A cada quinze dias a história repete-se. Ao longo do ano, por um período de mais ou menos 40 semanas, muda o país, muda a cidade, muda o quarto com vista para, muda o recinto, muda a audiência e a língua local nem sempre é igual. Só não muda a cumplicidade entre esta “família” de 100 pessoas, sendo 50 delas artistas, entre ginastas, acrobatas, músicos, de 21 nacionalidades, entre as quais um português, técnico de som.
E o que não muda também é o dia-a-dia de quem escolheu esta vida nómada tal como o nome “Varekai” indica no idioma cigano romani: onde quer que seja. Para um acrobata viajante, a existência de uma boa rotina, se é que existe, faz parte da vida, sendo ela consubstancializada no treino duro que é feito todos os dias. Porque a vida daquele ou aquela a quem apanhamos no ar, naquela fração de segundo, depende disso mesmo. De cumplicidades, olhares e sinais.
Desde 2ª feira, 22 camiões estão estacionados no MEO Arena transportando aquilo que será até ao próximo dia 15 de janeiro o maravilhoso e misterioso mundo “Varekai”. Depois de duas semanas de pausa para os artistas celebrarem o Natal e o Ano Novo, chegaram. O show começou ontem. A preparação de quem sobe ao palco, essa, é feita com dois dias de antecedência, mas outra “equipa” já cá andava a estudar o terreno com antecedência, como sempre faz.
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O check-in no MEO Arena
Cinco horas antes do início do espetáculo, o universo circense já mexia. Por ora, escondendo a metamorfose de que estes simples seres humanos serão objeto mais tarde. Secretamente, os artistas passeiam por debaixo do MEO Arena. De leggings, de roupão com as inscrições do Cirque du Soleil, bebendo líquidos e mexendo, ondulando, o corpo.
Na entrada da rampa norte do MEO Arena, num quadro está um verdadeiro GPS da era antiga, com setas indicando o caminho, dos camarins à lavandaria. Uma ginasta de origem asiática chega de trotinete e faz o check-in...num papel.
Caminhando com o olhar, folhas A3 coladas nas paredes deixam transparecer as nacionalidades presentes, de georgianos a ingleses, passando por canadianos. Há quem tenha para aqui entrado e constituído família, há quem recorra a fotografias para encurtar a distância para o agregado que está longe e que não anda nesta vida saltitante. “Um russo chegou mesmo agora e está a aprender (inglês) com os outros que dominam o idioma”, explicou Julie Desmarais, diretora de comunicação do Cirque du Soleil e cicerone de serviço, ela que mora e tem família em Montreal, Canadá, e que anda nestas andanças há mais de 6 anos, o último ano em meio na estrada com o circo que aterrou em Lisboa.
“Há mais homens que mulheres”, reconhece quem nos acompanha nos corredores até ao centro do pavilhão. Todos têm uma história ligada à ginástica desde tenra idade. O mais velho a atuar tem “42 anos”. A condição física está à responsabilidade de cada um dos artistas, sendo que têm “uma equipa de fisioterapeutas, médico e treinador” à disposição.
A preparação do corpo e as pinturas na cara
Uma rapariga estica as pernas, lateralmente, até à orelha. Imaginem uma pata de frango a tocar na cabeça da ave. Parte. Aqui parece ser um gesto normal. Um homem puxa ferro. Treinam e esticam o corpo. Contorcendo-se. Todos os dias. Fazem-no durante mais de uma hora, por agora. Mas já andaram a exercitar os músculos antes. Este é o aquecimento final, horas antes do espetáculo, algo que para muitos mortais seria o esforço semanal. “Treinam 2 vezes no palco por semana, uma hora em palco e outra no backstage. Para além disso há os programas próprios que demoram 3 horas por dia, depende”, revela.
Mas não tratam só dos músculos. Há ginastas a arranjar e a pintar as unhas. E ainda se vão maquilhar, um processo que leva no mínimo “45 minutos”.
Enquanto caminhamos, de forma circular, encontramos roupa e mais roupa devidamente alinhada. De todas as cores e feitios. Exuberantes. Eiko Ishioka, a estilista e figurinista japonesa (1938-2012) que venceu um Óscar para Melhor Guarda-Roupa pelo Drácula (1992) de Francis Ford Coppola, foi responsável por mais de 600 figurinos, chapéus e outros acessórios. Tudo feito ao longo de 33 mil horas de trabalho e que custam 250 horas de manutenção. Em média são produzidos 3 mil pares de sapatos todos os anos. O SAPO24 teve o privilégio de assistir ao nascimento de um. “Chapéus há muitos” e cabeças também, por isso, cada qual é desenhado a medida de quem os enfia.
O guarda-roupa é cuidadosamente tratado por quatro assistentes itinerantes e duas locais que passam a ferro, retocam tudo e dão as últimas costuras. Tudo irá passar pela lavandaria, pelas seis máquinas de lavar, duas de secar, que também elas são nómadas, indo para onde a companhia canadiana viaja.
Música de todo o mundo e saltos de outro mundo
Finalmente, damos de caras com o palco que demorou “12 horas” a ver a luz do dia, conforme confidenciou Julie Desmarais, a responsável de comunicação da companhia canadiana que, para não quebrar o multiculturalismo reinante, pertence a investidores americanos da TPG Capital, ao grupo chinês Fosun e, numa pequena percentagem, a Guy Laliberté, canadiano que deu vida a este circo contemporâneo criado em 1984 e que outrora foi “pai” disto tudo.
Em palco estava o “Russian Swing”, algo se pode traduzir mais ou menos como uma espécie de duas semi-rodas que ora “disparam” os acrobatas de uma ponta para a outra, ora os projetam no ar, sendo amparados por dois lençóis gigantes ou por dois ginastas que parecem ter saído dos camiões TIR’s, tamanha é a força de braços que necessitam ter.
No treino, saltam “presos por arames”, minimizando os riscos. À séria, os sinais entre os acrobatas são a única rede de proteção. A confiança é total. Procurando elevar sempre o nível, os acrobatas treinaram alguns saltos “durante seis meses” até à perfeição.
Com a hora a aproximar-se da estreia, sai quem salta, entra quem canta e toca. 7 músicos. 2 cantores, devidamente maquilhados. Ele parece o Pavarotti. Ela, irmã do compositor e repetente com Varekai em Portugal, vai tentando trocar umas palavras, em português, com um dos responsáveis do som, Fernando Cardoso, o único luso de serviço neste exército de artistas, costureiros, técnicos, fisioterapeutas e outros.
Os músicos estão “dentro de uma caixa” longe da vista, com exceção de quem encosta o violino ao queixo. O baterista, esse, faz parte da mobília e está em tour desde o início, em 2002.
“A música adapta-se ao que se passa em palco. Não poderia ser gravada”, desvenda Julie. Garante também que há “pequenos pormenores que se alteram constantemente como novas acrobacias”. Ver o Varekai não é como ver um filme. “Não são robots. É ao vivo. Podemos ver o show três dias seguidos e notar sempre pequenas novas coisas”, garante quem já o viu vezes sem conta.
Subir às árvores, voar pela plateia e testar os limites da força e da flexibilidade
Luzes apagadas. Pavilhão quase cheio. Depois de um momento de humor e de interação com o público (ou não estivéssemos a falar de circo), novos, menos novos e outros de profícua idade embalam numa viagem à mitologia grega, que se irá estender ao longo de duas horas, numa história que fala de amor e de esperança. Há um Ícaro e uma Prometida. Há uma queda. Alguém que mostra um caminho a quem irá levantar-se de novo e ter uma nova vida. Tudo se passa num misterioso mundo encantado de criaturas - que vestem e despem roupa entre três a cinco vezes - que aparecem e desaparecem de uma floresta com 300 árvores, que variam entre os 4,5 metros e os 10,5.
A música remete-nos para uma multiplicidade de sons. Uns parecem saídos de um espetáculo do Kusturica, há sons latinos, melodias tradicionais da Arménia e gospel. A melodia - língua inventada - que sai da boca dos cantores é, também, ela inclinada para o Fantástico.
Num palco com 12,5 metros de diâmetro, há plataformas elevatórias, buracos e armadilhas, cordas que ora elevam os acrobatas, ora os levam a voar pela plateia. Aqui, todo o cuidado é pouco e a concentração máxima. Não se pode por os pés pelas mãos.
Há números de acrobacia, ginástica que parece uma exibição de natação sincronizada, há quem fique suspenso no ar, quem atire o outro ao ar, quem voe e quem deslize. Há testes à força de braços, ao equilíbrio e aos limites da flexibilidade. Há danças georgianas. E outra que nos remete para a Capoeira. E jogos de “batons” que envergonham qualquer estreante a “Chapitô”.
Entre aplausos e risos, “uis e uaus”, com enorme cumplicidade reinante entre acrobatas, que confiam as vidas uns nos outros, que saltam de um lado para o outro, há um final feliz. De amor, o que ficou no ar entre Ícaro, o tal cujas asas arderam no inicio e caiu, e a Prometida.
Varekai é uma história, cantada, dançada, que cada um deve interpretar à sua maneira e deve ser percebida por todos. Para toda a família. E por falar em família, depois de mais um número em palco, a tal asiática da trotinete, poucos minutos depois do pano cair, lá se apresou a juntar-se à dela no hotel “onde todos nós ficamos, no nosso mundo, enquanto aqui estamos em Lisboa”, conclui Julie Desmarais.
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