Ao fim de sete edições, o Comboio Presidencial, The Presidential, percorre pela última vez a linha do Douro este sábado, dia 29 de outubro, levando a bordo seis dos melhores chefs portugueses e os melhores vinhos da Niepoort, que prometem tornar a viagem inesquecível. Depois, regressa ao Entroncamento e o seu futuro é incerto.
O SAPO24 foi saber junto do ministério tutelado por Pedro Nuno Santos por que motivo um projeto premiado internacionalmente chega ao fim, mas a pergunta foi reencaminhada para o Museu Nacional Ferroviário. E foi de lá que veio a resposta: "A Trajetórias & Melodias não apresentou oficialmente pedido para continuar por mais anos com o projeto que tem desenvolvido com o comboio presidencial. A utilização do comboio presidencial em novos projetos está a ser reavaliada, considerando a natureza e tipologia deste comboio".
Gonçalo Castel-Branco, cabeça do projeto, recusa-se a baixar os braços: "O nosso contrato termina este ano, e tudo faremos para que não seja o último e que possamos continuar com esta história de sucesso. Continuo a acreditar que o governo e os parceiros que dele dependem terão o bom senso de não deixar morrer este projeto", afirma.
O projeto The Presidential proposto à Fundação Museu Nacional Ferroviário pela T&M, de Gonçalo Castel-Branco, tem âmbito e prazos delimitados através de protocolo e respetivos aditamentos celebrado entre as duas entidades, tendo sido considerado para um total de três edições – 2018, 2019 e 2020.
"Devido à pandemia originada pelo vírus Covid 19 e suas consequências", explica o museu, "a edição de 2020 não foi realizada" e, "por solicitação do promotor, a Fundação Museu Nacional Ferroviário considerou a realização da edição prevista para 2020 em 2022", o ano a decorrer.
A história ainda não acabou e Gonçalo Castel-Branco já se sente nostálgico. Empreendedor - é ele o responsável pelo Chefs on Fire -, recorda o dia em que foi visitar o Museu Nacional Ferroviário e se apaixonou pelo Comboio Presidencial. "Nessa noite, estava jantar com a minha filha Inês, disse que tinha de fazer alguma coisa com o comboio. Ela, tinha uns onze anos, pergunta de boca cheia: 'Porque não faz um restaurante?'", imita enchendo as bochechas. No dia seguinte, quando Gonçalo acordou, estava tudo claro: "Era no Douro, era com vinho e comida, era assim". Daí ao The Presidential foi um pulinho.
Os sorteios de última hora em São Bento
As viagens no Comboio Presidencial decorrem entre o Porto e o Douro, com uma paragem na emblemática Quinta do Vesúvio, aberta exclusivamente para os passageiros de The Presidential, para uma visita e prova de vinhos. Até lá e no caminho de regresso a cozinha não pára e são servidos de appetizers a pratos completos, entradas, peixe, carne e sobremesas, sempre acompanhados dos melhores vinhos.
Desta vez, para a despedida, estarão a bordo seis chefs: Alexandre Silva, João Rodrigues, Óscar Geadas, Pedro Lemos, Vasco Coelho Santos e Nuno Mendes, cada um responsável por um momento.
Todo este luxo está longe de ser apenas para ricos. A viagem - o comboio parte de São Bento, no Porto, de manhã, e a chegada à mesma estação acontece cerca de onze horas depois, já noite -, custa 750 euros por pessoa (um bilhete VIP para os Coldplay podia custar 500 euros). Mas, por um feliz acaso, pode até custar zero.
Se estiver pela estação de São Bento à hora da partida, fique atento. É que pode haver desistências de última hora (pelas razões mais imponderáveis, da doença ao atraso) e, nesse caso, os lugares são sorteados mesmo ali.
Quem passa, primeiro desconfia, depois surpreende-se; não, não é um rapto. Normalmente, os nacionais têm mais dificuldade em acreditar, e até aceitar, do que os estrangeiros. Um momento engraçado é aquele em que rostos de locais e de turistas se iluminam.
O Douro é Património Mundial da UNESCO desde 2001. A paisagem do Alto Douro, onde se produz vinho há quase dois mil anos, foi moldada por esta atividade e é um exemplo notável de uma região vitivinícola tradicional europeia, que reflete a evolução do setor ao longo do tempo.
Há evidências de que a viticultura no Vale do Douro remonta ao tempo dos romanos. Durante o período medieval, o vinho era produzido principalmente para uso em missa nos mosteiros. As vinhas eram plantadas nas aberturas das paredes dos terraços (pilheros) e só se expandiram a partir de meados do século XVIII, quando os ingleses começaram a procurá-las para a produção de vinho.
O rio Douro percorre a região vinícola do Douro cerca de 100 km até à Régua, onde termina a viticultura (devido à influência do clima atlântico). As uvas são a principal cultura do vale e o estuário é conhecido como o centro comercial do vinho português. A central do Douro é utilizada para irrigação e como fonte de energia hidroelétrica.
A Quinta do Vesúvio, aberta apenas para passageiros do Comboio Presidencial, é de enorme beleza. Lá é possível visitar a propriedade - casa principal, vinhas, adega - e conhecer a sua história.
Dentro de seus limites, o Vesúvio possui sete colinas e trinta e um vales. A Quinta do Vesúvio tem 320 hectares, 175 deles com vinhas, o que para o Douro é mesmo muito. As uvas ainda são pisadas com os pés, em lagar de pedra. Ali produz-se quase exclusivamente vinho do Porto Vintage, o melhor dos portos.
À chegada, os passageiros são convidados para um passeio ou podem optar por sentar-se no terraço a contemplar a paisagem e a beber alguns dos melhores vinhos da região ou simplesmente deitar-se à sombra de uma árvore e sentir a brisa e o rio. Conta-se que o Vesúvio lança o seu feitiço sobre todos os que lá estiveram.
A linha férrea do Porto chegou ao Vesúvio e à última paragem do Pocinho em 1887, só para que Dona Antónia, conhecida carinhosamente com "Ferreirinha", pudesse deslocar-se com mais frequência ao Douro Superior. Tal era a sua influência na região que foi construída uma estação ferroviária só para servir a propriedade.
D. Antónia Adelaide Ferreira era uma mulher de armas. E uma feminista, mesmo antes de a palavra feminismo ter sido inventada.
Ao final da tarde é de novo hora de embarcar e regressar ao Porto, com algumas surpresas pelo caminho, a começar pela música ao vivo na carruagem bar/salão de chá.
De comboio real a ferro-velho, de sucata a peça de museu
O The Presidential é um comboio cheio de história e Gonçalo Castel-Branco sabe contá-la (e conta-a) como ninguém. Anfitrião atento, não deixa na ao acaso e as explicações são feitas em inglês e depois repetidas em português, piadas incluídas.
O Comboio Presidencial começou por ser o comboio real, mandado fazer pelo rei D. Luís I, que já não o terá experimentado, pois as três carruagens iniciais ficaram prontas apenas em 1890. Em 1910, com a implantação da República, são-lhe acrescentadas duas carruagens, uma delas a carruagem dos jornalistas.
Passa então a Comboio Presidencial, usado por todos os chefes de Estado portugueses até Salazar. Nele viajaram reis, presidentes, ministros e outras altas figuras de Estado.
A última viagem oficial foi para o funeral de Salazar, desde uma estação improvisada em frente ao Mosteiro dos Jerónimos até Santa Comba Dão. É este o comboio que transporta, numa carruagem à parte (uma Schindler, agora no Museu Nacional Ferroviário), o caixão de Salazar.
A partir de então o comboio não é mais usado e depois do 25 de Abril é completamente abandonado, por ser um símbolo da monarquia e do poder.
Só em 2009 surge a ideia de recuperar o comboio e em 2010 o Museu Nacional Ferroviário, a EMEF – Empresa de Manutenção de Equipamento Ferroviário e a CP - Comboios de Portugal iniciam o processo de recuperação, que demorou três anos e meio e custou 1,3 milhões de euros ao abrigo do QREN - Quadro de Referência Estratégico Nacional (fundos comunitários).
A parte mais difícil da recuperação foi, desde logo, encontrar todas as carruagens, espalhadas e ao abandono. A chamada carruagem dos jornalistas foi a última a ser encontrada, num descampado e num estado de tal maneira lastimável que teve de ser embrulhada em redes de pesca para ser transportada para o local de restauro. Demorou dois anos a ser recuperada.
A recuperação do comboio, no entanto, "foi magnífica", nas palavras de conhecedores. Tudo o que está é 100% original, à exceção dos tecidos, que ainda assim foram feitos pelas fábricas que produziram os originais, através da recuperação de amostras existentes em arquivo.
E foi assim que o Comboio Presidencial passou a peça de museu, que agora pode ser vista no Museu Nacional Ferroviário, no Entroncamento. Dali, sai apenas para esta viagem e há já quem queira saber onde pode assinar uma petição ou a quem pode escrever para o projeto não acabar.
O projeto, auditado pela Cision, teve um retorno mediático para o Douro na ordem dos 19,5 milhões de euros e um impacto direto na economia local de nove milhões de euros em oito anos - cada cliente gastou em média, fora do comboio, 1900 euros em viagens, hotéis e alimentação, ou seja, um impacto de cerca de 1,2 milhões de euros por ano. Segundo a mesma organização, o retorno mediático para o Museu Nacional Ferroviário foi superior a 500 mil euros. Ao longo deste período, Gonçalo Castel-Branco investiu "mais de 2 milhões em custos diretos".
The Presidential foi considerado o "Melhor Evento Público do Mundo" pelos BEA Awards e venceu o Prémio Nacional de Turismo na categoria de “Projeto Inovador”, além de ter sido finalista nos World Restaurant Awards na categoria de melhor evento do ano de 2018. E integrou a lista da Forbes dos "10 Melhores Comboios de Luxo do Mundo".
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