A conversa com Teresa Tavares na íntegra:
Portugal, 1981. A história e as motivações de uma quadrilha de assaltantes num país dominado por uma recessão.
Esta é a sinopse de "Cavalos de Corrida", série de assaltos à portuguesa (com um genérico incrível, apesar de não ter a música dos UHF), de oito episódios, dos quais cinco já foram exibidos no canal da estação pública e estão disponíveis na RTP Play. Escrita e realizada pela dupla André Santos e Marco Leão, conta no elenco com nomes bem conhecidos dos portugueses, como são os casos de Miguel Guilherme, Soraia Chaves, Maria João Pinho, João Vicente, Filipa Areosa, Tomás Alves (o Salgueira Maia do 25 de Abril, que já passou pelo nosso podcast) e, claro, Teresa Tavares, convidada do podcast Acho Que Vais Gostar Disto.
E logo nos primeiros minutos percebemos que as mulheres da série não se comportam como seria de esperar que uma mulher daquele tempo, um Portugal pós-25 de Abril mas pré-União Europeia (ou CEE, a Comunidade Económica Europeia, como era chamada na altura), se comportasse. Especialmente a Olinda (Teresa Tavares), companheira de Domingos (Tomás Alves).
"A Olinda, para aquele tempo, é uma mulher muito ousada. Não quer ter filhos, a forma como ela se movimenta, a postura dela com o Domingos, a relação deles, é tudo muito pouco convencional", explica a atriz, que não teve dúvidas sobre o projeto. Ou, melhor, a sua vontade de participar nele. É que depois de ser convidada e receber os guiões dos oito episódios, ligou à sua agente a dizer o "sim" ainda nem tinha chegado a meio do primeiro.
"Era o arrojo, a ousadia, que sentias logo na escrita". E, claro, sentiu logo empatia com a sua personagem. "Apaixonei-me pela Olinda. É uma personagem muito desafiante porque joga ali com uma série de estereótipos, que tem ali para os partir a todos. Engraçado, a série estreou em Geneva, no Festival de Cinema, e uma das primeiras críticas que eu li falava disso. De repente, os autores apresentam os estereótipos das personagens que depois os partem. Elas não são as 'femme fatales' habituais", conta.
Fatais ou não, são mulheres com ambições, com sonhos. Assim como todos os que nela figuram. Especialmente Domingos e Olinda.
"A série acaba por ter também este lado de transportar o sonho. Estas personagens são todas movidas [pelo sonho] e nesse sentido são todos cavalos de corrida. Já falámos disso várias vezes com os realizadores. O sonho do Domingos e da Olinda é ter uma casa. Isso é uma coisa muito importante para eles; é uma coisa que lhes vai dar segurança, que lhes vai dar liberdade, que lhes vai dar uma série de coisas. E eles não vão parar. Vão cavalgar, vão fazer o que for preciso para alcançar esse sonho", diz, rematando que "estas personagens têm todas uma ânsia de liberdade. O dinheiro dá-te isso", contextualiza Teresa Tavares, antes de explicar o que a leva a gostar e a destacar na série.
"Uma coisa que eu gosto em 'Cavalos de Corrida' é que tem autoria, não é algo genérico, não é uma clássica série de ação. É uma série que tem ação, mas com personagens que vivem num tempo [específico], há uma autoria muito particular ao nível da realização, da fotografia, da montagem, da banda sonora [de Xinobi]. E eu acho que a autoria nos vai levar sempre longe. Esta especificidade é o que nos pode levar longe", conta.
Polémica de transfobia no S. Luiz. "É a primeira vez que eu falo publicamente sobre este assunto"
Outro dos tempos que se abordou foi a polémica de transfobia no S. Luiz. Em janeiro, a discussão instalou-se nas redes sociais depois de a atriz e performer travesti Keyla Brasil ter saltado da plateia do Teatro São Luiz para o palco com vários gritos de protesto, em que repetiu várias vezes a palavra "transfake". A ação levou à interrupção do espetáculo e obrigou mesmo ao fecho do pano da boca de cena.
O espetáculo em questão, "Tudo sobre a minha mãe", conta com a encenação de Daniel Gorjão, que dirige a peça sobre o texto do dramaturgo Samuel Adamson, que transpõe para teatro o argumento do premiado filme de Pedro Almodóvar, de 1999. Do elenco original da peça fazem parte, entre outros, a atriz trans Gaya de Medeiros (no papel de Agrado), André Patrício (faz mais do que uma personagem) e Teresa Tavares. No entanto, em causa e na origem do protesto está o papel de Lola, mulher trans, ex-marido da protagonista da história (Manuela).
"É a primeira vez que eu falo publicamente sobre este assunto porque a situação empolou-se de tal forma nas redes sociais que achei que não era o momento", começa por dizer a atriz. "Não estou a esmorecer nada, atenção. Estou só a dizer que senti: estou no meio do furacão, não quero fazer isso agora", diz, antes de estender o seu comentário e explicar que foi a primeira vez que a personagem de Agrado foi interpretada por uma mulher trans.
"A Agrado foi interpretada pela Gaia de Medeiros e foi a primeira vez no mundo que essa personagem foi feita por uma mulher trans. Foi nesta produção em Portugal. Foi a Gaia que fez esse papel, que nunca tinha sido feito por uma mulher trans. Acho que isto diz bastante sobre a minha ligação à causa, e a de toda a gente envolvida no processo", esclarece, antes de dar conta que se trata de "um espetáculo muito caro" e como "não há muito dinheiro para fazer teatro em Portugal" teve de se optar por um ator cisgénero a fazer vários papéis. O que não quer dizer que fosse esse o plano inicial ou a vontade dos envolvidos.
"O próprio Daniel [o encenador] assumiu, creio que até na própria folha de sala, mas se não também em entrevistas, que num mundo ideal, claro que ele teria uma atriz a fazer de Agrado - como teve, a Gaia - e poria logo à partida uma atriz trans a fazer o papel da Lola. Acabou por decidir, por essa questão [de custos] de produção, que seria um ator a fazer os vários papéis. Creio que o André [Patrício] acabou por fazer quatro papéis. Isso foi assumido. O que aconteceu depois foi que houve alguma pressão da comunidade trans, que eu percebo porque é um momento de enorme transformação", afirma.
Depois do protesto e polémica, houve uma alteração no elenco e o papel de Lola é agora desempenhado pela atriz trans Maria João Vaz. À Agência Lusa, o encenador Daniel Gorjão explicou que tal só foi possível "depois de todos os acontecimentos", uma vez "que se reuniram condições", com "o total suporte dos teatros produtores". O mesmo disse Teresa Tavares no podcast do Acho Que Vais Gostar Disto, que considerou também que a sensibilidade do grupo para com as causas trans não pode ser questionada. "No [Teatro] São Luiz, quando fomos ao palco, nós dissemos isso: nós somos aliados. Sobre isso é que acho que não deve haver dúvidas", conclui.
Esta entrevista está disponível na íntegra no podcast Acho Que Vais Gostar Disto, que podes ouvir nas plataformas habituais.
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