Em entrevista à Lusa, a psicóloga Rute Agulhas, que lidera a estrutura criada para acompanhar as vítimas na sequência da divulgação há cerca de um ano do relatório da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica, confirmou que vai entregar esta segunda-feira à tarde à Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) o modelo de indemnização e manifestou a expectativa de que a proposta seja “bem acolhida” pelos bispos.

“A nossa proposta não replica de forma integral aquilo que aconteceu num ou noutro país concreto. De alguma forma, a nossa proposta vai incorporar ideias-chave que vêm de diversas proveniências, com adaptações na sua estrutura e aquilo que nos orienta é oferecer um modelo que seja muito transparente, muito objetivo e justo”, disse.

Sem querer adiantar muitos pormenores, a coordenadora do Grupo VITA esclareceu que desde dezembro, quando foi apresentado o último relatório de atividade, surgiram mais quatro vítimas a expressar vontade de serem indemnizadas. “Neste momento são oito. Não tinham manifestado até à data e neste momento acham que isso poderia ser importante”, notou.

Garantiu também que a CEP não se imiscuiu no desenvolvimento da proposta desde que apresentou o pedido para a sua elaboração no final do ano passado, salientando que o modelo delineado estabelece quais são os procedimentos, os critérios, quem decide o quê e como relativamente ao processo de reparação financeira.

“É uma proposta muito refletida, bem fundamentada e fruto de uma análise não só desta problemática, mas também do que tem vindo a acontecer nos outros países, o que tem corrido melhor e pior… Não há propriamente um modelo ideal. E, depois, temos de pensar nas características das pessoas de Portugal e adaptar também à nossa realidade”, referiu.

Rute Agulhas explicou que o Grupo VITA analisou outros processos de reparação financeira em diferentes contextos, como na queda da ponte de Entre-os-Rios, os incêndios de Pedrógão Grande ou o caso Casa Pia, mas também os caminhos trilhados por outros países na abordagem aos abusos sexuais na Igreja Católica.

“Encontramos aqui mais paralelismos com alguns modelos de países europeus do que, por exemplo, o que aconteceu nos EUA, que é uma realidade também muito distante e diferente da nossa a todos os níveis. Mas não posso identificar um país, porque estaria a ser injusta e porque efetivamente temos ideias-chave de diferentes modelos”, observou.

A coordenadora assinalou que o Grupo VITA é uma de mais entidades envolvidas ao longo do modelo de indemnização que vai ser proposto à CEP, mas que, apesar dessa situação, o processo pode ser desencadeado rapidamente se receber o aval dos bispos.

“A partir do momento em que há uma aprovação é possível começar de imediato a trabalhar na operacionalização do modelo e ele poderá estar a funcionar entre dois a três meses depois. Parece-me viável. Não me parece algo que tenhamos que esperar seis meses para conseguir começar a operacionalizar”, sentenciou.

Apenas uma pessoa acusada de abusos está sob intervenção terapêutica

No que respeita à intervenção terapêutica junto de pessoas que cometeram abusos sexuais no seio da Igreja Católica, Rute Agulhas defendeu que deve ser obrigatória, reconhecendo que apenas uma pessoa está atualmente nesta situação. A psicóloga afirma que tal não é uma surpresa, face à tipicamente baixa motivação destes elementos para procurar ajuda.

“Devia ter este caráter de obrigatoriedade”, referiu Rute Agulhas, sublinhando: “Apelamos também sempre aos bispos, aos institutos religiosos, enfim, às estruturas da Igreja, para que, de alguma forma, pressionem as pessoas em que possa haver esta suspeita de terem cometido ou de estarem a cometer crimes de natureza sexual no sentido de aceitarem um processo de ajuda terapêutica”.

De acordo com a psicóloga, os alegados agressores sexuais costumam procurar justificações, culpabilizando as vítimas e desculpabilizando os seus comportamentos, pelo que é crucial haver uma motivação externa que se sobreponha à ausência de vontade do indivíduo.

“Esta motivação externa pode exatamente ser esta abordagem mais coerciva da própria Igreja, no sentido de obrigar de alguma forma estas pessoas a pedir ajuda, para que depois o terapeuta possa, com tempo, criar algumas condições para começar a haver alguma motivação mais interna. Mas sabemos que esta motivação interna, pelo menos numa primeira fase, é muito baixa”, explicou.

O caso sob tratamento na ótica de abusador chegou ao Grupo VITA, segundo a coordenadora, precisamente através da pressão exercida pelo instituto religioso ao qual esta pessoa estava ligada, o que atesta a necessidade de uma ação mais forte da Igreja Católica portuguesa.

“Numa primeira fase, a Igreja poderia ter este papel muito importante de encaminhamento destas pessoas para um processo terapêutico, ainda que as pessoas, numa primeira fase, digam que não querem ou que não precisam, mas, pelo menos, para dar uma oportunidade num contexto terapêutico de isto poder ser abordado de uma outra forma”, realçou.

Grupo VITA vai fazer roteiro pelas dioceses do país

Rute Agulhas sinalizou ainda que nos objetivos do grupo para 2024 está um roteiro pelas dioceses do país para conhecer as realidades locais e reforçar a importância do encaminhamento para apoio psicológico das vítimas e dos suspeitos agressores. “Podem ainda não ter cometido um crime de natureza sexual, mas manifestar alguma dificuldade de ajustamento a esse nível e, portanto, também [atuar] numa lógica preventiva”, concluiu.

Criado em abril de 2023, o Grupo VITA pode ser contactado através da linha de atendimento telefónico (915090000) ou do formulário para sinalizações no ‘site’ www.grupovita.pt.

O Grupo VITA surgiu na sequência do trabalho da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica, liderada pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht, que ao longo de quase um ano validou 512 testemunhos de casos ocorridos entre 1950 e 2022, apontando, por extrapolação, para um número mínimo de 4.815 vítimas.