E de repente era o nada. A morte de Kurt Cobain não significou apenas o fim prematuro dos Nirvana; foi, também, uma machadada naquele sonho inicial, de que o underground poderia – através de uma conjugação de factores, entre eles público, capital e interesse mediático, com uma pitada de sorte à mistura – suplantar o que o mainstream vinha produzindo há décadas, trazer à baila o modo independente de fazer em vez de entregar a carreira, e a vida, às grandes corporações. “Nevermind” chegou ao número um das tabelas, destronou a máquina Michael Jackson, e Gina Arnold gritou vitória. Mas, como se veio a perceber, mesmo durante o auge do grunge, foi uma vitória amarga: não foi o underground que superou o mainstream, foi o mainstream que se apossou do underground.
Aquilo que as bandas punk independentes haviam construído nos anos 80 – uma base numerosa de fãs, uma rede de contactos invejável, uma cadeia de distribuição capaz de chegar aos vários estados norte-americanos e até além-fronteiras – era demasiado apelativo para que as grandes editoras se limitassem a ficar de braços cruzados a observar, com um leve desdém, aquilo que se passava. Queriam uma parte do filão, claro. E o underground entregou-o de bandeja, porque o chamamento, de poder chegar a mais gente, de poder viver exclusivamente da música, era mais forte. «Vi muitos amigos e conhecidos a transformar as suas bandas, outrora algo que faziam por paixão, em pequenos negócios», contou Steve Albini à fanzine “Punk Planet”, citado em “Our Band Could Be Your Life”. «Quando o fizeram, passaram a odiar as suas bandas da mesma forma que eu odiava o meu emprego: porque era uma obrigação».
O final dos anos 80 e início dos anos 90, mais ou menos desde o primeiro single dos Mudhoney até ao momento em que “Nevermind” chegou a número um, foi o melhor período para se ser uma banda independente nos Estados Unidos. A partir daí, tudo se desmoronou: onde antes havia cooperação, passou a existir competitividade. Onde antes existia um núcleo fechado de amigos, agora havia, à falta de melhor frase, vários cães para muitos ossos – dúzias de bandas recém-formadas cujo único objetivo era o de comer da malga que as majors, como se de uma nova febre do ouro se tratasse, ia oferecendo a gente que soava minimamente a grunge ou que tinha algum tipo de conexão com os Nirvana. E isso, como é lógico, provocou cisões, levando inevitavelmente à morte do sonho e à morte do grunge enquanto fenómeno.
As rádios universitárias, que tinham tido um papel fundamental na disseminação do chamado rock alternativo, eram agora alvo de incentivos financeiros por parte das majors. O que dantes era um terreno fértil para a criatividade e para o experimentar era agora formatado, colonizado pelos departamentos de marketing das grandes editoras. Mesmo as mais pequenas haviam sido engolidas, e as que não o foram sofreram: a caça aos “novos Nirvana” levou a que as editoras independentes corressem mais riscos na promoção dos seus artistas, já que de um momento para o outro uma major poderia chegar-se à frente com um contrato milionário e beneficiar daquilo que tinha sido um trabalho extremamente árduo. Houve até artistas que assinaram por editoras independentes com o sonho de acabarem, um dia, numa major. O resultado? A morte não só de Cobain ou do sonho, mas, por algum tempo, de todo o underground.
Ascensão e Queda
Em “Capitalist Realism”, Mark Fisher argumenta que a morte de Cobain «confirmou a derrota e a incorporação dos ideais utópicos e prometeicos do rock», na medida em que a revolução que o rock prometia foi co-optada precisamente pela máquina que combatia (e que, como Zeus, não teve pudor em o prender a uma pedra para lhe devorar o fígado). O que os Nirvana trouxeram de original ao mainstream depressa se esfumou por entre as dezenas de cópias que se lhes seguiram. «Depois dos Nirvana, a música mainstream caiu a pique, regressando ao seu nível padrão de falta de originalidade, sendo o grunge só mais uma maneira de comercializar rock desinteressante vindo das grandes editoras», escreve Kim Gordon em “A Miúda da Banda”. E não apenas o “rock”, isto é, a sonoridade. A maneira de vestir – calças rasgadas, camisas de flanela, Doc Martens – foi igualmente co-optada pelas grandes marcas e estilistas, que transformaram trapos velhos de um dólar em “peças únicas” de noventa dólares (culminando num especial da “Vogue” sobre “moda grunge”). E nem o espírito escapou: um anúncio a um modelo da Subaru, em 1992, proclama alto e bom som “Este carro é tipo punk rock!”.
O underground tinha sido um espaço seguro para toda a espécie de freaks e geeks cujos gostos, ideais e identidade não passavam por aquela que era vendida, diariamente, nos jornais, rádios e televisões de maior alcance. A ideia de que se podia gravar um disco e lançá-lo fora do circuito tradicional era, por isso, bastante apelativa, o que levou a cultura faça-você-mesmo a crescer, e por conseguinte a música alternativa. Quando este modo de produção chegou ao mainstream, a pessoas que grosso modo não tinham essa necessidade de afirmação, as coisas mudaram. «Não tinham conhecimento da história e das bases de todo o movimento [indie], e não queriam procurar saber. Outrora refúgio para pensadores independentes, a cena estava agora repleta de atletas e meninas de claque, travestidos de underground», aponta Michael Azerrad em “Our Band Could Be Your Life”.
Mesmo em 1993, ainda antes da morte de Cobain, já havia quem entendesse que o grunge, enquanto movimento, estava a definhar. Num artigo do “New York Times” datado de fevereiro desse ano, Jon Pareles escreveu que, «tal qual o punk e o psicadelismo, o rock alternativo descobriu que não poderia derrubar o capitalismo, sob a forma de empresas de entretenimento gigantes». Peter Kobel, para a “Entertainment Weekly” e no mesmo ano, afirmou que «desde que os média descobriram os hippies, nos anos 60, que não se via tamanha exploração de uma subcultura». A “Geração X”, que tinha nos Nirvana a sua banda de eleição, poderia ser para muitos “apática”; mas agora era também vista como um mercado extremamente potencial. Nem Douglas Coupland, autor do romance que popularizou o termo “Geração X”, escapou, tendo sido convidado – a troco de largos milhares de dólares – a desempenhar o papel de consultor de marketing dessa mesma geração.
Porém, há também quem argumente que a queda do grunge era inevitável. Para Jason Heller, num artigo escrito para o “The A.V. Club”, em 2013, a morte do movimento deu-se com o lançamento de “In Utero”, o derradeiro álbum dos Nirvana – e o mesmo em que Kurt Cobain canta A raiva adolescente deu dividendos / E agora estou velho e aborrecido. «O crescimento do pós-grunge, após a morte de Cobain, em 1994, nada tem a ver com a sua ausência», disse. «O pós-grunge não se apressou a preencher o vazio que ele deixou, estava lá desde o início». Por “pós-grunge”, entenda-se todas aquelas bandas que, como se de mímica se tratasse, copiavam as dinâmicas sonoras não só dos Nirvana, mas também dos Soundgarden ou dos Pearl Jam, quase como mímica; o termo começou a ser utilizado pela imprensa musical, na esmagadora maioria de forma pejorativa, ainda em 1991 e 1992, quando artistas como os Candlebox começaram a surgir.
Copia e cola
De todas as bandas que brotaram na ressaca de “Nevermind”, os Candlebox foram ao mesmo tempo uma das mais populares e uma das mais odiadas – e, posteriormente, uma das mais esquecidas pelo grande público. Apesar de serem nativos de Seattle, eram encarados, talvez por serem mais novos, com alguma desconfiança por parte de quem havia construído a cena local. «Os fãs de Seattle adoravam-os», lembra o jornalista e promotor Jeff Gilbert em “Everybody Loves Our Town”. «Mas eram desprezados pelos jornalistas rock locais, e até pelas bandas grunge já estabelecidas. Chegaram no final da cena grunge, e parecia que estavam a querer copiar tudo o que veio antes».
O facto de terem assinado pela Maverick, editora fundada em 1992 por Madonna, não ajudou a sua reputação. «Deram-nos na cabeça por isso. Toda a gente pensava que tínhamos dormido com ela», aponta o vocalista Kevin Martin no mesmo livro. «O rótulo grunge foi, para nós, um atraso de vida. Diziam que éramos “tipo grunge”». Não obstante, o seu álbum de estreia, homónimo, foi um enorme sucesso. Editado em 1993, alcançou o estatuto de quádrupla platina nos Estados Unidos, e os vídeos para 'Change', 'Far Behind' e 'You' estiveram em alta rotação na MTV, apesar de os críticos, como Robert Christgau, se referirem aos Candlebox como «vampiros da cena».
Nem Wayne Coyne, dos Flaming Lips (que beneficiaram com a “explosão” alternativa, sobretudo a partir do momento em que 'She Don't Use Jelly' começou a passar nas rádios), que fizeram as primeiras partes de uma digressão dos Candlebox, tem coisas boas para dizer sobre a banda. «Não foram um prego no caixão do grunge. Para mim, foram o caixão», refere. «Convidaram-nos [para fazer a digressão] porque pensavam que, dessa forma, soariam mais autênticos ou mais fixes. Não que nós sejamos fixes ou autênticos; foi do género, 'Somos os Candlebox, podem pensar que somos uma merda, mas nós gostamos dos Flaming Lips. Isso não nos faz parecer fixes?'».
No Reino Unido, ao mesmo tempo que se começava a desenhar uma reação contra o grunge, os Bush pegavam na blueprint dos Nirvana e alcançavam um grau de sucesso que muitas outras bandas de Seattle não tinham. O seu primeiro álbum, “Sixteen Stone”, saiu em 1994, com o vocalista Gavin Rossdale, tal como de certa forma Kurt Cobain, a beneficiar – e muito – do facto de ser uma estrela rock com rosto de modelo. Dave Grohl era uma das muitas pessoas que os odiavam, levando Rossdale a defender-se, mais tarde, em entrevista à “Rolling Stone”: «Há muita gente que quer defender o património do Kurt Cobain, mas o que fazemos não é crime», disse. «Espero que haja algo dos Nirvana nos Bush, tal como havia muito dos Pixies nos Nirvana. Podemos recorrer às mesmas dinâmicas, mas eu sei que tenho a minha própria cena».
Não obstante, quando “Razorblade Suitcase”, o segundo álbum dos Bush, saiu em 1996, houve quem torcesse ainda mais o nariz – afinal, os Bush tinham contratado Steve Albini para produzir o disco, tal como os Nirvana fizeram com “In Utero” (não esquecer que esta foi uma era em que Steve Albini, ex-maestro dos Big Black e defensor acérrimo do underground, era encarado como uma das pessoas mais “autênticas” do meio). «Provavelmente tenho mais críticos [da nossa música] que gente que não gosta de nós, mas mesmo que paremos amanhã, há 3 milhões de pessoas que compraram este disco», afirmou Rossdale. «As pessoas sentem coisas – mesmo que seja apenas uma frase, sentem uma ligação com ela. Pelo que talvez haja algo real em nós».
No seio da aversão poderá estar alguma inveja, naturalmente, mas também um forte sentimento de injustiça. «Após a morte do Kurt, os média diziam que o grunge estava morto, juntamente com ele», lembra Ron Rudzitis, vocalista dos Love Battery, em “Everybody Loves Our Town”. «E, no entanto, as bandas que mais passavam na MTV eram gente como os Bush, que copiavam abertamente os Nirvana. Como é que pode haver bandas como os Bush, que não passam de uns aspirantes a Nirvana, ter toda esta exposição, quando as bandas que realmente deram origem a essa sonoridade andavam a comer pó?».
Na Austrália, eram os Silverchair quem escreviam o grunge por linhas tortas. “Frogstomp”, o seu álbum de estreia, lançado quando os membros da banda estavam ainda na adolescência, chegou ao primeiro lugar das tabelas de vendas do seu país e foi, como se pode calcular, desfavoravelmente comparado pela imprensa especializada aos grandes grupos de Seattle – uma piada da altura descrevia-os como «não Soundgarden, mas kindergarden», num trocadilho com a palavra inglesa para “jardim de infância”. E outra das bandas mais populares dessa era, os Stone Temple Pilots, não eram menos odiados que os seus congéneres britânicos e australianos. «Havia muitas bandas da tanga a tentar entrar no autocarro do grunge que eram uma piada», afirma Mike Mongrain, baterista dos TAD. «Sempre odiei bandas como os Stone Temple Pilots e os Bush. Captavam a essência daquilo que se estava a passar, pelo menos a sonoridade, mas faltava-lhes algo. Algo que era irónico e humorístico. Estavam a tentar ser músicos rock a sério, roubando a sonoridade [grunge] mas faltando-lhes a ironia».
“Core”, o álbum de estreia dos Stone Temple Pilots, foi um sucesso imediato: atingiu o primeiro lugar das tabelas de vendas, vendeu milhões de cópias e viu um dos seus singles, 'Plush', conquistar em 1994 um Prémio Grammy para Melhor Performance Hard Rock. O que, para os críticos da altura, nada interessava, sendo muitas as comparações pouco abonatórias com os Alice In Chains e os Pearl Jam. Para os nativos de Seattle (os Stone Temple Pilots eram de San Diego), muito menos. «Lembro-me de o Mark [Arm] dizer que [os Mudhoney] não tinham tido sucesso a sério, porque não havia uma canção a soar aos Mudhoney no primeiro álbum dos Stone Temple Pilots», brinca Jeff Smith, dos Mr. Epp and the Calculations. «Havia uma canção a soar a Alice In Chains, uma canção a soar a Nirvana. O disco é quase como que um best of de Seattle».
Hoje em dia, o legado dos Stone Temple Pilots é encarado com outros olhos, não só porque o grupo procurou desviar-se do grunge e beber de outras sonoridades, mas também pela capacidade vocal de Scott Weiland, visto agora como um dos melhores vocalistas dos anos 90. Em 2008, James Montgomery escreveu um artigo para a MTV no qual afirmou que os críticos – nos quais se inclui – trataram os Stone Temple Pilots «de forma injusta». E Billy Corgan, que não lhes poupou críticas na altura, apelidou Weiland como «uma das grandes vozes da nossa geração», ao lado de Cobain e de Layne Staley.
Pós-pós-grunge
Em “Endtroducing.....”, álbum de 1996 construído inteiramente à base de samples (e um dos muitos que marcaram a história da música eletrónica), DJ Shadow não teve contemplações: um dos temas do alinhamento, traduzido de forma literal, tem o título de porque é que o hip-hop não presta em '96. O produtor poderia muito bem estar a referir-se, da mesma forma, ao panorama rock desse ano, especificamente ao grunge. Os Nirvana tinham acabado; os Pearl Jam, que tinham começado uma guerra com a Ticketmaster, mal tocavam nos Estados Unidos; Layne Staley havia-se definitivamente perdido para a heroína; e os Soundgarden estavam a um ano de colocar um ponto final na sua atividade.
O pós-grunge depressa deu origem a bandas cujo único talento era o da pilhagem daquilo que veio antes, encaixotado em tons pop de forma a permitir uma melhor comercialização. É o caso de dois dos grupos mais detestados desde que o rock é rock: os Creed, cujo cristianismo nunca calhou bem num género que soa melhor quando vende a alma ao diabo, e os Nickelback, que todos os anos encabeçam a lista das “piores bandas de sempre”, seja lá onde ela for elencada. Num artigo para o “Consequence of Sound”, Sasha Geffen escreveu em 2013 que o período de viragem do milénio foi um período de «ódio», quando as bandas pós-grunge «continuaram a encabeçar as tabelas de vendas de música alternativa, ao passo que as pessoas que sentiam ser mais conhecedoras do que o grande público continuaram a odiá-las com todas as forças».
Geffen, que descobriu os Nirvana, os Pearl Jam e todas essas bandas consideradas “aceitáveis” através dos Nickelback, os quais defendeu no mesmo artigo, refere que o pós-grunge «sofreu com uma sobrepopulação de fortes compositores pop», apontando o dedo às produções «lamechas» e «na moda» que eram obrigados a seguir. «A maior parte dos êxitos desse período começava com um arpejo de guitarra. Às vezes, havia duas, uma elétrica e uma acústica, que harmonizavam uma com a outra […] Havia baterias que envergonhavam o Phil Collins. Graças à 'Dumb' [dos Nirvana], havia violoncelos. Para elitistas musicais, isto era o objeto de ódio perfeito: estavam por todo o lado, eram constantes, era fácil apontá-los como péssimos».
O grunge, e o rock alternativo em geral, tinham abalado os alicerces da música popular e da indústria musical, mas não eram movimentos sustentáveis. As bandas que se lhes seguiram e que lhes imitaram os trajeitos eram tudo menos confrontacionais, correndo poucos riscos e procurando apenas a glória do sucesso. «É tudo politicamente correto; não se pode ser demasiado agressivo ou demasiado suave», afirmou Chris Cornell à altura, citado em “Dark Black And Blue”.
No mesmo livro, o guitarrista Zakk Wylde conta uma história curiosa, argumentando que bandas como os Creed foram populares porque, no campo rock, pouco mais havia. «Fui a casa do meu amigo Eric, e no leitor de CDs dele estava o disco dos Creed. Viro-me para ele e digo: “então és tu um dos idiotas que anda a comprar isto!”. E ele responde, “Os Alice In Chains e os Soundgarden já não existem; para além da tua banda, quão mais posso ouvir os discos dos Led Zeppelin e dos Black Sabbath? Não vou ouvir DMX e Dr. Dre, ao menos os Creed tocam guitarra”. É do género, se não há Coca Cola, dêem-me algo parecido. Oferta e procura».
Os resistentes
Em 1996, apesar das palavras de DJ Shadow (ou talvez tenha sido por isso que elas surgiram), o hip-hop começava a suplantar o rock no que aos gostos musicais de quem faz as modas – os adolescentes – diz respeito. Assim como o grunge, também o gangsta rap, que “rebentou” com os N.W.A. em 1989 e se tornou num fenómeno global através de nomes como Tupac Shakur, foi rapidamente co-optado pelo mesmo sistema. Sem saberem para onde ir, os fãs de rock viram-se forçados a aceitar um simulacro do que é “alternativo”, na figura de artistas como os Creed.
“My Brother the Cow”, o quarto álbum de estúdio dos Mudhoney, lançado em 1995, é ao mesmo tempo elegia ao grunge e sátira do que se lhe seguiu. «Fala não só sobre a morte do Kurt, mas sobre o que acontece a uma cena musical quando é comercializada em massa, quando é adquirida pelas grandes corporações, quando muitos dos seus membros compram a ideia das grandes corporações, quando a música se corrompe, os amigos ficam famosos e se esquecem de onde vêm», explica David Katznelson, da Warner Bros., em “Everybody Loves Our Town”. «É uma visão muito, muito sombria da tentativa de uma banda em manter-se consistente com os seus princípios, enquanto o mundo à sua volta mudou».
Alguns fogachos daquilo que poderia ser o circuito alternativo mantiveram-se, porém, acesos. Mesmo a cena britpop, que surgiu em reação ao grunge norte-americano, se pode enquadrar nessa ideia: já que o grunge era mainstream, algo feito fora dos seus padrões seria inevitavelmente alternativo. «Se o punk queria livrar-se dos hippies, eu quero livrar-me do grunge», afirmou Damon Albarn em 1993. Procurando preencher o vazio criado na cena independente britânica após o desaparecimento dos Stone Roses, bandas como os Blur, os Elastica, os Suede e os Oasis olharam, não para fora, mas para a sua própria identidade enquanto cidadãos de uma potência cultural. «Ocorreu-se-nos que as pessoas estavam muito interessadas em música norte-americana, e que devia haver algum manifesto pelo regresso da identidade britânica», explica Justine Frischmann em “The Last Party”, livro sobre a britpop da autoria de John Harris. Ainda assim, um dos maiores sucessos de uma banda britânica deste período nos Estados Unidos foi... 'Creep', dos Radiohead, que poderia ter sido escrita pelos Nirvana.
Nos Estados Unidos, a corrida ao ouro deixou incólumes algumas das editoras independentes que, pós-Nirvana, viram reconhecidos os frutos do seu labor sem necessitarem de fazer grandes cedências. É o caso, por exemplo, da Matador, que criou um nicho considerável de mercado através de artistas como os Pavement, Yo La Tengo, Liz Phair, Superchunk, Guided By Voices ou Cat Power, e que ainda hoje é uma das mais acarinhadas labels da comunidade melómana. A Dischord, de Ian MacKaye, nunca se vendeu, e os “seus” Fugazi mantiveram o mesmo estatuto de culto que tinham até antes de os Nirvana serem famosos. A Touch & Go sobreviveu com a ajuda dos Jesus Lizard, Urge Overkill ou o novo projeto de Steve Albini, os Shellac (a banda residente do NOS Primavera Sound). A Kill Rock Stars encontrou o seu espaço, graças às Sleater-Kinney, que mantiveram içada a bandeira riot grrrl, e a Elliott Smith. A Epitaph afirmou-se como uma das grandes editoras dos anos 90 após anos de labuta punk rock, assim que a sonoridade grunge cedeu algum espaço ao pop punk de bandas como os Offspring. Para não falar do resto, como aponta Kim Gordon em “A Miúda da Banda”: «O underground, no entanto, encontrava-se vivo e em crescimento. A música estava, uma vez mais, a ficar interessante, graças a bandas noise como os Wolf Eyes e os Lightning Bolt, havendo cada vez mais mulheres a aparecerem naquilo que, antes, era uma cena unicamente povoada por homens colecionadores de discos».
O fim da história
Cena, movimento, ideal, moda. O grunge teve muitas facetas, mas poder-se-á argumentar que nunca foi, ao contrário daquilo que possa parecer, um género musical por si só. «Foi uma forma de publicitar bandas punk e hard rock que cresceram com os discos dos Black Sabbath do pai e as compilações de ABBA da mãe», apontou cinicamente Doug McCausland num artigo para a “Alternative Nation”. Já Mark Arm, em “Everybody Loves Our Town”, prefere não dizer o que é o grunge – que, repita-se uma e outra vez, era um termo que as bandas de Seattle detestavam –, mas salienta: «Odeio quando as pessoas dizem que um género musical morreu. É uma noção idiota. É encarar a música como uma moda. Não está morto enquanto ainda houver gente a ouvi-lo ou a escrever canções nesse estilo».
Aquilo que o grunge foi, isso sim, foi o catalisador para que um grupo cada vez maior de melómanos pudesse afirmar, sem mentir, que os seus gostos se encontram espalhados por diversas correntes musicais, presentes e passadas. Quando Kurt Cobain vestia t-shirts dos Scratch Acid ou de Daniel Johnston, não era (apenas) para se manter credível junto dos seus pares: era para dar o mundo a conhecê-los. «O sucesso dos Nirvana trouxe o indie rock para o mainstream. Fez com que fosse mais fácil, para as bandas independentes com orçamentos baixos, gravar discos e andar em digressão», diz Dana Hatch, dos Cheater Slicks, em “I Found My Friends”. Hoje em dia, uma banda com poucas centenas de plays no Spotify pode partilhar o palco de um grande festival com uma reluzente e majestosa estrela pop – e ninguém acha isso bizarro. Esse sucesso, continua Dana, «deu aos fãs de rock mainstream pontos de referência para música mais estranha».
Há anos que a conversa tem sido a mesma, ignorando os supracitados comentários de Mark Arm: o rock está morto. Daí que muitos encarem o grunge como a última grande cena rock, e como uma das mais importantes da história, até por ter conseguido transformar por completo a cidade de Seattle, que não mais foi um mero ponto no noroeste dos Estados Unidos. «Vai ser visto como um período de libertação para o rock n' roll», diz Bruce Pavitt em “Grunge Is Dead”. Passados 30 anos desde a “explosão”, nem mesmo quem a viveu mudou o seu modo de estar na vida e na arte, como conta Sean Kinney, dos Alice In Chains: «Quando estou em Seattle, vejo os tipos dos Soundgarden, encontro os dos Pearl Jam. Ninguém se sente afetado pelo que aconteceu. Nunca houve competição».
Claro que a promessa de que o rock alternativo poderia criar um mundo melhor desapareceu por completo – mas o mesmo é válido para qualquer outro género musical, até para o agora dominante hip-hop, que lentamente deixa de ser o som das ruas para passar a ser o do TikTok. Como refere Michael Azerrad em “Our Band Could Be Your Life”, a propagada “revolução” foi, de certa forma, bem sucedida - «mas, como se veio a perceber, a luta tinha muito mais graça que a vitória». Quando os Nirvana entraram para o Rock and Roll Hall of Fame, em 2014, Michael Stipe afirmou que o grupo constituiu um caso raro, já que conseguiu «integrar e definir um período da História». E rematou com esta frase: «Não é só música pop, é muito mais abrangente do que isso». O que é válido para os Nirvana é válido para todo o grunge, motivo pelo qual o movimento ainda merece atenções, tantas décadas depois. Enquanto houver alguém que dele precise, o riff – a base para qualquer sonho e a primeira pedra de qualquer mito – ainda por aí andará.
Ao longo de 2021, o SAPO24 publicou uma série de artigos focados no grunge, fenómeno e género musical que atingiu o seu apogeu há precisamente trinta anos: “1991: E Tudo o Grunge Mudou”. Recorde esta viagem.
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