“O grosso deste concerto são músicas de José Mário”, disse à agência Lusa Camané, que se referiu ao músico, que morreu há exatamente cinco anos, como “um professor”, com o qual trabalhou cerca de 20 anos. O fadista afirmou que José Mário Branco (1942-2019) o ajudou a construir a sua sonoridade fadista.

“Ele criou uma sonoridade para mim, mesmo nos fados tradicionais, no meu fado, ajudou-me a criar essa sonoridade”, disse, referindo as muitas músicas que José Mário Branco compôs para a sua voz.

No concerto na base do novo álbum, além dos fados que José Mário Branco compôs para si, Camané interpreta alguns temas do repertório do criador de “FMI”, como “Queixa das Almas Jovens Censuradas”, sobre poema de Natália Correia, que cantou pela primeira vez neste espetáculo. “É uma daquelas músicas que fazia parte da minha memória”, disse o fadista referindo que José Mário a trauteava muitas vezes.

Sobre o compositor, Camané afirmou: “Era uma pessoa fantástica, e um professor. O José Mário tem um percurso muito anterior [ao meu], uma obra musical extraordinária, e depois trabalhámos juntos praticamente 20 anos, em que os discos que eu gravei foram produzidos por ele, e eu tive essa sorte”.

“Aprender é a coisas mais importante neste percurso todo que eu fiz. Tive a sorte de passar pelas casas de fado […], nesses anos todos desde que era criança até que tinha trinta e tal anos, tive a sorte de ter cantado nas casas de fados e de aprender com os fadistas, com os músicos e com todos. Depois, quando saio e começo a gravar [discos], em 1995, eu tinha de saber transportar aquilo que é fado, que é a minha forma de estar, para os palcos, e o José Mário ajudou-me nisso tudo, nos discos e no palco”.

“Foi mais um momento de crescimento e aprendizagem com um grande músico. Eu sinto que o José Mário foi mais um professor que eu tive na vida”, enfatizou.

“José Mário Branco gostava de fado, e gostava do fado tradicional, o fado com aquele contexto e aquela estética em que ele acreditava. E eu também tinha essa vontade, também fazia parte de mim essa estética que o José Mário percebeu perfeitamente. E quando fazíamos o tradicional, os arranjos eram baseados na estética do fado”.

O alinhamento deste álbum inclui o Fado Menor do Porto, de José Joaquim Cavalheiro Jr., no qual Camané interpreta “Sopra Demais o Vento”, de Fernando Pessoa.

“Houve alguns preconceitos sobre o fado antes e depois do 25 de Abril de 1974, mas o José Mário sempre gostou de fado, já estava rendido a esta música. A forma como ele fazia os arranjos, queria que tivesse a estética exata do fado, as referências que ele tinha do fado, desde o Alfredo Marceneiro ao Carlos do Carmo, João Ferreira-Rosa, Maria Teresa de Noronha… Ele tinha um gosto pelo fado muito versátil, mas tinha de ser fado”.

Camané conheceu José Mário Branco na década de 1990, através de Carlos do Carmo (1939-2021) que os apresentou. E o músico começou a ir ouvi-lo a umas noites de fado que aconteciam no Teatro A Comuna, em Lisboa.

O fadista realçou a forma como José Mário Branco “agarrou nos fados tradicionais” e o ajudava a escolhê-los. “Ouvia-me a cantar um e outro fado tradicional e dava opinião dele sobre qual deles podia refletir melhor o registo emocional da poesia – uma série de coisas que me ensinou e que fui aprendendo com ele”.

Algumas músicas que José Mário compôs para si, “estão já registadas como Fados Tradicionais”, assinalou Camané.

À Lusa, Camané esclareceu: “A minha relação com o José Mário nunca foi política, foi uma relação de fado a ideia era a arte, a cultura. Se olharmos para a música do José Mário, está muito para além da política, ele era um músico extraordinário. A minha relação com ele era da música e do fado”.

Este álbum, que abre com palavras de José Mário Branco, retiradas do documentário “Fado Camané” (2014), de Bruno Almeida, inclui 18 temas com poemas de David Mourão-Ferreira, Alexandre O’Neill, Manuela de Freitas e do próprio José Mário Branco, todos musicados pelo criador de “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, e é apresentado hoje, às 18:30, no The Music Station, em Lisboa.

O álbum “Camané ao Vivo. Homenagem a José Mário Branco” chega ao mercado no próximo dia 29 e, do alinhamento, constam temas como “Guerra das Rosas” e “Ela Tinha Uma Amiga”, ambos da dupla Manuela de Freitas e José Mário Branco, “Porta Aberta” (Luís Viana/J.M.Branco), “A Meu Favor” (Alexandre O’Neill/J.M.Branco), “Chega-se a Este Ponto” e “Paraíso”, poemas de David Mourão-Ferreira, musicados por José Mário Branco.

A apresentação do álbum coincide com a passagem de cinco anos sobre a morte do autor de “Margem de Certa Maneira” e “Ser Solid(t)ário”, no mesmo dia em que um grupo de cidadãos entrega na Assembleia da República, em Lisboa, uma petição com cerca de 5.200 assinaturas solicitando a classificação da obra de José Mário Branco como de interesse nacional.

Um dos promotores da petição, o músico e produtor musical Vítor Sarmento, sublinhou à Lusa o “duplo simbolismo” do dia escolhido, por coincidir com o quinto aniversário da morte do cantautor e por decorrer no ano em que se comemoram os 50 anos do 25 de Abril.

José Mário Branco “tem uma obra inexcedível para além da musical”, enfatizou Vítor Sarmento, acrescentando que, para os subscritores da petição, “é essencial” a classificação de interesse nacional “à semelhança do que já aconteceu com a obra de José Afonso”.