Em tempos, conversar era um dado adquirido: em família, no café, em programas televisivos ou na rádio, mas o tempo acelerado que vivemos parece esgotar o tempo da conversa, deixando apenas espaço para declarações, para tomadas de posição rotundas, que se propagam pelos mais diversos meios, muitas vezes sustentadas, como diz Agatha Arêas, em "factos rasos".
É isto que o Humanorama quer contrariar. O festival de conversas foi lançado em setembro de 2021 — quando as vagas sucessivas da covid-19 já haviam derrotado qualquer expetativa de um regresso rápido à "normalidade" — e prepara agora a segunda edição, promovido por uma marca que continua a afirmar o compromisso último "de deixar um legado para a sociedade que impacte positivamente a vida das pessoas".
E para o Rock in Rio isso passa também por dar palco à palavra falada ao invés da palavra cantada, numa experiência que começou em 2015 e tem vindo a ganhar tração através do Rock in Rio Academy, da criação da LExU, uma unidade de negócio dedicada à Educação, e, agora, com o Humanorama.
Quem nos conduz nesta "viagem" transformadora para o Rock in Rio enquanto empresa é Agatha Arêas, responsável pela área de Learning Experience, à boleia de uma conversa sobre a nova edição do festival de conversas da marca — que, note-se, já fez regressar a música ao parque da Bela Vista este fim-de-semana —, e que terá lugar de 28 a 31 de julho, em formato totalmente digital e gratuito (pelo menos para quem estiver neste lado do Atlântico).
O Rock in Rio é para a maior parte das pessoas sinónimo de música. O que vos motivou a criar um festival de conversas?
O mundo está super polarizado e gente começa a refletir porque é que o mundo está assim. E fica muito claro que é falta de escuta ativa. As pessoas estão conversando pouco, não estão dando espaço ao diálogo, fica cada um fechado nas suas opiniões, muitas vezes pautadas em conceitos rasos ou mesmo em fake news. Isso gera um desconhecimento generalizado e as pessoas ficam entretidas na inflamação das suas ideias e acham que assim estão sendo ativistas, mas não estão. Depois, chega o confronto e o desentendimento se impregna. Além disso, há uma falta de confiança gigante. As pessoas não têm confiança na liderança, no governo, na família, nos pais, nos media, e não tem confiança nelas próprias. Acho que é um dos grandes males do tempo que a gente vive, é a falta de confiança.
"As pessoas ficam entretidas na inflamação das suas ideias e acham que estão sendo ativistas, mas não estão"
E a que tipo de conversas terão palco no Humanorama?
Nesta edição vamos falar de 12 temas [como sustentabilidade, longevidade, trabalho, vida nas cidades, educação ou relações humanas], mas o que orquestrou esta escolha é a certeza de que só a incerteza é a nossa certeza - e estes dois anos de pandemia aceleraram isso.
É verdade que já vínhamos num processo de transformação, a revolução 4.0, mas essa expressão já nem se usa mais, já não dá para marcar um ponto, a revolução é diária. Além disso, ficou muito claro para todo o mundo que este ritmo acelerado que vivemos vai continuar. Portanto, a pergunta é: o que podemos fazer para nos preparar para isso? A gente precisa olhar para dentro, a gente precisa estudar, conversar, ouvir — e o Humanorama é sobre tudo isso.
O Humanorana — que acontece já depois do Rock in Rio terminar — amplifica de certa forma o próprio próprio festival, pelo menos nos temas que escolhe abordar...
O Rock in Rio um projeto totalmente focado no ser humano. Na Cidade do Rock de Lisboa os nossos espaços têm cada vez mais significado, o que é fruto de muita reflexão. O palco Yorn fala de inclusão social; o Digital Stage de inclusão digital; o Chef's Garden de alimentação saudável; a Rock Your Street de diversidade ou o Music Valley de cidades inteligentes. A gente traz essas conversas para dentro da Cidade do Rock porque sentimos, como pessoas, necessidade de debater, conversar, partilhar conhecimento e aprender. O Humanorama cobre também estes territórios e nasce muito desse desejo de criar um espaço de fala e de escuta — e isso é importante, não pode ser só um espaço de fala —, e de troca de ideias sobre temas que muitas vezes são fraturantes e que simplesmente nunca mais vão sair da nossa rotina.
Mas este percurso que o Rock in Rio tem vindo a trilhar na área da educação começou bem antes de 2021 — aliás, já têm até uma unidade de negócio (LExU) dedicada a isso, o que revela um novo posicionamento.
Como organização, o Rock in Rio, está mais do que nunca — e acho que todas as empresas deviam fazer isso —, assumindo um papel de aprendiz constantes. Está tudo mudando, as soluções mudam e temos de criar arcabouço para ter uma criatividade atualizada e equiparada com as inovações necessárias para dar resposta aos problemas ou desafios que vão surgindo. É como se a gente tivesse entrado num quarto escuro, e gente está assumindo essa visão para o próprio negócio: de testar, de desenvolver mais a nossa abertura para a vulnerabilidade.
E acho que toda a cultura de inovação do Rock in Rio se pauta pela tolerância ao risco e ao erro — não ao erro banal, de jeito algum, mas a uma mentalidade de crescimento, de que com o erro se aprende algo, se cria uma solução. Hoje, o movimento que o Rock in Rio está a fazer é de se converter numa learning organization, ou seja, com um entendimento de que a gente deve fomentar aprendizagens junto dos nossos colaboradores e parceiros, assim como devemos aprender com os nossos colaboradores, parceiros e com o público.
"Esse ritmo acelerado não vai parar e que o que a gente pode fazer para se preparar? Olhar para dentro, estudar, conversar, ouvir"
A primeira centelha foi em 2015, no Brasil, e em 2016, em Lisboa, com a Rock in Rio Academy, que vai voltar a acontecer já amanhã [e onde as portas da Cidade do Rock se abrem para aqueles que desejam uma formação em gestão prática, partindo do exemplo da organização do próprio festival]. Depois, em 2019, não é à toa que a gente cria a LeXu, a Learning Experience Unit do Rock in Rio. E ao longo desses sete anos, a gente tem identificado espaços dentro empresa, junto dos nossos parceiros e do público para criar experiências de aprendizagem — e as pessoas querem isso.
Eu estou muito orgulhosa e muito otimista, vendo um caminho muito promissor não só para a área de educação do Rock in Rio, mas para o próprio Rock in Rio, porque estamos aqui para crescer como pessoas, profissionais e marcas, reiterando o nosso compromisso de deixar um legado para a sociedade que impacte positivamente a vida das pessoas.
Voltemos à segunda edição do Humanorama, que acontece sobretudo online, em simultâneo no Brasil e em Portugal. Como é criar uma programação — sobretudo num festival de conversas — para dois países que, apesar de tudo, vivem realidades distintas?
Essa disparidade, essas diferenças, acabam por alimentar as conversas. É importante referir que no Humanorama não existem palestras, mas diálogos, entre duas a quatro pessoas, e o que fazemos é juntar pessoas de backgrounds completamente diferentes, seja profissional ou de visão de mundo. Depois, trabalhamos para ter o máximo de representatividade das minorias, nesse caso usando o Brasil como referência, porque essas diferenças estão mais marcadas. Misturamos todo o mundo de forma consciente e equilibrada, porque a ideia não é criar briga, mas ter confrontos e debates saudáveis.
Pode dar-me um exemplo?
Quando a gente fala de inclusão nas empresas e no mercado corporativo em Portugal, o debate está mais centrado no tema do etarismo, na discriminação por causa da idade. No Brasil, no contexto empresarial, é mais forte o tema do preconceito racial e da identidade de género. Então, quando se junta um dinamizador português e um brasileiro — nós chamamos aos nossos speakers dinamizadores porque a sua missão é mesmo dinamizar o debate — é possível ver essas diferenças, mas isso gera repertório para uma conversa mais rica, e é essa a intenção do Humanorama.
E como é que se garante, num festival de conversas, que todos se sentem representados? Sejam as minorias, que por via das ferramentas que hoje existem conquistaram finalmente um espaço de fala, e tendem a ser mais vocais, seja uma maioria, por vezes silenciosa, mas que também não se sente representada no espaço mediático?
No Humanorama temos um trabalho de curadoria seríssimo. Temos duas curadoras trabalhando diariamente no projeto e vários consultores. É muito claro que este é um momento em que as pessoas que tiveram no passado muito pouca voz, ou nenhuma, estão tendo, e muito por causa das redes sociais. As redes converteram todos nós em comunicadores. Isso é ótimo, por um lado, porque dá oportunidade a quem nunca teve espaço, mas é também perigoso porque se abre espaço para entrar gente falando coisas sem fundamento. No entanto, acreditamos realmente que, neste momento, a gente precisa de dar voz [às minorias], porque mundo chegou a um limite no que toca a não dar espaço para determinadas vozes, dores, problemas e desejos. A gente está trazendo todas essas realidades [para o Humanorama] e tenho a certeza de que não estamos deixando de lado os que podem ser classificados na maioria — mas todos têm de estar abertos à aprendizagem.
Este ano, no Brasil, o Humanorama vai ter também uma versão presencial. Quando podemos esperar isso em Portugal?
Esperamos que já em 2023, a gente quer. Esse ano vamos testar uma pequeníssima parte presencial em São Paulo, para 250 pessoas por dia. Nessa versão o festival é pago, mas o valor dos bilhetes vai ser convertido em cursos para jovens empreendedores da periferia brasileira, cursos de gestão financeira, de gestão de projeto e de comunicação, coisas que são muito importantes para quem está a começar um micro-negócio. E queremos também "medir a temperatura" do que é ter um Humanorama presencial. O mais provável é depois alternar, um ano lá e um ano cá, mas vamos com calma até ao simultâneo presencial, porque é já outra estrutura.
Outro dos grandes motivos para fazer esta versão presencial é porque sentimos que as pessoas estão sentindo necessidade desse encontro. E cada vez mais o caminho é híbrido. Enquanto o online dá muitas oportunidades de alcance e agilidade — se a gente tivesse de custear todas as viagens e logística desse festival se tornaria incomportável —, o presencial deve ser complemento sempre que possível. As pessoas querem, nós somos seres gregários, queremos conviver.
Como se garante um espaço de escuta ativa e de fala também num festival online?
A escuta ativa começa na nossa área de curadoria, porque não é ela que define tudo. A LeXu, o próprio Rock in Rio e os seus parceiros contribuem. Ouvimos o que as pessoas estão dizendo, querendo, e partimos daí para montar uma ideia de conversa. Jogamos uma provocação e escutamos novamente — e é nesses vários estágios de escuta que vamos aprimorando. Depois, quando está tudo fechado, esse briefing é passado para quem vai dinamizar as conversas: é preciso garantir empatia, que todo o mundo tem mais ou menos o mesmo tempo de fala, garantir educação e respeito. A grande maioria das conversas é gravada, mas a mediação acontece ao vivo e convidamos aqueles que estiveram nos vídeos a assistir em direto e a participar na parte dos comentários, que está ali disponível.
Alguma dica para quem quer marcar presença nesta edição do Humanorama?
Venha com vontade de participar, capacidade crítica, empatia, espirito aberto, e deixe de lado o preconceito, os "pré conceitos" que a gente tem, vem de guarda baixa e peito aberto para construir em conjunto novas ideias, visões, entendimentos.
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