A luta contra a malária, doença que além de África também está presente em vários países da América Latina e da Ásia, é uma das muitas vítimas colaterais da covid-19 e as consequências podem ser tão graves como voltar ao ponto em que se encontrava há 20 anos.
Pedro Alonso Fernández, um dos maiores especialistas mundiais em malária, que investiga há mais de 35 anos a doença, recorda numa entrevista à agência Efe que as doenças infecciosas, como a covid-19 ou a malária, não são uma coisa do século XIX, mas que o Ocidente se esqueceu disso, optando por concentrar-se nas doenças crónicas. Agora, está a pagar as consequências.
A ideia de que o que está a acontecer em África não atingirá os outros continentes é “uma miragem”, disse, recordando que a sida, outra doença infecciosa causada por um vírus, apareceu algures no centro deste continente, mas chegou a todos os cantos do mundo. E veio para ficar.
Devido a este retrocesso no combate à malária, provocado pelo covid-19, o especialista espera, num cenário mais pessimista, que o número de mortes por malária em África poderá duplicar para 750.000 ou 760.000 este ano.
“Este é um cenário pessimista, que é muito preocupante e nos levaria de volta ao ponto em que nos encontrávamos há mais de 20 anos”, sublinhou.
A maior preocupação de quem está nesta batalha é a interrupção dos testes rápidos para o diagnóstico da malária.
“Alguns dos principais produtores mundiais estão a transferir a sua capacidade de produzir diagnósticos para o covid-19, o que, numa questão de semanas, poderá constituir um grave problema de escassez geral”, disse.
Além disso, prosseguiu, há sinais de um aumento de casos de malária que podem estar relacionados com medidas de contenção e restrições à distribuição de mosquiteiros e campanhas de pulverização interna, o que pode ter um impacto terrível no controlo da malária.
“Foi por isso que a Organização Mundial de Saúde emitiu diretivas para continuar a distribuir mosquiteiros sem risco de propagação do coronavírus. Não podemos deixar uma grande parte da população desprotegida contra a malária, que é o grande risco que enfrentamos”, adiantou.
Sobre a reação da indústria, revelou que “60% de todos os testes utilizados [de deteção da malária] provêm de um fornecedor norte-americano que pretende transferir toda a sua produção para a covid-19.
“Se não tivermos acesso a estes testes, seria uma enorme catástrofe, pelo que estamos a negociar com eles e a explicar-lhes que este não é o momento de abandonar o diagnóstico da malária, que se for organizado com seis meses ou um ano de antecedência outros poderão aumentar a sua capacidade”, disse.
Sobre a vacina contra a malária, afirmou que a sua aplicação-piloto começou há um ano e já abrangeu 250.000 crianças de um plano de 350.000 por ano, durante cinco anos, em três países: Quénia, Gana e Maláui.
“Durante esse período, iremos recolher os dados e, esperemos, dentro de ano e meio, a OMS poderá considerar a possibilidade de os recomendar em grande escala”, referiu.
Mas ressalvou que, habitualmente, as vacinas têm uma eficácia de 80 ou 90% e de apenas 40% na vacina contra a malária, mas “a luta contra a malária é a soma de diferentes intervenções imperfeitas”.
“Nem as redes mosquiteiras são a solução perfeita, nem a pulverização intradomiciliária com inseticidas, mas foram feitos progressos quando conseguimos somar coisas que não são fantásticas em si mesmas, mas que, em conjunto, salvaram sete milhões de vidas em 10 anos”, declarou.
Em relação ao acesso à cloroquina e à hidroxicloroquina, utilizadas para a malária, mas que têm sido usadas experimentalmente contra a covid-19, o especialista recordou que, “como resultado do seu uso, e especialmente dos comentários favoráveis do Presidente dos Estados Unidos”, muitos países começaram a adquiri-las e a usá-las, embora sem provas suficientes da sua eficácia na prevenção ou no tratamento do novo coronavírus.
“Esta situação tem causado enormes tensões no mercado internacional e tem limitado o acesso a este produto. No caso da malária, são utilizados anualmente entre 13 e 14 milhões de tratamentos, e neste momento não estamos muito preocupados, mas se houvesse faltas, teríamos alternativas à base de artemisina”, adiantou.
E concluiu: “Espero que consigamos sair desta crise com pelo menos algumas lições aprendidas. O mundo ocidental deixou de lado as doenças infecciosas porque pensava que eram algo do século XIX, um assunto ultrapassado, mas se há apenas uma coisa no domínio da saúde capaz de representar um risco existencial para a humanidade, é uma doença infecciosa. Em três meses, um vírus deixou cinco mil milhões de pessoas em casa, causando uma catástrofe sanitária e económica global. A segunda lição é que temos de sair disto com mais igualdade e não com mais desigualdade, com esquemas mentais que ultrapassem as fronteiras e nos façam compreender que o que acontece noutra parte do mundo deve ser do nosso interesse”.
A nível global, segundo um balanço da agência de notícias AFP, a pandemia de covid-19 já provocou cerca de 267 mil mortos e infetou mais de 3,8 milhões de pessoas em 195 países e territórios. Cerca de 1,2 milhões de doentes foram considerados curados.
O número de mortos devido à covid-19 em África subiu hoje para 2.074, com mais de 54 mil casos da doença registados em 53 países, segundo as estatísticas mais recentes sobre a pandemia naquele continente.
A doença é transmitida por um novo coronavírus detetado no final de dezembro, em Wuhan, uma cidade do centro da China.
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