Antes de cuspir no ecrã do computador, ou lançar uma praga bíblica à minha pessoa, queira ter a paciência de ler o que segue.
Quando voltei para Portugal, em 1992, depois de uma longa tournée pelo mundo e arredores, era Cavaco primeiro-ministro. Graças aos biliões de fundos que entravam diariamente no país, vivia-se num período de euforia e gastança nunca visto. Mal reconheci o país macambúzio e miserabilista que tinha deixado. Embora os biliões fossem prodigamente gastos em tudo menos no que seria prudente gastá-los, era difícil distinguir se a abundância consumista em que se vivia era uso supérfluo ou gestão generosa.
Cavaco e a turma que liderava distribuíam as verbas com prodigalidade – inclusive entre eles, mas isso também não se percebia – e toda a gente estava feliz em grandes almoçaradas, a construir toda a espécie de mamarrachos de que precisávamos ou não precisávamos, e a inventar maneiras de estofar os bolsos de notas.
A única voz gritante contra Cavaco era o “Independente” mas, como as críticas eram sobretudo para o facto de ele ser piroso e provinciano, considerei que se tratava de uma sobranceria de classe; os “meninos bem” sentiam-se incomodados com o poder e a arrogância de um zé ninguém chegado ao poder porque queria fazer a rodagem do carrito classe média baixa.
Quando Cavaco caiu, enredado num fait divers que só a sua teimosia podia ter provocado (o caso das portagens na ponte 25 de Abril, lembram-se?), já tinha perdido muito da aura de bom administrador e economista competente. Mas ninguém pensava voltar a vê-lo e, continuando a prodigalidade europeia nas mãos do beato Guterres, cheio de falinhas mansas, pouco interessava o que viesse a acontecer ao caprichoso e casmurro Cavaco.
Nunca tive dele uma grande impressão pessoal. Os discursos eram de uma falta de imaginação e inteligência totais. Pareciam leituras académicas de um curso de Contabilista Oficial. E, afinal de contas, um tipo que estuda em York, na Grã Bretanha, e nem sequer aprendeu a fingir algum sense of humor ou a usar casacos de tweed, só podia ser um engulho. A aparência salazarenta (aqueles fatinhos e gravatas...) e a postura empertigada, estilo vendedor fora de moda, mostravam uma cabecinha preconceituosa e conservadora.
Estou a ser superficial? Talvez. Mas não esqueçamos as palavras do grande filósofo social Óscar Wilde: “Só as pessoas extremamente superficiais não se preocupam com a aparência.” É que a aparência, sendo uma decisão voluntária do portador, mostra a maneira como ele se quer mostrar ao mundo. Ser baixo, ter acne juvenil ou maus dentes são desgraças que nascem connosco; agora, vestirmo-nos como um manequim de saldos da Rua dos Fanqueiros e trazer a tiracolo uma esposa desengonçada e “pouca coisa” já são decisões nossas, que nos podem ser cobradas.
Adiante. A volta gloriosa de Cavaco Silva como Presidente da República foi uma desagradável surpresa, a qual tive o senso de não votar. (Na primeira presidência optei por Manuel Alegre pois, embora o achasse um saco de vento, não pensava que fosse preciso mais do que isso para um cargo sem grandes poderes, e achava que ele ia ficar bem a declamar poemas bacocos do alto da varanda de Belém, com aquela voz tonitruante. Faria melhor figura junto dos congéneres estrangeiros, que era o que se esperava dum PR. Na segunda presidência, o meu desespero era tal que votei no Coelho da Madeira.)
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Como agora sabemos, Cavaco revelou-se um presidente sem flexibilidade mental (o tal sense of humor sempre serve para alguma coisa, não é?), sem “ginga” para rodopiar entre os vários interesses e grupos de pressão que se aninham no poder. Pior, apoiou o seu ex-partido despudoradamente – é suposto que os presidentes o façam com decoro – e agarrou-se às suas ideias económicas como uma lapa, sem a mínima percepção do mal que tinha feito ao país e do que poderia fazer para o atenuar.
Pior ainda: verificou-se, sem que os tribunais o conseguissem provar, que os homens que governaram com Cavaco constituíam, na sua maioria, uma associação com actividades que a justiça considerou suspeitas em vários casos, e que lançou dúvidas sobre a gestão da coisa pública para lá do que o pudor permite dizer.
Teorias existem, e com indícios, que era ele o chefe dessa turma. São apenas indícios, não tão convincentes como os que agora afectam outros ex-senhores do país. Não são provas, como dizem os advogados. Mas é impossível que ele não soubesse o que se estava a passar. Ao filho dum dono de posto de gasolina no Algarve já seria difícil não perceber as negociatas, mas a um economista masterizado em York, e mesmo sem ter aprendido a escolher as gravatas, era impensável. Tanto que, ao que se vê, e entra pelos olhos adentro, beneficiou com operações nunca muito bem explicadas – e teve a arrogância de não sentir necessidade de as explicar, alegando uma "dupla honestidade" que, simples ou múltipla, todos somos obrigados a esclarecer.
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Mas foi na segunda presidência que o homem que nunca se engana mostrou realmente como nos enganamos na escolha. Logo pelo discurso de aceitação, a primeira vez na História da Democracia Universal em que um vencedor não diz graciosamente que vai ser o pai de todos, amigos e inimigos, e esquecer as diferenças.
Creio que esse discurso foi o meu “momento Cavaco”, a altura em que caiu a ficha.
Foi também quando percebi que, nos 42 anos desta República, 20 anos, metade, são “anos Cavaco”.
Qual Mário Soares, qual quê!
Soares pode ter manobrado eficientemente para termos uma democracia, pode ter representado durante muito tempo a bonomia e a boa disposição do espírito republicano; mas todos os anos somados, não chega ao tempo em campo do homem de Boliqueime.
Nunca pensei que um Presidente desta amada República pudesse alguma vez ser comparado ao incomparável Américo de Deus, na trapalhice e na incompetência asinina. Nunca pensei que o cargo mais alto da nação pudesse ser tão rebaixado ao ponto de se estabelecerem comparações entre um presidente empurrado por uma ditadura por ser burro e inofensivo, e um presidente votado livremente pelos cidadãos.
Até ao fim – e o fim está à vista, mas ainda não chegou – Cavaco Silva manteve-se impávido por vinte anos de incompetência, em que nem os objectivos que traçou para si conseguiu atingir.
Não me digam que não é um caso interessante.
Este texto faz parte dum conjunto de seis testemunhos pessoais de jornalistas que escolheram um momento definidor do que foi, para eles, o político Cavaco Silva. Leia também:
#1: As lições de uma ponte, por Pedro Rolo Duarte
#2: Era uma vez o Cavaco, por Márcio Candoso
#3: A 'trisneta' do Cavaco, por Diana Ralha
#4: A primeira noite de Cavaco SIlva no ecrã, por Francisco Sena Santos
#5: Cavaco Silva em cinco actos, por Pedro Fonseca
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