A terceira temporada da série britânica The Crown é um exercício contínuo de ping-pong entre o passado e o futuro. O presente é, como na vida real, apenas um ponto de passagem, algo que realmente não existe mais do que no instante. O instante-presente é, quase sempre, apresentado por alguém que estando ali, não está. A rainha, a irmã da rainha, a mãe do marido da rainha, as crianças que nos farão passar por uma tristeza que estava escondida atrás da cortina do passado – e tantos outros, são filmados, não por acaso, de costas. É esse o grande plano que o realizador da série nos oferece. E, se no primeiro episódio, podemos pensar que se trata apenas de um (bonito) exercício de estilo, entrando no modo binge watching – em que eu assumidamente entrei – rapidamente percebemos que não é forma, é conteúdo. Ou é design de conteúdo, sendo o design entendido como a funcionalidade que serve um determinado propósito.
Qual é o propósito deste The Crown, a série criada por Peter Morgan e que estreou na Netflix em pleno pós-Brexit?
É um propósito que sendo o mesmo das duas temporadas anteriores parece, todavia, diferente. Sim, é uma série sobre a família real britânica desde que Isabel II se tornou sua alteza no reino hoje menos unido. Sim, é uma série que nos mostra – em bom – aquilo que as revistas cor de rosa andam há décadas a mostrar em modo fotonovela (os casamentos, os amores contrariados, os nascimentos, as mortes, os escândalos e as manias de um conjunto de pessoas que faz perdurar no imaginário ocidental a ideia do era uma vez ...).
Mas não, não é só isso.
É uma série que nos despeja no século XX, na história do século XX, e que sabemos nos trará até a este nosso século XXI.É uma série que nos serve a história como ela deve ser servida se alguma coisa pretendemos aprender: viva, humana, cheia de contradições e que faz pensar. E, nesta temporada, a história está mais viva que nunca. O que nos faz entrar no segmento perigoso deste texto que é o de explicar porquê sem tirar a ninguém o prazer que merece e a que tem direito de descobrir esta coroa agora usada por Olivia Colman, que a herdou da jovem rainha Claire Foy.
Vamos só recordar o final da segunda temporada. Nas imagens finais, vemos Elisabeth e Philip, ou Isabel e Filipe, como preferirem, encaixados um no outro, a cabeça dele no colo dela, a cabeça dela sobre a cabeça dele. Foi uma temporada sobre ele, o príncipe consorte que não queria ser vassalo da mulher com quem casou e que sempre foi, também, a sua rainha. É um Philip estouvado, um Philip nas margens de tudo o que seria aceitável para um casal qualquer, não precisava sequer de ser real. Mas que ao ser real torna as margens mais esfuziantes, luxuosas, escandalosas. É aí que a temporada pára. No escândalo Profumo, de que Philip sai incólume, mas não o seu casamento. E, no final dessa temporada, é uma Elisabeth grávida do quarto filho que o perdoa daquilo que nunca dirá que fez e é um Philip de regresso a casa que lhe garante que ela é a vida que escolheu, mesmo que também seja a vida que lhe foi imposta. “O teu pai deixou claro que o meu trabalho és tu”, afirma – e seria romanticamente um desastre, não fosse o que vem depois e o que vem depois é uma confissão de amor.
É daí que saltamos para esta terceira temporada que decorre entre 1964 e 1977. E que melhor maneira de dar o salto do que através do retrato do que foi e do que é? O retrato de quem foi a rainha em jovem, Claire Foy que já não vemos nestes episódios, ali está ela a despedir-se enquanto rainha na tela, e o retrato da rainha que é, bem-vinda Olivia Colman, vai ser um prazer ver a história através de ti. Os dois retratos, as duas rainhas, o tempo antigo e o tempo novo – e o presente, aquele instante para ligar os dois.
A rainha é agora uma mulher crescida. Tem quatro filhos, ultrapassou os primeiros anos difíceis de um casamento e de um reinado e Olivia Colman traz tudo isso para a tela. Onde em Claire Foy existia uma insegurança a que ela deu todo o esplendor, em Colman existe autoridade. Esta é uma rainha rija, que se tornou rija, por vezes dura quando antes era apenas aparentemente pouco flexível ou disposta a quebrar com o que entendia ser o seu dever.
Nas costas da rainha vamos percorrendo os corredores do futuro. O futuro que foi a Grã-Bretanha liderada por um primeiro-ministro trabalhista, Harold Wilson, sobre o qual se especulou poder ser espião da KGB. A Grã-Bretanha na bancarrota – sim, também eles foram resgatados – e a relação com os Estados Unidos em plena guerra do Vietname. A Grã-Bretanha do luto por Aberfan, uma tragédia desconhecida da maioria dos que verão o episódio em Portugal, o maior arrependimento da rainha segundo conta a série e um dos momentos em que a televisão nos destrói ao mostrar o que preferíamos não saber, mas que precisamos, devemos, temos de saber para evitar que se repita. Em qualquer Aberfan do mundo.
The Crown, temporada três, é uma das razões pelas quais o mundo ficou melhor porque se inventou o streaming. E como se não bastasse, ainda temos Helen Bonham Carter a quem cabe dar o corpo e a alma à Princesa Margarida – era difícil escolher melhor. Por todas as vezes em que a televisão nos deixou ficar mal, na caixa onde nasceu ou nos ecrãs das novas plataformas em que agora a vimos, The Crown devolve-nos razões para continuarmos ligados a ela. Faz-nos entrar por esta Inglaterra da segunda metade dos anos 60 e não nos deixa sair dela. São 10 horas de história, de histórias, daquilo que nos ajuda a aguentar-nos uns aos outros. E passa num instante.
P.S. – Em jeito de nota de rodapé, há que assinalar a ironia do momento da estreia, precisamente quando Inglaterra discute por onde andou o príncipe André enquanto fazia amizades com o milionário acusado de orgias com menores, Jeffrey Epstein. É pena que para sabermos mais alguma ainda tenhamos de esperar por várias temporadas de The Crown.
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