Foi na última canção que o silêncio, o sempre necessário silêncio, assentou entre os milhares de fãs que encheram o recinto do Vodafone Paredes de Coura. Melhor dizendo: não foi tanto o silêncio, mas sim o respeito. O momento era solene. Matt Berninger vira o microfone para o público, uma guitarra acústica pousa suavemente no ar. Canta-se 'Vanderlyle Crybaby Geeks', o tema com que os National têm encerrado os seus espetáculos, de lágrimas nos olhos e mão no peito. É um hino, assim como 'Mr. November' o foi por largos anos (e, para muitos, ainda continua a sê-lo). Merece de quem o escuta a capacidade de se recolher nos seus pensamentos, evitar ao máximo estragar, desrespeitar, com falas ou risos ou invetivas outras, a pungência do acontecimento. Assim foi; a receção dos presentes, que se limitaram a acompanhar em coro, chegou a impressionar.
Claro que impressiona, muito mais, a forma como os National são sempre recebidos a cada passagem por Portugal. Não estamos a falar de uma banda com uma imensa legião de seguidores ou com milhões de discos vendidos. E não é como se o quinteto raramente pusesse os pés no nosso país: a contar com este mesmo concerto, os National somam já 16 (!) em território nacional, com um 17º a caminho, no Campo Pequeno, em dezembro próximo. E tudo começou aqui mesmo, no ido ano de 2005, o mesmo ano em que uns tais Arcade Fire impressionaram para sempre um restrito número de melómanos mais dados ao lado indie do rock.
Muito mudou desde então. Os National cresceram, assentaram, constituíram família. Os últimos discos, sobretudo “I Am Easy To Find”, editado este ano, têm feito torcer alguns narizes. Mas basta vê-los em palco para que todas e quaisquer dúvidas se dissipem. A banda é coesa – apesar de um ou outro momento mais trôpego –, as canções donas do melodrama necessário, a novidade da voz feminina que trazem para o palco ajuda à emoção. E há uma espécie de contradição, ou de reescrever do ditado: os norte-americanos, e o público que lhe é fiel, preferem sobretudo regressar aos lugares onde já foram infelizes.
Pelos ecrãs laterais iam surgindo rostos vários, todos eles com algo em comum: gotas escorrendo pelo rosto, boca acompanhando como podia a emoção das letras, sorrisos amargos orgulhosamente estampados. Uma canção – que não deles – dá o mote: esta é uma noite para corações despedaçados. Os mesmos que arrebitam aos primeiros acordes de 'I Need My Girl', um dos seus temas mais acarinhados, e que foi recebido com o mínimo de frenesi.
Mesmo que o som não tenha estado nas melhores condições, o que acabou por ser prejudicial para quem se encontrava mais atrás, não há como negar que os National continuam uma máquina bem oleada e que, com o alinhamento certo (ao contrário do que sucedeu no NOS Alive, há dois anos), não deixam indiferentes os que os escutam. A isso atestam temas como 'Don't Swallow the Cap', ' Guilty Party' (dedicada à Lua, e a todas as superstições daí advindas), 'Sea of Love' (uma surpresa, já que não havia sido interpretada nos últimos concertos), 'Day I Die' ou 'Graceless', já com Matt Berninger no meio do público, saudável imagem de marca. 'Fake Empire' e 'Mr. November', antes do final com o supracitado hino, fizeram disparar vozes e corações. Venham as vezes que vierem, irão conseguir com que nos sintamos apaixonados sempre.
Neste que foi o primeiro dia do Vodafone Paredes de Coura, uma outra voz nos fez apaixonar: a de Julia Jacklin, naquela que foi a sua estreia em Portugal (sem se permitir fotografar), e que trouxe consigo as canções de “Crushing”, o seu muito elogiado segundo álbum. A palavra-chave é “corpo”: a australiana menciona-a por diversas vezes nas suas canções, quer se refira ao físico, quer ao mental ou espiritual, deambulando por entre folk elétrica ou temas de um blues mais arrojado. Ainda era cedo e não eram muitos os que a viram no palco principal, mas já havia quem a acompanhasse nas letras, sobre relações findas e agruras tantas. «Vocês são muito simpáticos», diz a dada altura, antes de prometer que o concerto ficaria «ainda mais triste». 'Comfort', com Jacklin sozinha em palco, foi um dos momentos altos, mas o maior de todos estava reservado para perto do final com 'Head Alone', espécie de êxito e/ou canção de protesto feminista (eduquei o meu corpo a ser meu, canta ela). Nova promessa quererão os que a viram: a de que volte rápido.
Vindos do Brasil irmão, os Boogarins – que haviam atuado, à tarde, numa das “sessões secretas” do festival – trouxeram consigo o rock psicadélico e bastante endividado para com os Tame Impala que os tornou num caso sério de popularidade, ao longo dos últimos anos. O mote era a apresentação de “Sombrou Dúvida”, álbum editado este ano, mas ainda foi possível escutar alguns temas de discos como “As Plantas Que Curam” (2013) ou “Lá Vem a Morte” (2017). Tal como os National, puxaram pela memória e relembraram o seu primeiro concerto em Portugal, em 2014, no festival Milhões de Festa. De um concerto morno retira-se um momento mais próximo do free jazz – pela pujança da bateria – e alguns riffs de maior vertigem, especialmente se acompanhados por feedback.
Uma das grandes vitórias da noite parece ter sido a dos Parcels, que destoaram dos demais: se os National, Julia Jacklin e os Boogarins fizeram o público meditar, cada qual à sua maneira, o grupo australiano fez sobretudo dançar, apoiado numa sonoridade disco-funk que bebia desavergonhadamente dos anos 70 (só faltou mesmo a bola de espelhos). Nem as harmonias vocais, a fazer lembrar os Bee Gees, escaparam; mas o que se retira sobretudo da atuação dos Parcels é a felicidade visível que tinham nos seus rostos, devido ao mar de gente que os recebeu em nova atuação por cá (é certo que a maioria só lá estava pelos National, mas...). «Isto é perfeito, obrigado por estarem aqui», mencionam a dada altura, já depois de uma curta brincadeira com um rádio presente em palco, onde sintonizaram de tudo ou quase (e arrancando algumas gargalhadas quando este pára em 'Encosta-te a Mim', de Jorge Palma. «Foi a experiência mais incrível que já tivemos», garantiram. Certamente terão saído daqui com mais alguns fãs no saco.
Para finalizar a noite, quando muitos já tinham abandonado o recinto após o concerto dos National, coube aos congoleses Kokoko trazer aquele género de sons que sabem sempre melhor quando a madrugada já espreita e a taxa de álcool no sangue começa a elevar-se: ritmos africanos, frenéticos, sem grandes melodias a acompanhá-los – e percebe-se onde foram os Buraka Som Sistema buscar inspiração – e com um objetivo apenas, o de fazer dançar e suar. Objetivo que foi cumprido por quem por ali permaneceu.
O Vodafone Paredes de Coura continua esta quinta-feira, com concertos de Khruangbin, Stella Donnelly, Car Seat Headrest e New Order, entre outros. Os bilhetes para este dia, bem como os passes gerais, já se encontram esgotados.
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