A crítica de Abílio dos Reis. O Primeiro Homem na Lua, de Damien Chazelle, com Ryan Gosling, Claire Foy, Jason Clarke e Ryle Chandler, estreia esta quinta-feira, dia 18 de outubro, nas salas portuguesas.
Não parece, mas este não é um filme sobre o astronauta. É um filme sobre Neil, o homem. É sobre Neil, o pai que encapota grande parte dos sentimentos que lhe assolam a alma; é sobre Neil, o marido que guarda aquilo que à vista desarmada a mulher percebe que o corrói por dentro. Na sua essência, são as memórias daquele que muito deu à História, mas também daqueles que viveram à sua volta e o viram sofrer enquanto se preparava para ir até onde ninguém da sua espécie tinha ido — e local ao que desde então não voltaram. Um importante passo sobre a vida do primeiro homem na lua, portanto.
A sequência de abertura não só é toda ela vertiginosa, como, de certa forma, estabelece logo uma serenidade de espírito para o que aí vem. Estamos em 1961, e Neil Armstrong (Ryan Gosling), então um jovem piloto de testes da NACA (antecessora da NASA), a bordo do X-15 (um avião experimental propulsionado por um foguetão), estica os limites da prudência num céu muito alto — tão alto que arrisca a própria vida. Truculenta ou não, é nesta cena que ficamos saber que, apesar de ter esticado a corda mais do que é recomendável, o First Man [O Primeiro Homem na Lua] demonstra destreza e serenidade quando se vê envolto numa situação de altíssima pressão — o tipo de reação que dá imenso jeito se se estiver com problemas no espaço e está tudo a dar para o torto.
À superfície é só o prólogo, uma sequência inicial. Porém, no fundo, é bem mais do que isso porque nos dá um ponto de vista particular — que aqui conta muito. Outros filmes já exploraram os programas da NASA de forma eloquente e exuberante: Os Eleitos (1983) de Philip Kaufman e Apollo 13 (1995) de Ron Howard são dos exemplos mais recorrentes quando se fala deste novo filme do realizador mais novo de sempre a vencer um Óscar. Mas em O Primeiro Homem na Lua a abordagem é mais intensa, claustrofóbica e desnorteante. Se no filme de Ron Howard, estrelado por Tom Hanks, estamos perante algo extremamente fiel aos aparelhos e maquinaria da época, em First Man, sentimo-nos lá, a bordo. Já pensou como seria fazer a viagem até à lua? Ou como é que seria dar um salto na superfície lunar, numa das suas crateras de impacto? Damien Chazelle, sabendo que não podia acrescentar grande coisa a uma história sobejamente conhecida, optou por criar — literalmente — uma nova ótica do assunto através daqueles que a viveram. (Com câmaras IMAX, especiais para o efeito e tudo.)
O Primeiro Homem na Lua é escrito por Josh Singer — Spotlight (2015) e The Post (2017) — que adaptou a biografia de James R. Hansen sobre Armstrong. É uma história que recai sobre uma missão perigosa, obsessiva, que se cimentou na determinação de vários homens. E Chazelle filma quase toda ação exclusivamente do ponto de vista dos próprios astronautas durante a preparação da tripulação e durante as missões Gemini e Apollo: o que veem, o que ouvem, o que dizem, onde tocam. Porque ao espetador cabe sentir tudo o resto; a sua reação ao ruído do foguete principal, à vibração das válvulas que se vão abrindo à medida que os sistema de propulsão são pressurizados, enquanto são sacudidos e empurrados pela carga gravitacional. É vivenciar o olhar confinado daqueles que estão num espaço tremendamente pequeno, ouvindo a base fazer a checklist da pré-descolagem enquanto a sua respiração ofegante e nervosa antecede o lançamento.
Ora, para isto, o realizador conta com ajuda da fotografia de Linus Sangren — ao estilo de Emmanuel Lubezki em Gravidade (2013) — e com a edição trépida de Tom Cross, cuja junção faz com que a experiência de visionamento imersiva ganhe maior apelo. Se decidir ver o filme, vá-se preparando para uma câmara num autêntico reboliço e frenesim. Porque se numa situação de descolagem, tudo abana e tudo treme, Chazelle faz questão que a câmara siga esse caminho — e esta treme. Muito.
O enredo cobre quase (excetuando os flashbacks) linearmente o período entre 1961 e 1969, quando a NASA estava galvanizada (e determinada) em deixar o segundo lugar na garraiada que era a corrida ao espaço com os soviéticos. A missão da Apollo 11 — que meteu o Homem na lua — passava por completar o objetivo traçado pelo Presidente John F. Kennedy: aterrar na superfície lunar, numa missão tripulada, mas tendo em vista um glorioso regresso à Terra. Desde o lançamento ao regresso, esta viagem demorou 8 dias, 3 horas, 18 minutos e 35 segundos, e três pilotos da Apollo 11 fizessem história. Estávamos a 20 de julho de 1969. É neste contexto que Chazelle conta a história de Neil Armstrong num estilo docudrama que vai saltando entre o foco da sua vida doméstica e a progressão das missões Gemini e Apollo.
Só que apesar de tudo isto ser pungente, o soco no estômago acontece imediatamente a seguir à cena que abre o filme. Uma perda que empurrará Armstrong para uma nova obsessão, o programa espacial da NASA. É o constatar de uma certa obscuridade, de um pai que se refugia quando se vê obrigado a viver em negação. Durante este período trágico, vêmo-lo a evitar a família, a sua casa, a exponenciar os traços de uma personalidade que são conhecidos pelo público — alguém recatado, sem afoito pelos holofotes e que não tem jeito para conversa de circunstância. Só que à medida que o filme e a missão avançam, avança também o perigo desta. A lua ia ficando mais perto, maior, mas com ela aumentavam também os riscos. E Neil estava mais distante, especialmente dos dois filhos, perdendo-se nos seus pensamentos e nos cálculos e testes da missão da qual era refém.
Uma das coisas que mais chama à atenção em Neil Armstrong de Gosling é a sua personalidade deveras intelectual e quase robótica. É neste estilo célere que o vemos no papel de pai, marido, mas sobretudo como lida com o perigo iminente. É alguém que não tem medo de ultrapassar os limites num treino "porque o lugar para falhar" é durante a preparação, na Terra; é que assim, no espaço, estará melhor preparado quando confrontado em situações de desconforto, de perigo, inesperadas. Neil consegue desvencilhar-se através de cálculos difíceis duma situação quase fatal no espaço, salvando outra pessoa; só que em casa ou em situações sociais, mostra-se muito pouco à vontade ou com pouca apetência para falar sem considerar todas as variáveis.
Janet Armstrong (Claire Foy, a Rainha Elizabeth de The Crown) é a carga emocional e o elo de ligação entre o mundo espacial, cerebral e racional de Neil com os restantes. Num casal onde um dos elementos desenhada um lado dramaticamente estoico, Janet é pêndulo que os segura. Janet casou com Neil "porque queria uma vida normal; porque queria estabilidade". Mas acabou a partilhar vida com o homem que deu o primeiro passo na lua.
Escreve o New York Times que Chazelle, aos 33 anos, é um realizador ambicioso que faz filmes sobre personagens que são elas próprias conduzidas pela surdina de uma ambição desmedida. E explica que os seus três filmes anteriores assim o demonstram, aumentando sempre a escala do seu desejo e visão em cada nova apresentação. Quer fosse em Whiplash (2014), quer fosse em La La Land (2016), todos os protagonistas representavam alguém que não ficava satisfeito com a banalidade. As personagens são apaixonadas — obcecadas até — em atingir a grandeza naquilo que fazem. Mediano ou prosaico não figura na construção daquilo que as caracteriza enquanto personagens. Magnificência, ou nada. Não obstante, durante o caminho que se percorre até à grandiosidade do extraordinário, existe a fixação de que nada pode falhar. Só que para nada falhar, é preciso trabalhar. E muito. E aqui nota-se que trabalhou até à exaustão. (E para os indecisos e que não apreciaram La La Land, diga-se que o estilo aqui é bem diferente. Dança, só uma, ao som de "Lunar Rhapsody" de Samuel J. Hoffman.)
Gosling impressiona pelo magnetismo que transporta para a sua caracterização. É que Neil Armstrong era um homem de poucas palavras, aquele tipo de pessoa que fica quieta seu recanto, mas que está avaliar tudo. E Gosling transparece essa personalidade do astronauta com uma aura especial — sendo que Foy não lhe fica atrás. (Não será nenhum tiro no escuro esperar que ambos estejam entre os eleitos nas bocas dos entusiastas da sétima arte quando começar a surgir o falatório para os Óscares. Assim como Chazelle.)
Existem muitos e bons filmes que podem esperar até estarem ao alcance do conforto do sofá de lá casa. Mas este não é certamente um deles. Recomendar uma ida ao IMAX não é algo faça de ânimo leve, tendo em conta o custo; só que os há, aqueles tramados filmes, que atestam as medidas. O espaço é um lugar negro, vasto e enorme. E o de O Primeiro Homem na Lua vai muitíssimo bem com uma sala escura, barulhenta e com um ecrã grande o suficiente para fazer a cabeça (e não só) tremer.
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