duas bandas: da primeira, com uma amiga, já nem me lembro do nome. A segunda, com outras duas colegas da mesma idade, chamava-se “Dirty Band”, e as músicas que fazíamos eram propositadamente horríveis. Eu nem tocava, batia só na bateria”. Tinha então oito anos.
Hoje, Margarida Falcão, tem 22 nos e continua a ter duas bandas. Outras bandas: Vaarwell e Golden Slumbers, dois projetos musicais bem distintos, um nascido de um trabalho de final de curso, o outro de uma empatia natural criada com a irmã mais velha, Catarina. A ambos dedica todo o seu tempo profissional, que tem sido intenso. Todo, todo, não é bem assim. Pelo caminho ainda consegue responder a pedidos como o de Rodrigo Leão, com quem, volta e meia, meia volta, atua.
A vida de artista não é fácil. Há uns meses, os Vaarwell chegaram de Nova Iorque, onde estiveram em passeio, mas também em reuniões de trabalho, graças aos contactos feitos no South by Southwest (SXSW), em Austin, no Texas, um festival internacional de música, cinema e tecnologia que é a montra do que melhor se faz no mundo e onde durante duas semanas bandas de todos os estilos tentam provar o seu valor. É lá que os promotores vão comprar concertos e que olheiros habituados procuram e descobrem jovens promessas. Como Margarida Falcão.
Acontece que este convite de sonho esteve à beira de se transformar em pesadelo devido a uma sucessão de azares. Já lá vamos.
Companhia aérea perde material da banda
Os Vaarwell chegaram ao SXSW um dia antes do início do festival, para preparar tudo com calma. Problema: “A nossa mala nunca chegou”. A mala, explica Margarida Falcão, não era uma mala qualquer. “Tinha material, tinha remédios, tinha maquiagem, tinha roupa. Tudo aquilo de que eu precisava para estar no South by Southwest, faltava”.
Inicialmente, Margarida acreditou que tudo se compusesse rapidamente e que as coisas chegassem no dia seguinte. Só que não. “Afinal, esta companhia horrível em que viajei, a Norwegian Airlines, é uma das companhias de aviação europeias que mais queixas tem, vim a descobrir mais tarde. Não sabiam da mala e não foram nada simpáticos, nada cooperantes”. Mais mais tarde, era tarde de mais.
“Ficámos em grande stress e, basicamente, segunda e terça-feira foram para ir atrás de todo o material que faltava, comprar maquiagem nova”, conta. “Os primeiros dois dias foram mesmo terríveis. Para mim estava a ser muito difícil, mas depois diverti-me imenso”.
Mas, afinal, de que material estamos a falar? “Os instrumentos, graças a Deus, vieram com outro membro da banda, que viajou numa companhia aérea diferente, por isso estavam seguros. Faltava a placa de som, que é essencial para tocar, cabos, transformadores, alimentadores e adaptadores. Além da maquiagem, que parece uma coisa fútil, mas que para um espetáculo é muito importante”.
Até a falta dos medicamentos, também extraviados pela companhia aérea, deu origem a uma sequela. "Por sorte", estava lá Marta Pereira da Costa, a única guitarrista profissional de fado a nível mundial. "Ela tem um tio que é médico e ajudou-me a arranjar um dos remédios que eu tinha de tomar, e até com alguma urgência, e que precisa mesmo de receita médica. Foi uma ajuda enorme".
De resto, Margarida e os restantes membros dos Vaarwell não tiveram outro remédio senão comprar, alugar e pagar todo o material de substituição. “Pagámos, mas a Norwegian Airlines vai receber as faturas”, garante.
Quando chegou o dia do concerto, a banda teve problemas com a placa de som, ou seja, com o material alugado, “e eu tive de tocar em acústico, mas lá funcionou”. Nos dias a seguir tudo correu bastante melhor. A prova de que o público reagiu bem aos Vaarwell, no meio de tantos concertos e tantas bandas emergentes, foi os contactos que ficaram. E a eleição do grupo como uma das 11 bandas mais promissoras do mundo lideradas por vozes femininas, por um blogue da especialidade.
Margarida desvaloriza o facto, diz que nem sabe como souberam da sua existência, calcula que tenha sido através das playlists elaboradas pelo próprio South by Southwest, que fez um destaque muito positivo dos Vaarwell. “Uma vez por semana destacam um artista de quem gostam e, dessa vez, destacaram-nos a nós. Foi muito simpático e, se calhar, foi assim que esse blogue nos descobriu”, acredita.
Como tudo começou
Quando era pequenina Margarida já queria ser cantora. Mas também queria ser jardineira ou caixa de supermercado, “porque achava que se ganhava todo o dinheiro que entrava dentro da caixa registadora”. Foi por volta dos 11/12 anos, quando já tinha uma noção mais real do que é um emprego e discernimento para perceber que o dinheiro em caixa não é o salário do dia, que percebeu que queria mesmo, mesmo ser cantora.
"Aos dez anos, eu e a minha irmã Catarina, com 12 anos, compusemos uma música para a igreja. Depois, quando eu tinha 12 e ela 14, compusemos outra que era brincar sobre o facto de sermos preguiçosas". Foram apenas os primeiros passos de Margarida.
Lá pelos 15 anos, à entrada do secundário, quando foi preciso escolher uma área, optou pelo curso profissional de Produção Musical, na EPI - Escola Profissional de Imagem. Nessa altura já compunha a sério. "As duas começámos a ouvir o mesmo tipo de música: muito folk, muito Laura Marling, Fleet Foxes, Bon Iver — que atua nesta edição do NOS Alive. A Catarina tinha mais dois anos do que eu e era mais alternativa. Eu ouvia pop, mas fui-me deixando influenciar por ela, como é natural".
Margarida lembra-se bem de ter recebido um MacBook, um computador profissional que tem um programa, o Garagem Band, que dá para compor e gravar. “Comecei a gravar umas coisas, primeiro versões de diversas músicas, depois originais que ia já começado a compor”.
Foi num concerto do Bon Iver, no Campo Pequeno, que Margarida teve a certeza absoluta de que era aquilo que queria fazer e, mais do que isso, que queria fazê-lo com Catarina. A abertura do espectáculo ficou a cargo das The Staves, "uma banda incrível composta por três irmãs. Todas harmonizam e fazem músicas incríveis, e identifiquei-me com elas. Nesse momento, disse: "Vamos fazer uma banda". E foi assim que nasceram as Golden Slumbers".
Passado um ano, uma com 16, outra com 18, já gravavam a sério. "Como eu estava numa escola profissional e tinha lá o estúdio, decidimos gravar um EP. Não tínhamos uma ideia muito exata do que estávamos a fazer, as coisas nasceram de uma forma bastante inocente. Tínhamos as canções, escolhemos cinco, tínhamos um amigo, o Luís Monteiro, que agora faz parte da minha outra banda, os Vaarwell. Eu estava no curso de produção, também sabia mexer naquilo, mas ele era melhor do que eu ofereceu-se. Passámos o final de 2013 a gravar, e foi então que percebi que havia um mundo da música em Portugal que eu desconhecia".
Margarida Falcão confessa hoje que o seu percurso não é exemplo. "Eu e a Catarina fizemos tudo ao contrário: normalmente, ninguém lança acústicos sem músicas feitas, mas nós fomos logo cantar para o Facebook - que atualmente tem cada vez menos utilizadores, mas na altura as pessoas faziam muitas partilhas, deixavam comentários e likes". A receita fez sucesso e foi assim que as manas foram descobertas pelo seu agente, Pedro Valente, da Azáfama. Quando lançaram o primeiro álbum, "The New Messiah", as coisas dificilmente poderiam ter corrido melhor.
Sonho: fazer a banda sonora de um série
Margarida Falcão não é apenas metade Golden Slumbers e metade Vaarwell. O seu nome tornou-se talvez mais conhecido depois da participação no Festival da Canção, há dois anos, a edição em que Salvador Sobral arrebatou tudo. As manas foram até à semifinal, com uma canção composta de propósito por Samuel Úria. "Acho que ficámos em quinto lugar, já não me lembro. Não passámos à gala final, mas não teve problema nenhum", recorda.
"Penso que há [no festival] canções boas, mas no final do dia não deixa de ser um concurso de televisão, e as pessoas que veem aquilo não são as que me interessam como público", afirma. Não é desprezo nem pretensiosismo, é a opinião de alguém que não tem medo das palavras. "É um público que vai muito com as marés. Adorei a música de Salvador Sobral, é linda, mas imensa gente dizia que devia ter ganho outro, não interessa quem, com uma música mesmo foleira. É um público com opiniões muito fortes, mas pouco fundamentadas", justifica.
E vai mais longe: "Este ano até gostei da música de Conan Osiris, 'Telemóveis'. Penso que faltam excêntricos em Portugal. Tivemos o António Variações, mas não temos um David Bowie - claro David Bowie não tem comparação, mas estou a falar da figura, não da música", diz.
A agenda da Margarida Falcão é carregada. Amanhã atua ao vivo no NOS Alive, no passeio marítimo de Algés, na semana passada esteve com Rodrigo Leão e na última sexta-feira lançou o seu mais recente single: "False Promises".
Quanto ao futuro, "nos próximos cinco anos gostava de aumentar exponencialmente os nossos ouvintes, tanto no Sportify como no Youtube, gostava de tocar mais lá fora, fazer digressões, gostava de encher palcos em Portugal e de fazer mais festivais". Pouca coisa.
O sonho, mesmo, esse era ter uma música composta por si numa grande série da Netflix. "Vejo muito Netflix, e quando gosto de uma soundtrack vou logo ouvir. Gostava de compor e produzir uma banda sonora", confessa. E lembra-se de "Maniac", com Emma Stone e o Jonah Hill, ou de "Sex Education". "Há séries incríveis. Agora tenho visto "The Office", não pela soundtrack, mas porque é hilariante".
Quando fala em Spotify e YouTube, pergunto se a pressão dos números, saber a todo o momento quantas pessoas estão a seguir ou a ouvir o seu trabalho, não é demasiada e um factor de ansiedade, mais do que de criatividade. Responde que não. "Para mim é motivador". E dá um exemplo: "Lancei há tempos uma música que chegou aos 100 mil plays no Spotify, o que não é muito. Para ser relevante no Spotify, uma música tem de ter um milhão de plays. Nunca chegámos lá perto".
Nunca, não é bem assim. Uma das colaborações que fez, com Xinobi, um músico e produtor português, chegou aos 4 milhões. "O facto de saber que isso é possível e que traz coisas boas, porque traz, mais ouvintes, mais pessoas interessadas no nosso projeto, motiva-me a fazer música não pelos números, mas para que as pessoas queiram ouvir uma música quatro milhões de vezes".
Margarida é uma rapariga peculiar. Por exemplo, não canta em português. Porquê? "Porque não quero". Simples. "É quase como perguntar a um humorista se há limites no humor. Para mim, esta foi só uma escolha natural. Andei numa escola inglesa dos cinco aos dez anos, o St. Julians, e sei que muitas vezes me consideram "obnoxious" [irritante], talvez seja a palavra certa. Mas não pensei se ia cantar em inglês o português por ter mais ou menos mercado, foi porque sempre ouvi cantar em inglês e as músicas que me influenciaram e que me influenciam são cantadas nessa língua. Não foi pensado. Foi, como disse, uma escolha natural", explica.
O processo criativo de Margarida é semelhante a tantos: "Há duas opções: ou me acontece alguma coisa especial e apetece-me compor sobre isso - se for muito pessoal tento ser o mais abstrata possível - ou o Ricardo, que faz parte dos Vaarwell e é produtor, manda-me o instrumental e eu componho a melodia e a letra por cima. Mas o meu processo criativo varia imenso, também invento muito. Se estiver muito zangada, por exemplo, não consigo compor".
Quanto às letras, depende. "Já fiz música de intervenção ou crítica, por exemplo, na altura da eleições primárias americanas, em que torcia por Bernie [Sanders]. Fiz uma música, "American Dream", com os Vaarwell, que começou por ser sobre os democratas, mas que era uma crítica à vigilância de massas que nos EUA".
Pois, esta é outra particularidade. Margarida não faz parte dos mais de 80% de jovens portugueses que não se interessam pela política, muito pelo contrário. Vota? "Claro! A abstenção, para mim, é impensável. Mesmo que não saiba em quem votar, mesmo que não me sinta representada, voto em branco, mas não deixo de votar".
E conta que é um pouco "bisbilhoteira". Talvez por isso, gosta "de relações internacionais, que podem ser muito engraçadas e, às vezes, um pouco deprimentes. Lembro-me de ser pequena e de me interessar por Benazir Bhutto", a ex-primeira-ministra paquistanesa e líder da oposição que acabou assassinada. "Talvez por ela ser mulher, aquilo interessou-me em e revoltou-me. Fiquei mesmo muito afetada pela sua morte".
Com mais ou menos música de intervenção, mas sempre empenhada, uma parte o sonho de Margarida Falcão e dos Vaarwell cumpre-se já amanhã, às 22h50, no Palco Coreto by Arruada, primeiro dia do NOS Alive, que no ano passado recebeu 165 mil pessoas em três dias.
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