Nos compêndios da mitologia do que faz a portugalidade, surge sempre a tal palavra impossível de traduzir: saudade. A saudade é aquele sentimento de falta, de nostalgia pelo que houve, de desejo de regresso. Os alemães, contudo, têm Sehnsucht, que é a tradução — por ventura mais profunda — da nossa saudade, desse conceito indizível de vício inalcançável por algo que queremos, tenhamos ou já o alcançando antes.
Rui Rio, orgulhoso germanófilo saído do Colégio Alemão do Porto, não tem pejo em trazer a língua lá desse país enorme onde as palavras, tal como os indicadores económicos, são sempre maiores que as dos outros idiomas. Depois do desaire dos resultados, Rio acabou a explicar em alemão aos jornalistas que lhe parece ter chegado a altura de dizer “auf Wiedersehen”.
No Porto, onde esteve 12 anos à frente da câmara, deixou uma imagem mista: por um lado, as "contas certas", por outro, fez desaparecer o jardim nos Aliados; e por outro ainda, escorraçou a cultura, os jornalistas e até o futebol da vida da cidade. Há quem não o perdoe e há quem o compreenda — mas talvez seja difícil achar alguém com Sehnsucht por esse tempo.
No partido, também não é provável que o legado de Rio seja dado a saudosismos: sob a liderança de Rui Rio, o PSD obteve os piores resultados em legislativas dos últimos vinte anos em percentagem — 27,7% em 2019 e agora, com dados ainda provisórios, 27,8% .
O PSD só por três vezes na sua história teve um resultado inferior em percentagem em eleições para o parlamento nacional: o pior aconteceu em 1976, nas primeiras eleições para a Assembleia da República, quando o partido então liderado pelo fundador Francisco Sá Carneiro alcançou 24,35% dos votos e elegeu 73 deputados (correspondentes a 1,3 milhões de votos), no único sufrágio em que o parlamento elegeu 263 parlamentares.
O segundo pior resultado dos sociais-democratas data de 1975, nas eleições para a Assembleia Constituinte, quando registaram 26,39% dos votos. Segue-se a marca de 1983, quando o partido, presidido por Carlos Mota Pinto, se fica pelos 27,24% (75 deputados em 250, 1,5 milhões de votos).
A diferença para o PS é também uma das mais significativas de sempre, ficando os sociais-democratas quase 14 pontos percentuais atrás dos socialistas, de acordo com os dados já apurados, apenas abaixo do intervalo entre os dois partidos na maioria absoluta conquistada por José Sócrates em 2005.
Segundo os dados provisórios do território nacional (faltando apurar os quatro deputados da emigração), em 226 lugares no parlamento o PSD conseguiu 76, dos quais 71 sozinho e cinco em coligação com o CDS-PP na Madeira e nos Açores (Santana Lopes fez pior, com 75 deputados, em 2005).
Em relação a 2019, quando o PSD conseguiu 79 deputados (incluindo dois pelos círculos da Europa e Fora da Europa), os sociais-democratas dificilmente igualarão o número de eleitos de há dois anos, que já era um dos piores de sempre.
A nível nacional, o PSD apenas venceu num círculo eleitoral, o da Madeira, conjuntamente com o CDS-PP, tendo perdido, em relação às anteriores legislativas, o primeiro lugar em votos em Bragança, Vila Real, Leiria e até no antigo ‘cavaquistão’, Viseu. Os sociais-democratas conseguiram recuperar um deputado em Évora, um em Aveiro e outro em Lisboa, mas perderam quatro parlamentares, um em Bragança, outro no Porto, um em Vila Real e outro em Leiria.
Hoje, estava tudo em aberto. Para o ver governar o país, na última semana, as sondagens, as previsões dos comentadores e o tom dos noticiários indiciavam um cenário de indecisão: um empate, um resultado renhido entre o PS e o PSD. Todos os prognósticos eram antecipados. “Está tudo em aberto”, disse Rui Rio, por volta das 18:30, quando chegou à sede de campanha dos sociais-democratas, no hotel Sana, mesmo à beira da praça do Marquês de Pombal, o salão de festas no centro de Lisboa.
É para o Marquês que os adeptos de Sporting e Benfica vão fazer aquilo que Rio, enquanto autarca do Porto, não gostava que os adeptos dos ‘dragões’ fizessem: festejar. Esta coincidência espacial, porém, não é fruto de uma qualquer infeliz ironia na escolha do hotel, já que é sempre ali que os sociais-democratas se reúnem para acompanhar os resultados eleitorais.
Rui Rio votou no Porto, na Escola do Bom Sucesso, a meio-caminho do coração da capital do círculo eleitoral por onde era candidato em segundo lugar (atrás de Sofia Matos). Mais uma vez, o nome da escola não foi presságio para o caminho que levaram os resultados: mesmo com mais votos, Rio não travou a maioria absoluta do PS, nem foi capaz de debelar as labaredas do Chega.
Quando, às 20:00, os ecrãs ligados na RTP, SIC e TVI avançaram as projeções — com a vitória clara do PS e a maioria absoluta já no horizonte —, na sede de campanha do PSD o ambiente ficou esmorecido. É certo que nunca tinha estado excessivamente otimista, refugiado na amplitude que dá dizer “está tudo em aberto”. Ei-los, porém, nos ecrãs, os números das projeções a desmanchar os números das sondagens que alimentavam o entusiasmo na reta final da campanha. Pouco se gritou a sigla do partido, uns “PSD, PSD, PSD!” Que chegaram depois de um silêncio para engolir os resultados.
Ainda as contas iam no adro e, não muito longe, no hotel Altis, António Costa resumia aquilo que hão de ter sido estas eleições: “Passados dois anos [das últimas eleições legislativas], estamos perante o segundo reforço do PS. É um sinal claro de que os portugueses querem que o PS governe e querem tranquilidade nas suas vidas. Espero que todos entendam isso”, afirmou o primeiro-ministro reeleito, à RTP, nas primeiras horas da contagem oficial dos votos.
“O PS é de longe o grande vencedor da noite”
Apesar da “excelente campanha”, Rui Rio não demorou muito a assumir: “Não atingimos nem de longe, nem de perto os objetivos que queríamos e o PS é de longe o grande vencedor da noite”, disse, perante a sala cheia, no discurso em que reconheceu a derrota.
Rui Rio começou por saudar todos os portugueses que votaram, em especial no PSD, e cumprimentou os seus adversários, em particular o secretário-geral do PS, António Costa, “o vencedor da noite”, dizendo que já lhe tinha dado os parabéns por telefone.
Depois, agradeceu ainda ao coordenador do programa eleitoral, Joaquim Miranda Sarmento, dizendo ter orgulho de “ter sido” o presidente que apresentou este documento aos portugueses. E mais: “Nós ficámos com um resultado substancialmente abaixo do que pensávamos que íamos ter, mas fizemos o orçamento de campanha de tal forma que, mesmo com este resultado, não há qualquer défice, não há qualquer dívida, por causa desta campanha”, afirmou.
“O resultado que tivemos está muito longe do que entendíamos que devíamos ter, mas se agora houvesse outra campanha não tinha forma de dizer coisa diferente daquilo em que acreditamos”, disse. Afinal, “é assim que se faz uma campanha eleitoral, fica aqui uma semente para as próximas”, disse logo Rio, saudando a troca dos comícios por sessões de esclarecimento
“Houve um voto útil à esquerda absolutamente esmagador”
Afinal, isto “resume-se de uma forma muito simples”: “O PSD até teve mais votos em praticamente todos os distritos, mas há aqui um fenómeno que efetivamente decidiu completamente as eleições: houve um voto útil à esquerda absolutamente esmagador”, justificou Rui Rio, perante o novo mapa eleitoral não país.
Para o presidente do PSD, “a esquerda mobilizou-se, através do voto no PS, para evitar que o PSD pudesse nomear o primeiro-ministro”. “À direita, isso não aconteceu. Não houve a mesma união em torno do PSD para evitar que o dr. António Costa continuasse”, explicou.
Quando lhe perguntaram se era mérito de António Costa ou demérito de Rui Rio, o presidente dos sociais-democratas disse que “o PS tem o mérito de ter explicado à esquerda que ou votavam em massa no PS ou o primeiro-ministro era a pessoa indicada pelo PSD. E nós relativamente à direita não conseguimos isso, a direita dispersou e, portanto, não concentrou mais votos no PSD”.
“Continuo a achar que os portugueses não querem para primeiro-ministro alguém especializado em dizer mal dos outros, a dizer muito mal dos outros. Continuo a acreditar nisso. E a estratégia de captação do voto ao centro e do voto equilibrado, que é aquilo que é a matriz ideológica do PSD aconteceu”, insistiu. Neste ponto, Rio reiterou que “o problema é que à esquerda o PS foi buscar milhares de votos ao BE e ao PCP”.
“Portanto, aquilo que nós crescemos ao centro não chegou para aquilo que o PS ganhou à esquerda, e depois à nossa direita não houve a concentração no PSD, houve um reforço do Chega e um reforço da Iniciativa Liberal.”
“Quem é o primeiro responsável? Sou eu, quem é que havia de ser?”
“O povo português falhou”, disse a social-democrata Isabel Meirelles, antiga vice do partido. Foi a análise ao que se tornava óbvio: apesar da hecatombe nos parceiros dos acordos de governo, o PS crescia a caminho do que acabou por ser a maioria absoluta. Rui Rio tentou culpar-se a ele próprio, dizendo que é “o primeiro responsável” pelo que correu mal nestas eleições — mas na plateia que foi ao Sana, não pareceu haver quem concordasse.
Tantas vezes Rio disse que deixava mesmo a liderança conquistada há dois meses caso o PS obtivesse a maioria absoluta quantas os apoiantes gritavam para que não o fizesse. "O partido decidirá, mas eu não estou a ver, neste enquadramento, como é que eu posso ser útil, com quatro anos em cima", disse o presidente social-democrata, depois de sublinhar o cenário que se concretizou: "Particularmente se se confirmar que o PS tem uma maioria absoluta — tem, portanto, um horizonte de governação de quatro anos —, eu sinceramente não estou a ver como é que posso ser útil neste enquadramento”.
Nas últimas semanas, Rui Rio tinha posto de parte a hipótese de deixar a liderança logo na noite eleitoral, lembrando que tinha acabado de chegar para mais dois anos à frente do partido. Hoje, questionado se face aos resultados destas legislativas entende que tem condições para continuar a liderar o PSD, Rio começou por responder que sempre "disse que não estava preso a lugar nenhum, que estava com um completo desprendimento".
"Como também disse que a minha função aqui é uma missão, é prestar um serviço ao PSD e prestar um serviço a Portugal. Foi sempre isto que eu disse", continuou, já com palmas na sala. Apesar dos aplausos, os jornalistas perguntaram se o ex-autarca julga continuar a ter o apoio interno: "Eu sou o primeiro a dizer que, estando numa perspetiva de serviço, que é sempre como eu estive, eu não consigo argumentar como é que posso ser útil ao partido. Só se alguém argumentar. Eu não consigo, neste momento, havendo quatro anos de maioria absoluta".
Perante a insistência para clarificar o que afinal quer fazer, Rio mudou de língua e pôs-se a responder em alemão aos jornalistas: “Quer em alemão? Se quiser também posso dizer em alemão”, disse o líder do segundo partido mais votado, em alemão, debaixo dos gritos e apupos dos apoiantes na sala.
O jornalista, da CMTV, insistiu, avisando que não percebe alemão. Os apoiantes responderam com mais gritos, agora de “PSD!, PSD!, PSD!”.
“Eu já disse uma data de vezes, eu não sou de dramas, já disse em português correto, já disse em alemão. Não percebeu, não sei o que hei de fazer mais. Já disse que eu sou o primeiro a não conseguir argumentar depois de o PS ter uma maioria absoluta. Como é que posso ser útil ao PSD continuando no lugar? Não é preciso fazer aqui um drama”, afirmou Rui Rio.
Depois das repostas poliglotas, a conferência de imprensa acabou antes do tempo. A assessoria do PSD indicou que não existiriam mais perguntas, apesar de estarem previstas questões de pelo menos mais sete órgãos de comunicação social.
Mesmo com o prenúncio da saída — ou a necessidade de encontrar novos argumentos para justificar a permanência —, o deputado social-democrata Duarte Pacheco garantiu que Rui Rio “está legitimado para ser líder de partido”.
Antes, na reação ao resultado da CDU, Jerónimo de Sousa lembrou que “quando um homem perde os bens, perde pouco. Quando perde a dignidade, perde muito. Quando perder a coragem, perde tudo” — mas com António Costa firme no governo por mais quatro anos, Rui Rio não garante que vá andar a perder muito tempo por aqui.
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