Quem gosta de música latina? Nós gostamos de música latina. O mundo inteiro gosta de música latina. Assim tem sido desde sempre, e não apenas a partir do momento em que 'Despacito' se tornou no hino daquele verão de 2017. Tendemos a esquecer-nos disto: aqueles ritmos e aqueles fraseados já estão connosco há décadas, e sempre foram populares, de 'La Bamba' aos Gipsy Kings. A dada altura durante a atuação de C. Tangana, ouvimos estas palavras, em castelhano: os ingleses nunca conseguiriam cantar flamenco. Para tal, é preciso qualquer coisa que viva no sangue, é preciso viver da mesma forma que nuestros hermanos, ter as mesmas filosofias. Só assim se explica que C. Tangana se consiga dar tão bem a interpretar uma mélange musical, caldeirão tão poderoso quanto o de Obélix, onde cabe o rap, o trap, o flamenco, a música cigana, até – vejam bem! – os New Order, com um trecho de 'Bizarre Love Triangle' a conferir a 'Los Tontos' uma notável aura indie.
Será certo dizer que ninguém estava muito bem preparado para o que aconteceu esta noite na Altice Arena, nem mesmo os maiores fãs de C. Tangana (e eram imensos), quiçá nem o próprio músico. Torna-se, igualmente, difícil explicá-lo por palavras, sob pena de incorrer em spoilers. O que o espanhol aqui apresentou foi, mais que música, uma novela sempre pop, com os atores anunciados nos ecrãs laterais e de fundo, nome a amarelo e sem versão brasileira de Herbert Richers. O rufar inicial dos tambores e dos sopros como créditos. O pano que cai, repentinamente, mostrando o cenário. O de um bar, com dezenas de atores: atores de cordas, atores de sopros, atores de coro, atores de percussão, um garçom e a estrela maior, blazer azul e óculos escuros.
Ora de pé, ora sentado. C. Tangana foi desfilando os temas que compõem os seus dois álbuns, com destaque para “El Madrileño”, disco de 2021 que o colocou nos radares de muito boa gente que de outro modo mal ligaria à música vinda de Espanha (ainda que pese, na sua popularidade conquistada, o facto de ter namorado e trabalhado com a catalã Rosalía). Um deles foi 'Comerte Entera', que aqui não teve Toquinho mas contou à mesma com um violão e a explosão no refrão. A Arena, não esgotada mas bastante preenchida, reagiu efusivamente a cada acorde, a cada passo, a cada momento de realismo mágico que C. Tangana ia criando em palco. A esmagadora maioria cantou, metade dessa maioria dançou, um terço colocou-se às cavalitas dos cônjuges. 'Demasiadas Mujeres', tema falso na sua génese – não existe tal coisa como demasiadas mulheres – aqueceu ainda mais o clima que ali se vivia.
Através da sua fusão entre o moderno e o tradicional, as novas tecnologias (autotune, batida eletrónica) aliadas às guitarras do flamenco, C. Tangana e sua trupe conquistaram todos quantos tiveram o prazer de testemunhar um daqueles raros espetáculos na verdadeira acepção da palavra – designando algo espetacular e inimitável, por mais que se tente. Melhor, só a forma como foi navegando sem parar por entre canções, do trap de 'Tranquilisimo' para a fantasia cigana (com um dos guitarristas a envergar a bandeira do povo Romani durante boa parte da hora em que esteve em palco) de 'Tú Me Dejaste De Querer'. 'Antes De Morirme', com laivos James Blake, e 'Un Veneno' deram ainda mais cor à vitória total do músico, que terminou abrindo uma garrafa de champanhe em jeito de celebração (até do seu próprio aniversário, 16 de julho). Há que dizê-lo: no Meco não teria tido, provavelmente, o mesmo impacto. Em sala fechada foi daquelas coisas para guardar para sempre. ¡Olé!
Também em castelhano, Nathy Peluso surgiu atrás de uma cortina, na escuridão, antes de começar a mostrar as canções que compõem “Calambre”, álbum que editou em 2020. Porém, foi o seu fenomenal jogo de pernas que começou por nos impressionar; não é possível fazer aquilo que ela fez sem recurso a um regime intenso de exercício físico. Sofreu com alguns problemas de som, ao início (o seu microfone não parecia estar a funcionar a 100%), mas estes foram depressa sanados, deixando que a sua voz ecoasse pela Altice Arena, sobretudo em temas como 'Ateo', no qual colabora com C. Tangana.
As poses em palco e a forma como controlava a multidão, a fazer lembrar Freddie Mercury, deram um outro sabor a uma música que muito bebe da salsa, entre a tradição e a modernidade, tal como com o músico espanhol. «Em Portugal as pessoas sabem o que é a festa!», atirou a dada altura, aparecendo depois com uma câmara embutida no microfone, com a qual se ia filmando e cantando ao mesmo tempo. Portugal sabe, e Nathy Peluso também.
DaBaby é, muito provavelmente e a seguir a Kanye West, o rapper mais controverso da última década. Em 2018, matou um homem a tiro, tendo-se justificado com o facto de ter sido em autodefesa (o que acabou por ser provado em tribunal). Em 2020, foi acusado de roubo e agressão a um promotor, o qual acusou de não lhe ter pago por um espetáculo. Em 2021, o concerto que deu no Rolling Loud Miami ficou marcado por várias tiradas homofóbicas, que lhe valeram uma chuva de críticas e o cancelamento de outros concertos, como o do Lollapalooza desse ano. Já este ano, agrediu outro homem num salão de bowling...
As polémicas são tantas, que foi criada uma conta humorística no Twitter onde, a cada dia, as ações e palavras de DaBaby são esmifradas de forma a determinar se ele tem sido um bom menino – o recorde, até à data de hoje, é de 62 dias sem se meter em confusões. Caso essa mesma conta se encarregasse apenas da parte musical, teria esta noite muito a dizer. Foi preciso esperar 45 minutos para o ver subir ao palco da Altice Arena, durante os quais os sobreviventes a C. Tangana tiveram que aguentar um DJ set de trap (entre êxitos de Lil Uzi Vert e Juice WRLD) e os gritos costumeiros de «façam barulho!», até que o rapper se dignasse a dar um ar de sua graça. Pior para a imprensa, já que os fotógrafos foram expulsos do fosso minutos antes de DaBaby se fazer ouvir. Pior para quem ficou com os ouvidos a sangrar pela força do elevado volume do instrumental (que contrastava com o baixo volume do calão do rapper). Melhor para os fãs, melhor para quem, como um esquimó, inventou 50 novas palavras não para “neve” mas para “execrável”, e melhor para quem viu aqui uma certa atitude punk. Em 1985, os Jesus & Mary Chain davam concertos de 15 minutos de feedback com as costas voltadas para a audiência. DaBaby, pelo menos, foi lá abraçá-la.
Tinham a tarefa ingrata de suceder aos dois principais nomes do cartaz de hoje, C. Tangana e DaBaby. Tiveram a tarefa inglória de tocar já para lá da hora marcada, por culpa desse e de outro rapper, Goldlink, que à mesma hora levou uma enchente ao Palco EDP. E tiveram umas poucas centenas de pessoas à sua frente, muitas delas já num estado de espírito superior potenciado por outro tipo de espíritos (ou seja, gente que paparia qualquer coisa que aparecesse à sua frente e que não estava para se chatear e sair do recinto). Os Hot Chip deram, ainda assim, um concerto agradável, onde houve espaço para coreografias improvisadas, na plateia, e para malhas gigantescas como 'Over And Over', em palco. 'Freakout/Release', tema que dá o título ao seu próximo álbum de estúdio, a sair em agosto, também se fez ouvir em todo o seu vocoder – sendo que o vocoder era, nos anos 80, o que o autotune é hoje. Os britânicos foram queimar os últimos cartuchos da dança, e cumpriram.
O Super Bock Super Rock termina este sábado, com concertos de Local Natives, Mayra Andrade, Son Lux, Foals e Woodkid, entre outros.
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