A emoção era visível. Ao lado de Ivanka Trump, filha do presidente americano, e no meio de dignitários de Washington DC, Carryn Owens, viúva do “navy seal” William ‘Ryan’ Owens, ouviu a homenagem de Trump no discurso ao Congresso dos Estados Unidos da América (EUA). As referências ao oficial morto em combate, perto do final do discurso, motivaram uma longa ovação dos congressistas.
“O Ryan morreu como viveu: um guerreiro e um herói - lutando contra o terrorismo e garantindo a segurança da nossa nação”, disse o presidente americano. Depois, as palavras deram lugar aos aplausos dos congressistas de ambos os partidos.
“Acabei de falar com o general [Jim] Mattis que reconfirmou, e cito, que ‘o Ryan fez parte de um raid muito bem-sucedido que gerou grandes quantidades de informação vital que vai levar a muitas mais vitórias no futuro contra os nossos inimigos’”, disse ainda Donald Trump.
"O legado do Ryan está gravado na eternidade. #EspíritoAmericano".
Os aplausos emudeciam as palavras que Carryn dizia com o rosto apontado ao céu. As lágrimas corriam-lhe pela cara e a emoção via-se na cara dos presentes. Donald Trump, no pódio, aplaudia devagar virado para a viúva de Owens. Durante um total de mais de dois minutos e meio, as palmas ecoaram no Congresso dos Estados Unidos.
Há quem diga que a ovação prolongada à viúva do oficial da armada americana não passa de “teatro político” que trouxe uma família enlutada para o debate político sobre se devia, ou não, a Casa Branca ter aprovado a missão.
Se a viúva de Owens esteve no centro do discurso do presidente ao Congresso norte-americano, o pai do soldado morto no Médio Oriente recusou encontrar-se com Trump. “Disse-lhes que não queria fazer uma cena sobre o assunto, mas a minha consciência não me deixaria falar com ele”, disse William Owens, pai de Ryan, em entrevista ao ‘Miami Herald’.
“Por que razão teve de ser feita uma missão estúpida quando ainda não passava sequer uma semana da administração Trump? Porquê? Nos dois anos anteriores, não houve botas [soldados] no chão do Iémen - foi tudo mísseis e drones - porque não havia alvos que valessem uma vida americana. Agora, de repente tínhamos de fazer esta grande demonstração?”, questiona o pai do SEAL morto.
Missão polémica
William ‘Ryan’ Owens, de 36 anos, morreu na primeira operação de contraterrorismo sob a administração Trump, que teve lugar a 28 de janeiro.
Nesse dia, SEALs de elite da armada americana levaram a cabo um raid num complexo da Al-Qaeda na Península Árabe (AQAP, na sigla em inglês) em Bayda, no Iémen.
A operação no Iémen, há cerca de um mês, tem gerado críticas. Vários elementos da operação correram mal, o que causou não apenas a morte de Ryan Owens, mas também de civis e a destruição de uma aeronave no valor de 75 milhões de dólares (cerca de 71 milhões de euros), conta o The Washington Post.
O gabinete de imprensa da Casa Branca emitiu logo a 29 de janeiro um comunicado do presidente onde era relevada a morte de 14 membros do grupo da Al-Qaeda na Península Árabe, para além da recolha de informação que “vai assistir os EUA na prevenção de terrorismo contra os seus cidadãos e pessoas de todo o mundo". E acrescentava: “Os americanos estão pesarosos esta manhã com a notícia de que a vida de um heroico membro da missão foi perdida na nossa luta contra o mal do terrorismo islâmico radical.”
Só dias depois, as forças armadas dos EUA reconheciam a morte de civis. Na lista de civis mortos está a filha de oito anos de Anwar al-Awlaki, um clérigo nascido nos EUA que se juntou à AQAP e foi morto em 2011 por um ataque de drone americano.
“Eles perderam o Ryan”
Debaixo de um mar de críticas, Donald Trump rejeitou ter responsabilidade na operação que levou à morte de Owens. “Esta foi uma missão que começou antes de eu chegar”, contou Trump numa entrevista à FOX News.
“Foi algo que eles [os seus generais] queriam fazer. Vieram ter comigo e explicaram-me o que queriam fazer", disse o presidente americano. “Acredito que os meus generais sejam dos mais respeitados que tivemos em muitas décadas”. Apesar disso, “perderam o Ryan”, disse ainda Donald Trump.
A Casa Branca tem vindo a dizer que a missão foi planeada ainda pela administração Obama. No entanto, uma fonte ligada à presidência de Barack Obama (que deixou a Casa Branca a 20 de janeiro) citada pelo The Washington Post sugere que a acusação é uma “tentativa para passar a culpa”.
Para vários especialistas em segurança nacional, a forma como a administração de Trump lidou com a missão refletiu a falta de cuidado e consideração, conta o Post. É que várias vozes se levantaram a dizer que a missão não teve quaisquer efeitos.
Também o senador republicano John McCain começou por dizer que a missão foi “um fracasso”. Mais tarde, todavia, clarificou as críticas, explicando que, apesar de alguns objetivos terem sido cumpridos, não vai “descrever qualquer operação que resulte na perda de vidas americanas como um sucesso”.
A resposta de Trump não tardou. Numa série de tweets, o presidente dos Estados Unidos disse que o “Senador McCain não devia falar nos media sobre o sucesso ou fracasso da missão. Só encoraja o inimigo!”, escreveu o presidente na rede social.
“O nosso herói Ryan morreu numa missão vencedora (segundo o general Mattis), não um ‘fracasso”. É tempo de os EUA despertarem e começarem a ganhar novamente!”.
Já no discurso da noite passada, Trump reafirmou o sucesso da missão. O presidente americano disse que o secretário de Defesa, James Mattis, o assegurou de que as forças especiais americanas recolheram informação valiosa sobre o grupo ligado à al-Qaeda.
Apurar responsabilidades
Saber a quem pertence a culpa obriga a que se olhe para todo o processo que levou à missão da noite de 28 de janeiro. Uma detalhada cronologia do ‘Washington Post’ (em inglês) tenta trazer alguma ordem a um longo processo onde as versões dos responsáveis de ambas as administrações nem sempre coincidem.
A 7 de novembro, ainda sob a presidência do democrata Barack Obama, o Comando Central dos EUA, que supervisiona as operações militares no Médio Oriente, enviou ao Pentágono um plano com a possibilidade de pelo menos uma operação especial contra a sede da al-Qaeda na Península Árabe. Nesse plano, são levantadas suspeitas sobre a possibilidade de os membros desse grupo estarem a preparar ataques a alvos ocidentais.
Sean Spicer, responsável pela imprensa da Casa Branca, alega que nesse plano inicial, submetido um dia antes de Trump vencer Hillary Clinton nas eleições, já estaria gizado o raid levado a cabo a 28 de janeiro de 2017. Oficiais da administração Obama, contudo, negam este facto.
Um plano para o Iémen foi aprovado pelo Departamento de Defesa em dezembro de 2016. E incluía a sugestão para que a sua data fosse adiada. O documento foi enviado no dia 19 desse mês para o Conselho de Segurança Nacional de Obama para uma análise adicional.
Um antigo oficial da administração Obama, Colin Kahl, citado pelo The Washington Post, disse que o documento não incluía nada em específico sobre o raid de 28 de janeiro, e que se focava num pedido das forças armadas para concretizar raids no Iémen.
Sean Spicer disse que, a 6 de janeiro, num encontro entre pessoas de várias agências da administração Obama, foram discutidos pormenores da proposta para o Iémen. “Foi aprovada tão facilmente que foi logo enviada para cima”, disse Spicer. O secretário de Imprensa da Casa Branca acrescentou ainda que a discussão tinha já detalhes específicos do raid do final de janeiro.
“A conclusão na altura era para levá-lo a cabo naquilo a que eles chamaram uma ‘noite sem lua’, que, pelo calendário, não ocorreria antes de o então presidente eleito Trump fosse presidente Trump”, explicou Spicer.
Já depois da posse de Donald Trump, a 20 de janeiro, e da eleição de Jim Mattis para secretário de defesa, a 24 de janeiro, Mattis leu um memorando sobre o raid e “reenviou-o para a Casa Branca com o seu apoio”, disse Sean Spicer.
Michael Flynn, conselheiro para a segurança nacional de Trump, informou o presidente americano sobre os planos, recomendando um raid no Iémen. Donald Trump pediu um encontro com o secretário da Defesa, Mattis, e o general do exército Joseph F. Dunford Jr., o chairman do Estado-Maior Conjunto dos Estados Unidos.
No mesmo dia, 25 de janeiro, Trump jantou com vários oficiais, tendo a operação sido em grande medida delineada nessa noite. “A indicação nessa altura era para seguir em frente”, contou Spicer. Porém, Donald Trump teria ainda de autorizá-la formalmente, o que fez algures entre os dias 26 ou 27 de janeiro.
(Notícia corrigida às 19h50: alterada a data, terça-feira 28 de fevereiro e não 29 de fevereiro)
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