Antes de começar, carregue no play do vídeo abaixo. É uma canção, aqui interpretada pelos Mills Brothers. Depois de a iniciar, siga para o resto do texto.
Não conheci o declínio da Feira Popular, ali em Lisboa. Tenho dela apenas uma foto em que vou com um desses cães de plástico, com uma bola no lugar de patas, e dentro dessa bola, umas outras, cheias de grão, que fazem um barulho tremendo pela Avenida da República abaixo.
Porém, não tendo visto nem auge nem decadência em Entrecampos, vi indício na Confederação Helvética, um agosto, há um par de anos. Uma pequena montanha russa e uma outra caranguejola que nos atira do alto para um charco, dentro de um tronco de fibra de vidro. É no vale do Ródano, nas montanhas suíças. Um parque deprimente. As cores dos sorrisos de cada carrossel vão sumidas, misturadas com o verde fosco dos carrascos daqueles Alpes anunciados.
Dir-me-ão que os Alpes em pleno tempo estival hão de ser sempre deprimentes, mas confiem que não será bem assim. O bosque agastado tem mais mistério que a neve cintilante. E quando se fala de histórias, só a cor da dúvida importa.
E a cor desempenha no novo filme de Woody Allen um importante papel. É como uma segunda voz, um coro grego a gritar os pormenores que as personagens não dizem.
Apesar disso — que, a bem da verdade, é mais culpa de Vittorio Storaro que de Allen —, a crítica não tem sido simpática (por exemplo aqui, aqui ou aqui). Nos últimos anos, Woody Allen, que praticamente lança uma nova obra a cada 365 dias, tem sido desmontado, atirado para fora do altar e posto no chão.
Mas não vai ser esta uma crítica de contexto, da análise do lugar deste Roda Gigante no currículo de um homem. Vejamo-lo apenas na sala, despegado de antologias e compêndios cinéfilos. Não é que esteja a descurar a integração da parte num todo; mas outras críticas haverá onde pode ler sobre Woody Allen. Quando o olhamos só por si, percebemos que o filme medíocre de Allen pode ser, afinal, uma brilhante anedota.
Kate Winslet, no papel da frustrada Ginny, exagera tudo. O desempenho da atriz— que não se estreia na atração por jovens, veja-se por exemplo “O Leitor” (2009) —, é expressivo, gestual, melancólico, e está a ser apontado por uns como um erro de produção. Porém, pode ser visto como um instrumento narrativo: a mulher que, não tendo conseguido cumprir o sonho de ser atriz, passa a encenar a vida.
Em certa medida, é mesmo isso que se passa. Algures na história, Ginny desabafa que a vida que leva não é a vida que tem; que é apenas uma encenação, uma espécie de treino — estágio — até chegar ao grande papel que o destino lhe há de ter reservado — o glamour, as estrelas, os vestidos, as joias, os aplausos, o amor — Broadway, enfim.
Mas nisto das encenações, das construções e projeções pessoais maiores que o ser, Ginny não está sozinha. Pelo contrário, Mickey (Justin Timberlake) faz exatamente isso, embora fora dos palcos nova-iorquinos. O jovem nadador salvador escreve o destino conforme julga mais próximo de um romance clássico do homem desgraçado pelo amor épico. E faz questão de o declamar assim mesmo. Mickey não fala: apresenta. Mickey não pensa: constrói.
Estes dois são os mais falsos. Falsos porque caricaturas — do ator e do escritor. São cúmulos do preconceito, do ideário que cabe em cada um para o que é um escritor e o que é um ator. Houve quem dissesse que Timberlake parece estar a atuar pela primeira vez no teatro da aldeia. Mas se não pusesse neste Mickey todo o empenho, toda a sede, vontade de marcar, ser mais do que a vida, exagerar em demasia, esta personagem não podia ser a mesma.
Um filme não é um documentário. Se quiser ser uma ode ao absurdo, que seja. Se essa ode resultar, devemos condená-lo? (naturalmente, não discutimos com Woody Allen se o ar amador é propositado ou uma incapacidade de Timberlake para encarnar papéis deste género).
No lado mais normal, embora dentro do exagero, temos Carolina (Juno Temple), uma esplêndida rapariga que foge do marido (um gangster que ela denunciou às autoridades), que a quer matar. Ela vem deslumbrante. Entra na marginal de Coney Island com a luz quente e dourada que nos prova que esta jovem vem para valer.
E vale mesmo. O pai, Humpty (Jim Belushi), que estava de costas voltadas com a moça desde que ela escolhera casar-se com um bandido — para desgosto da mãe, entretanto falecida — não resiste ao desespero de Carolina e recebe-a em casa. Na mesma casa onde vive Ginny.
Está montado o primeiro caldo. Ginny, a atriz frustrada, juntou-se a Humpty, viúvo alcoólico, depois de se separar de um músico. Agora, ela serve à mesa numa marisqueira e ele é controlador de um carrossel em Coney Island. Com eles vive também o filho de Ginny (e do baterista que ela traiu), uma criança pirómana chamada Richie (Jack Gore).
A história desenrola. A cabeça de Ginny estremece com as barracas de tiros, com os chiares monofónicos das atrações, com as luzes que entram sem licença casa dentro. Aspirina, aspirina, aspirina, pede ela.
Um dia, porém, as frustrações desaparecem. Um nadador salvador encontra-a miserável na praia. Chove. O céu está desmaiado e ameaçando trovoada. À beira do mar, aquela mulher de alma desaparecida é o alvo perfeito — da eletricidade estática dos céus e do romance épico de Mickey.
Se os trovões nela não tocam, o mesmo se não pode dizer de Mickey. E ela corresponde. Perde-se nele. Por fim, sonha. Sonha sair daquele circo, daquela casa de aberrações (é literalmente onde vive), daquele espetáculo surreal que encena. Com ele, admite, é ela.
Mickey, contudo, não está muito interessado em algo maior que um conto de verão. Para as epístolas chega um par de noites no areal. Mais do que isso é epopeia. E nas epopeias não fica bem uma mulher acabada durante muitos capítulos.
Carolina é o oposto. O cabelo doirado, o colo de mármore, deixam Mickey adivinhar nela a huri prometida. Está bem de ver que a coisa não há de acabar bem — é que, em resumo, temos uma senhora a trair o marido com o amante que a trai com a filha do marido (triângulos amorosos são coisa do passado, venham daí os restantes polígonos).
Aquilo de que a crítica o acusa, porém, é de repetição. Estará Allen a passar pela mesma fase de dúvida que a sua Ginny?
Bem, é certo que há paralelismos irrefutáveis. Se olharmos para “Café Society” (2016) — que não está longe de parecer uma adaptação de O Grande Gatsby, de F. Scott Fitzgerald — há semelhanças entre o jovem que quer ser argumentista e a ex-estrela pop dos anos 1990 que quer ser escritora.
Ainda assim, este “Roda Gigante” ganha pela fotografia. O trabalho fenomenal de luz e cor, os cenários fantásticos e enquadramentos surrealistas dão à obra uma profundidade maior, com múltiplas leituras (há jogos de luz e sombra que nos chegam a dizer mais que as personagens).
Claro, não falámos pessoalmente com Woody Allen para saber se todos os pormenores são propositados ou apenas uma nossa leitura da metalinguagem cénica da obra; porém, sendo o realizador a autoridade que é, cremos que a meia sombra na cara de Ginny quando fala do amor não será acidental — esta mulher esconde algo, tal como a luz a esconde a ela.
Pode parecer decadente. Pode parecer um certo parque em Entrecampos, ou um outro no meio dos Alpes. Mas o que importa não é o que parece, mas o que nos faz sentir. E nisso, as rodas gigantes que se erguem, chiando ameaças de ruína, são sempre aquelas que mais memórias cravam, de tal modo que não vim para aqui falar dos mega parques de diversões europeus, mas antes dumas débeis construções perdidas dos roteiros.
Esta não é uma história extraordinária, mas é uma experiência memorável — seja pelo bem, ou pelo mal. Talvez seja repetitiva, mas, como escreve Michael O’Sullivan do ‘Washington Post’, sempre assim o são as rodas gigantes.
"Roda Gigante", de Woody Allen, estreia esta quinta-feira, 14 de dezembro, nas salas portuguesas, ao som da música que por esta altura já deve ter acabado de ouvir.
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