Balas e bolinhos

Tomás Albino Gomes
Tomás Albino Gomes

Levantei-me do sofá, passavam poucos minutos das 23h30. Vesti o casaco, peguei nas chaves e fui parado.

“Onde é que vais?”

“Comprar uns bolos, ali à Praça do Chile”, respondi com a naturalidade resultante de um hábito de pré-madrugada de aconchego do estômago.

Ela, que não é jornalista, relembrou-me do que poucas horas antes tinha escrito. Era óbvio, afinal de contas, não podia sair de casa. Os bolos tinham de vir até mim.

Paguei a um transeunte legal da noite, um funcionário da Uber Eats, e lá me chegaram as bolas de berlim, as jangadas e os mil folhas. Maravilhas da tecnologia e da capital, porque se estivesse na minha terra natal, não havia nem papo-seco que viesse ter comigo antes do padeiro.

Pela primeira vez, em alguns meses, fui à janela com aquele ímpeto de coscuvilhice de olhar a rua, ver se alguém se andava a portar mal. Lá fora, os passeios estavam desertos e mais escondidos, na sombra de um hotel de luzes apagadas, encerrado pela falta de turistas e clientes, que mandou os empregados para casa em lay off. A estrada está coberta de folhas amarelas, assim como os carros, o que dá a impressão que nada serpenteia aquele alcatrão há algum tempo, nem que ninguém mexe os carros de sítio. De repente, passa uma mala verde florescente às costas de um homem de mota, uma outra amarela, uma outra verde. Não há pessoas, não há cães, não há sequer ninguém a dormir na paragem de autocarro, seja isso uma boa ou má notícia.

Adormeci pouco depois da meia-noite com alguma curiosidade em saber como ia ser a noite dos outros. Quando acordei, hoje, descobri que tinha sido relativamente calma e cumpridora com as autoridades a registarem apenas 10 casos de irregularidades em todo o país, todos os casos resolvidos no momento sem nenhum prejuízo maior e com as pessoas a acatar as ordens.

Exceção, claro, para o tiroteio que ocorreu na Avenida da Liberdade, junto ao Hotel Tivoli, que pelo que hoje sabemos fez só barulho, tendo ficado para trás apenas as munições no chão para contar a história.

São as noites de novembro, como eram as de março e abril, em que do lado de fora da nossa porta é um outro mundo, silencioso e despovoado, onde moram os homens do lixo, dos bolinhos e das balas - e o novo coronavírus, claro.

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