Seríamos tentados, se tivéssemos vistas curtas e nos focássemos no aqui e no agora da tragédia, a dizer que a música não serve para nada quando há doentes, mortes, falhas no sistema de saúde, uma economia prestes a ruir. Seríamos, se para além das vistas curtas quiséssemos entrar na mais profunda das depressões, convencermo-nos de que não haverá futuro para além disto. Dizer que a música não é mais importante que todas essas coisas, aceita-se. Relegar a música para uma não-condição é que não é admissível. A música conforta-nos, dá-nos esperança em tempos conturbados – muita da melhor música foi escrita em tempos de dor, brotando dela para com ela acabar. Ao quinto dia de concertos, o EuFicoEmCasa voltou a confortar-nos na dificuldade.

Fugindo à regra de cantautores, fadistas e rappers, este dia teve uma particularidade: contou, em “palco”, com a sua primeira banda. Está bem, a banda é composta por uma só pessoa, Paulo Furtado, que anda há anos a dar-nos rock n' roll enquanto Legendary Tigerman. Mas ele, por si só, faz mais barulho – do bom – que muitos coletivos de vinte ou trinta marmanjos, todos eles equipados com o seu instrumentozinho. Tigerman é uma espécie de trolha, de faz-tudo: guitarra, voz, bateria, tudo certinho e ao pormenor. Ao mesmo tempo, é um enfermeiro, plenamente consciente de que o rock n' roll é uma vacina.

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Naquela meia hora, mesmo quem tem medo de agulhas não conseguiu deixar de esticar o braço, quiçá fechar a mão e erguer indicador e mínimo em oração ao Deus do rock, que é na verdade o Diabo. Ao seu lado, um tigre de porcelana decorado com luzes de Natal (decoração bizarra, e hilária, vinda de quem uma vez declarou Fuck Christnas, I Got the Blues). Na sua voz, uma rouquidão blasé, e temporária, provocada «pela emoção de não vos estar a ver». Sempre brincalhão, o Homem-Tigre. Mas também romântico: «É muito bonito ver tanta gente junta, para tentar colmatar toda esta solidão».

O músico, que por obra e graça do rock descobriu que tem “muitas canções que falam sobre estar em casa», transportou-nos brevemente para aquelas noites maravilhosas em que o vimos, em festivais, na Galeria Zé dos Bois, no Musicbox. Dedicou uma canção ao povo italiano, 'Life Ain't Enough For You', a qual gravou com uma das mais belas filhas dessa terra, Asia Argento. E ainda trouxe para junto de nós os fantasmas de Robert Johnson ('Me and the Devil Blues') e Eddie Cochran ('Twenty Flight Rock'), rematando com uma coisa que não poderemos fazer por uns tempos: 'Walkin' Downtown'. «O rock é uma coisa bonita». Pois é, e salva.

Salvos, também, todos os que assistiram à prestação de Rui Massena, maestro de tudo quanto toca. Neste caso, o piano, com o qual construiu 'Nós', dedicando-a a esse mesmo título. Nos seus dedos está guardado o segredo para a beatitude. A música vai subindo, apesar de – ou por causa de – um pronunciado eco, bombeia-nos o sangue. De repente, a luz apaga-se: ficamos só nós, ele, o piano, os dedos. A língua alumia-se, escreveria Herberto Hélder neste dia que também foi do poema. Somos levados para uma realidade paralela onde toda esta situação não passa de um filme em competição no MOTELX. E há um 'Amanhecer': «que seja mais tranquilo, que é de tranquilidade que precisamos». Massena, maestro até nas palavras. Um colosso.

A elevação da alma através da canção também foi feita pel'O Gajo, que acompanhado de uma viola campaniça (e que som bonito ela fazia!) encheu o éter de tons árabes, da tensão daquelas cordas, da dança muita em pátios de sés imaginadas. Com espaço para passearmos por uma 'Rua da Felicidade', que existe em Macau e onde reinava outrora a prostituição, o álcool, o jogo, «todas essas coisas que trazem felicidade a alguns». Pouco depois, Luís Severo não disse muito. Não valia a pena, justificou-se: «já tanta gente disse tanta coisa». Facto. Limitámo-nos, assim, a escutar e a ter saudades de canções como 'Domingo', 'Planície', 'Rapaz', 'Primavera' (que começou ontem), 'Acácia', 'Amor e Verdade' e 'Lábios de Vinho', que acabou a cappella.

Por opção ou obrigação, ao longo do festival muitos foram os músicos que cantaram – tudo ou parte – sem qualquer acompanhamento instrumental. Ana Bacalhau fê-lo em 'Leve Como Uma Pena', escrita por Jorge Cruz, e fê-lo com nota artística. Antes, pediu desculpa por se enganar à guitarra em 'Pensamos No Futuro Amanhã', e ainda foi buscar 'Seja Agora' aos Deolinda, por entre pedidos de uma reunião dos Lupanar. De Carolina Deslandes, a única a cappella foi um palavrão bem enfiado antes de cantar 'A Miúda Gosta', junto de Diogo Clemente, com quem partilha casa e filhos. Teve graça ver a dinâmica do casal; torna a performance humana, como o foi com Boss AC, que segundo Deslandes «previu isto tudo há milénios» com o clássico 'Baza Baza', vai para casa, casa.

Benjamim, ao piano, deu um concerto com um alinhamento escolhido pelos fãs no... Instagram, de véspera. 'Madrugada', 'Wolkswagen' e 'Dança com os Tubarões' foram algumas das escolhidas, num concerto onde a rede voltou a fazer das suas. Se há coisa que este festival nos ensinou foi a apoiar os músicos portugueses, quanto mais não seja para ver se arranjam melhor net. Jorge Benvinda foi outro exemplo disso; tal como havia acontecido a Fábia Rebordão, um ruído de fundo prejudicou as canções novas que foi mostrando.

Cálculo, rapper barcelense que trouxe ao Instagram um boom bap veraneante, contou com dois companheiros: um camaleão e um guaxinim, a lembrar-nos de que devemos lavar as mãos. E também debitou um dos melhores versos de sempre: Oops, I did it again, pareço a Britney. Valas, igualmente rapper, abriu a tarde-noite de concertos com 'Estradas no Céu'. Joana Almeida arrancou com um 'Fado dos Namorados', escrito pelos Átoa, e Héber Marques mostrou religião ('Não Há Nome Como o Teu') e os seus dois adoráveis rebentos (a filha pareceu ter futuro na voz). A fechar a noite, Moullinex (que durante o concerto de Tigerman fez dos melhores comentários do dia: will you be my quarantine?) fez dançar q.b., através de uma escolha detalhada de canções abana-corpos como 'Ring My Bell', de Anita Ward.

O último dia do Festival EuFicoEmCasa realiza-se este domingo, com espetáculos de Fausto Bordalo Dias, João Só, Júlio Resende, Selma Uamusse, Best Youth, Ana Moura e David Carreira, entre outros.

Acompanhe o Festival EuFicoEmCasa no SAPO24

Dia 17: Boss AC relembrou-nos o que é a humanidade

Dia 18: E quando eu digo “fico”, vocês dizem “em casa”

Dia 19: A António Zambujo bastou-lhe cantar

Dia 20: O que Pedro Abrunhosa ensinou, Cláudia Pascoal animou