Dizem que tem mau feitio. Que é prepotente. Contesta e garante que se for preciso emendar alguma coisa emenda, mas se tiver de tomar uma decisão difícil toma, "doa a quem doer". Os actos provam-no: Alberto Amaral é presidente da A3ES – Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior desde a sua criação, há dez anos, e fechou mais de dois mil cursos e dez instituições universitárias. Há casos que vão parar a tribunal. Os politécnicos estão em guerra com ele. Não tem uma vida fácil. Para compensar, um sentido de humor apurado.
A avó queria que fosse médico. Licenciou-se em Engenharia e aos 25 anos já era doutorado em Mecânica Quântica numa das melhores universidades do mundo. Foi reitor da Universidade do Porto durante treze anos e isso não lhe deu azar, nem a ele nem à instituição, que cresceu como nunca. Depois dedicou-se à investigação, que não largou até hoje. Mas a articulação com as empresas é deficiente e a indústria nacional não está preparada para pagar a investigação portuguesa. É mais fácil vender lá fora.
De resto, os quatro filhos também lhe mostraram os problemas do ensino superior. E os benefícios. Os cursos não devem ser tão especializados, é isto que defende. Deviam servir para dar aos estudantes uma formação base sólida, para ensinar a pensar, trabalhar e estudar por si próprios. Para a especialização existem as pós-graduações. Mas não é assim que funcionam as coisas.
Falta investimento ao ensino superior, afirma. Outros problemas não são muito diferentes na Europa. Alberto Amaral conhece bem esta realidade, através da Conferência dos Reitores Europeus, actual European University Association, e recorda que as leis são de tal maneira intrincadas que um dia vai surgir um problema que nem o Tribunal de Justiça da União Europeia vai conseguir resolver. Um deles pode surgir com o Brexit.
O ensino superior foi sempre uma preocupação, excepto no tempo do Crato, em que era a secretaria de Estado que tratava do ensino superior e Crato tratava do resto
Dez anos depois de ter chegado à A3ES, que retrato faz do ensino superior português?
O ensino superior português compara em qualidade com o muito bom ensino que se faz em toda a Europa. Aliás, repare que não temos problema nenhum em emigrar: os enfermeiros emigram facilmente, os engenheiros emigram facilmente, os médicos emigram facilmente. O que não podemos é comparar o nosso ensino com o que se faz em Oxford ou Cambridge, mas essas universidades têm orçamentos maiores que o Estado português. Como dizia um colega meu, não se compra um Mercedes pelo preço de um Carocha ou de um Fiat 600. Mas em termos de qualidade melhorou e compara, não é vergonha nenhuma aquilo que produzimos. O ensino superior foi sempre uma preocupação, excepto no tempo do Crato, em que era a secretaria de Estado que tratava do ensino superior e Crato tratava do resto.
Crato não foi um grande exemplo?
Não, mas é o que há.
Uma radiografia que problemas mostraria?
Há um problema complicado neste momento: o envelhecimento significativo da população docente. Os professores maiores de 60 anos aumentaram de 1700 em 2012 para 2100 em 2016. Os novinhos, entre 30 e 39 anos, desceram de 4400 em 2012 para 2900 em 2016. Isto tem a ver com dificuldades financeiras, significa que não foram contratadas pessoas novas. Além do mais verificou-se uma diminuição do número de docentes, saíram os mais novos.
Hoje há docentes contratados sem salário. Parece-lhe certo?
Sempre houve. Isso acontecia muito nas escolas de medicina, os médicos de hospital acompanham os alunos que iam para clínicas aprender. É normal. E é assim em várias áreas, não vejo problema, desde que seja voluntário dos dois lados.
Não é voluntariado à força?
Também. Há de tudo.
Continuemos a examinar a radiografia...
Outro problema complicado é a rede. Não tem havido uma grande estratégia na implementação da rede de ensino superior. Havia a síndrome de aviário, mas depois ia tudo à falência: aparece um curso e rapidamente esgota. Agora há enfermeiros aos pontapés. Aconteceu com o Ambiente e com outras áreas, têm êxito e esgotam, mas depois desaparecem porque começa a haver excesso.
Porque é que as universidades não combinam entre elas? Pelo menos as públicas...
Porque são autónomas. Mas participei num trabalho na África do Sul em que em nenhuma região é criado um curso por uma instituição sem que todas as outras estejam de acordo. Faz todo o sentido.
E cá, por que não se faz?
O ministério já está a preparar algo nesse sentido, e as indicações são para não autorizar cursos quando há outro igual na zona. A menos que haja muita falta.
A A3ES publica estudos prospectivos. Quais as principais conclusões em relação aos cursos exisitentes?
Digamos que Engenharia Civil, Arquitectura e Psicologia são casos exemplares, em que há comportamentos completamente diferentes. Engenharia Civil teve uma quebra brutal, a construção civil está como está e não há emprego, o que tem um efeito dramático, ao ponto de praticamente só terem um número significativo de alunos a Faculdade de Engenharia do Porto e o Instituto Superior Técnico de Lisboa. No Alentejo (Évora, Beja, Portalegre) houve uma razia completa. Arquitectura, que devia acompanhar Civil, subiu. O privado desceu, mas o público subiu ligeiramente, a beneficiar dessas gorduras. E a mesma coisa em Psicologia.
Os cursos na área da Saúde têm sempre saída (...) Depois tem as Engenharias: Engenharia Informática (há uma estimativa que indica que faltarão cerca de 320 mil informáticos em Portugal)
Quais são os cursos com mais procura?
Os cursos na área da Saúde têm sempre saída. Medicina, Medicina Dentária já nem tanto — montar um consultório é caro e os bancos já não financiam com a facilidade com que o faziam antes. Depois tem as Engenharias: Engenharia Informática (há uma estimativa que indica que faltarão cerca de 320 mil informáticos em Portugal), Engenharia Mecânica e Engenharia Aeroespacial, e ainda a Gestão Industrial. Na Educação vamos ter um problema, temos centenas de cursos a formar professores e gente na área da educação. Para quê?
Abrir um novo curso também é caro. Falo da autorização.
As autorizações estavam em 4500 e passaram para 4 mil. Provavelmente vão ter de voltar a subir, mas acontece que tínhamos uma folga e não fazia sentido a A3ES estar a acumular reservas e pôr o custo do lado das instituições. Apesar de tudo, lembro que no tempo da outra senhora, 1996 e 2006, os cursos eram todos suportados pelo Ministério da Educação e a avaliação de um curso custava entre 12 mil e 14 mil euros. Agora não há subsídio e custam 4 mil.
Isto significa que mais de 40% dos cursos desapareceram
A A3ES foi criada em 2007, embora tenha começado a sua actividade em 2009, com resultados mais visíveis a partir de 2012. Quantos cursos fechou?
Mais de 2 mil, penso que uns 2300, entre licenciaturas, mestrados e doutoramentos. Isto significa que mais de 40% dos cursos desapareceram. E não foi pêra doce, tivemos imensos problemas e bem complicados. Mas devo dizer que, do total, 90% fecharam por decisão das instituições, ou seja, a obra da A3ES foi ter levado as instituições a pensar naquilo que estavam a oferecer.
Agora já não há problemas complicados?
Voltou a recrudescer alguma coisa, com esta história de haver universidades que não têm número de alunos suficiente para se manter. O ministro fez um despacho a transformá-las em escolas universitárias. Houve petições na Assembleia da República a dizer que éramos demasiado dependentes do governo. Agora pelos vistos está a decorrer uma porque somos demasiado independentes.
Se tiver de emendar uma coisa, emendo. Mas se for preciso tomar uma decisão difícil tomo. Doa a quem doer.
O professor é prepotente?
Não. E se tiver de emendar uma coisa emendo. Mas se for preciso tomar uma decisão difícil tomo, doa a quem doer.
Vota?
Voto.
Mais à esquerda ou mais à direita?
Mais à esquerda.
Voltando ao ensino superior, quantas universidades fechou?
Umas dez. Mas não são todas universidades, são instituições universitárias, que é diferente, como a Afonso III. Para ser universidade tem de oferecer, por exemplo, doutoramentos em três áreas diferentes, de acordo com a lei. E quem fecha as instituições não é a A3ES, é a Direcção-Geral de Ensino Superior. O que acontece é que estive com o secretário de Estado do Ensino Superior, José Ferreira Gomes, ainda no tempo do anterior governo, e dei-lhe a entender que havia instituições que pelo número de alunos não parecia ter um corpo docente sustentado. A DGES foi averiguar e é quem toma as decisões. Parece que poderá ainda haver mais umas quantas a fechar.
A A3ES é a ASAE do ensino superior?
Não. É preciso ter em conta que funcionamos com ciclos de cinco anos, depois temos de mudar o sistema. Esta é a altura. Agora vamos para um sistema — não sei se posso dizer isto assim, depois arrependo-me — baseado no risco.
O que significa isso?
Começou em Inglaterra e basicamente implica que há um risco mais elevado de má qualidade numa chafarica qualquer em Vila Nova de Milfontes que no Instituto Superior Técnico, logo é fazer incidir os exercícios de avaliação sobre os sítios onde há maior risco. Em relação ao Técnico, por exemplo, será avaliada uma amostragem em vez de se avaliarem os cursos todos. Nos que houver mais risco continuaremos a avaliar os cursos todos.
Foi caro doutorar-se em Cambridge?
Na altura tínhamos bolsas de estudo e as propinas não eram o que são hoje, eram mais baixas. Começou com Margaret Thatcher e mais recentemente houve a decisão de deixar as propinas entre os 6 mil e os 9 mil euros por ano para os estudantes da União Europeia, enquanto os preços podem atingir os cerca de 15 mil euros para os extracomunitários. A legislação europeia não permite fixar preços diferentes para alunos pertencentes a países da UE, embora já tenham existido tentativas.
Para praticar preços diferenciados?
Sim, tem havido casos. Há até uma decisão recente do Tribunal de Justiça da União Europeia relativamente à Bélgica. Uma universidade não queria deixar um francês ir para uma faculdade de Medicina e evocava que era prejudicial para os serviços de saúde, já que o estudante francês, que estava a tirar uma vaga a um belga, acabaria por regressar a França . O tribunal decidiu que o francês era cidadão da UE de pleno direito, pelo que podia estudar na Bélgica e nas mesmas condições de um belga.
Em Portugal não temos esse problema?
Não, temos um problema de natalidade e queremos é que venham para cá estrangeiros estudar.
Mais de 800 alunos vão todos os anos estudar para universidades no Reino Unido. O Brexit significa que agora os cursos vão ficar mais caros, podem cobrar o que quiserem?
Sim. O Brexit pode ser um sarilho para nós. A saída do Reino Unido da União Europeia significa que os cursos vão ficar mais caros.
As previsões indicam que nos próximos 25 anos haverá uma quebra [de alunos] da ordem dos 20%.
Quais são as previsões para os próximos anos, em termos de número de alunos?
As previsões são que nos próximos 25 anos haverá uma quebra da ordem dos 20%. A solução pode passar por tentar atrair alunos estrangeiros, fazer acordos com países de língua portuguesa. É necessário começar a pensar nisso. E a legislação nacional foi alterada pelo governo anterior já a pensar nisso. O código anterior previa uma coisa complicada, que era as universidades públicas não poderem cobrar propinas diferenciadas a alunos estrangeiros, extra-UE. Agora já podem. Mas aqui temos uma desgraça: os nossos clientes são pobres. Podemos optar por ensinar em inglês, mas vamos afastar brasileiros e africanos, ou ensinar em português, e ficamos com os que não têm dinheiro.
Como é que isso se gere?
É complicado. Toda a Europa está a envelhecer. Mas isto é engraçado, já é tradição nossa… Fizemos outra borrada: expulsámos os judeus.
A que se deve este nosso condão?
É falta de visão. Poucas pessoas têm os rasgos do Marquês de Pombal, já lá vai tempo. Há aqui uma coisa terrível, a impossibilidade de definir um projecto para o país: muda o governo, muda tudo. É uma alegria, mudam os manuais, mudam os programas, mudam as contratações. Assim não há país que resista, isto paga-se. Os noruegueses têm petróleo e continuam a ter uma das gasolinas mais caras da Europa, mas continuam a ter lá o dinheirinho todo para as suas reformas daqui a 30, 40 ou 50 anos. Nós estaríamos a pagar mais e já tínhamos espatifado o dinheiro todo.
Portugal tinha 50 e tal mil alunos, agora tem mais de 400 mil.
Falta dinheiro ao ensino superior?
O que acontece é que diminuiu significativamente. Mas uma coisa é o financiamento por aluno, outra é o financiamento global. Na maior parte dos países, o financiamento global manteve-se. Mas Portugal tinha 50 e tal mil alunos, agora tem mais de 400 mil. Em 1974, a taxa de penetração bruta era da ordem dos 6% a 7%, agora anda na casa dos 50%, 30% se falarmos em termos líquidos - temos dificuldade em atingir as metas europeias. É certo que existem economias de escala, mas mesmo assim não dá para tudo. Penso que as universidades vivem hoje com maiores dificuldades do que no meu tempo, que foi o tempo das vacas gordas.
Hoje seria possível fazer tudo o que fez na Universidade do Porto?
Na altura houve coisas importantes na parte da construção, fazer as faculdades de Ciências, Engenharia, Psicologia, Arquitectura, Educação Física. Outra coisa que se fez, e que começou no tempo do Couto dos Santos, foi acordar uma forma de financiamento. Negociámos uma fórmula com o ministério que assentava em alguns parâmetros, como a relação entre o número de alunos e docentes - 20 para um no Direito, seis para um em Medicina, 11 para um em Engenharia – e, por exemplo, o custo utilizado para calcular salários era o valor médio da instituição. Isso funcionou durante algum tempo, até o número de alunos começar a aumentar. Depois foi difícil sustentar a fórmula e tivemos de voltar a pedir mais dinheiro.
E no sector privado, o que aconteceu?
Não houve em Portugal um grupo que investisse — enquanto nos Estados Unidos as universidades privadas apareceram antes das públicas, além de que alguns indivíduos com dinheiro, como Carnegie Mellon, não se importam de financiar a educação com milhões e milhões. Participei na avaliação da Universidade de Columbia, em Nova Iorque, e foram pedidos financiamentos a antigos alunos. Fizeram um donativo de 2 mil milhões de dólares e pouco depois já tinha duplicado para 4 mil milhões. Cá mal vissem aquele dinheiro iam buscá-lo. Pior ainda, como tivemos o 25 de Abril e houve uma enorme expansão, como não faltavam alunos não houve o cuidado de apostar na qualidade, aconteceram episódios como o da Moderna.
Antes de avançarmos para esses casos, é de Braga, estudou no Porto e em Inglaterra. Pode falar da sua escolha?
Um dos meus avôs era médico e a minha avó queria que eu fosse médico. Tanto me chateou que eu disse que não queria ir para médico. Fui para Engenharia Química, como um primo mais velho. Numa altura em que o curso era de seis anos, três anos na Faculdade de Ciências e três anos na Faculdade de Engenharia, cheguei ao fim do curso com 22 anos. Os três anos de Faculdade de Ciências são anos em que havia um grande rigor: Matemática, Física, Química, aquilo era algo complicado e comparado com a Faculdade de Engenharia, onde o rigor se perde porque tudo tem de se tornar prático, era completamente diferente. Isso não bateu certo com aquilo que eu na altura imaginava, daí o voltar à ciência pura e dura. Foi por isso que fui para Cambridge para Mecânica Quântica e para Química Teórica. Voltei para a Faculdade de Ciências do Porto, que dirigi, e estive em Moçambique quatro anos. Regressei e acabei reitor da Universidade do Porto e ao fim de treze anos achei que não podia voltar para a Mecânica Quântica, havia outros colegas que entretanto se tinham adiantado e eu já me tinha esquecido de metade daquilo.
Foi então que aceitou o desafio da A3ES?
Tinha adquirido um grande interesse na área do ensino superior, onde criei um centro de investigação, que é o que ainda faço. Só deixei a direcção do centro quando vim para a A3ES. Continuo a fazer investigação em paralelo e a própria agência tem um sector de investigação, o que é óptimo porque impede que se transforme numa burocracia.
Do Porto para Lisboa. Quais as grandes diferenças?
Passo a maior parte do tempo em Lisboa. Não guio, tenho motorista. Mas é engraçado que esteve cá uma dinamarquesa que queria comer bom peixe e decidimos telefonar à Uber e ela respondeu logo: «à Uber não, que estão na Dinamarca e exploram os motoristas. Não posso aceitar uma coisa dessas». Mas, entre Lisboa e o Porto, além das diferenças do clima, naturalmente, penso que as pessoas do Porto são mais cosmopolitas. Por outro lado, a vida no Porto é mais difícil.
É a favor da regionalização?
Sim, com cuidado. O interior está outra vez desertificado: temos a Universidade da Beira interior, três ou quatro politécnicos, e desapareceram os tribunais, desapareceram os quartéis, desapareceu a polícia, desapareceu tudo.
Qual o objectivo do centro de investigação que criou, a que se dedica?
Química Teórica, e é neste momento reconhecido internacionalmente. É dirigido por uma das minhas melhores alunas e recebeu no ano passado um honoris causa em Estocolmo como reconhecimento pelo trabalho desenvolvido. O que se faz nesse centro, essencialmente, é o cálculo de moléculas com fins medicinais. Quer dizer, uma molécula, para ter efeito num cancro ou no que quer que seja, tem de ter uma determinada estrutura; se as ligações forem muito pequenas ou muito largas não encaixa onde deve encaixar. E é possível, através de uma série de cálculos, saber quais são as que têm maiores possibilidades. Sintetizar compostos destes é muito complicado, custa muito dinheiro e demora muito tempo. Se uma pessoa à partida disser que 90% nem vale a pena experimentar, isso ajuda.
É muito mais fácil produzir investigação para vender a uma empresa estrangeira do que a uma empresa portuguesa.
O estatuto de investigador foi alterado recentemente. Ainda assim, há um grande afastamento entre a investigação e as empresas. Porquê?
O grande problema é que não há em Portugal uma carreira na investigação, a maioria anda de bolsa em bolsa e é isso que é preciso remediar. Em segundo lugar, as grandes descobertas nascem da investigação pura, e não de uma investigação dirigida para resolver um problema, o que é o mesmo que tirar o número da sorte; de vez em quando a coisa dá. Infelizmente, temos outro problema: não temos indústria para usar isto. Às vezes é muito mais fácil produzir e ir vender a uma empresa estrangeira que a uma empresa portuguesa, que nisto é muito deficiente.
O que falha?
A qualificação do pessoal na indústria é em geral baixa. Por outro lado, alguma da nossa melhor indústria, por exemplo a Sonae, se calhar não se pode dar ao luxo de estar a financiar uma investigação durante 50 anos e quando precisa de uma coisa para daí a um mês vai aos japoneses e compra a tecnologia. O investimento em investigação para ser produtivo tem de corresponder a pelo menos 3% do PIB. Portugal ainda vai em meio por cento, tem um bom caminho para andar. E aí há outro problema: estamos a produzir técnicos que depois não encontram emprego compatível e acabam por emigrar.
A mesma questão que se levanta entre a investigação e as empresas levanta-se em relação à formação e a universidade. Nem sempre esta articulação funciona...
Mas também aí se está a exagerar um bocado.
Em que sentido?
Hoje o conhecimento muda muito rapidamente. Basta olhar para os computadores ou para os telemóveis. O que significa que a função da universidade é muito mais dar conhecimentos sólidos às pessoas, dar-lhes uma boa base, ensiná-las a pensar e a estudar por si, a actualizar-se, do que propriamente transmitir-lhes um conhecimento específico. Quer dizer, eu não produzo um engenheiro para a fábrica de sapatos do senhor Não Sei Quê, porque isso é perfeitamente ridículo e limitado. Penso que hoje se está a exagerar, pelo menos ao nível do primeiro ciclo, na especialização dos cursos. Depois as pós-graduações poderiam servir para alguma especialização.
A Declaração de Bolonha, que Portugal assinou, não devia ter servido para isso mesmo, um primeiro ciclo de três anos para dar maior jogo e cintura aos alunos e posteriormente uma maior especialização?
Há aqui vários problemas. Por uma lado, os empresários não perceberam muito bem essa coisa dos três anos, ainda querem uma formação mais longa. Depois algumas ordens profissionais também não aceitaram os três anos, como a Ordem dos Engenheiros, que quer cinco anos. Em tempos fiz um trabalho para o governo italiano e foi curiosíssimo, porque em Itália o sistema era muito centralizado, era uma comissão nacional que decidia que cursos havia, os novos cursos, os que fechavam, e encontrei em Urbino cinco ou seis variantes de Psicologia: Psicologia da Educação, Psicologia da Criança, Psicologia do Adulto… Em Veneza havia três ou quatro variantes de Economia. E eu perguntava-me porquê. Uma pessoa tira uma licenciatura em Psicologia da Criança e depois não tem emprego. Como é? «Ah, não faz mal, é Psicologia, depois faz o que quiser». A ponto de o ministro fazer uma reforma que se chamava 1+2+2, em que ao menos o primeiro ano era igual para todas as áreas, fossem Psicologias, Economias ou o que fosse, e depois havia mais dois anos para a licenciatura e depois mais dois para o mestrado.
Em Portugal isso não aconteceu...
Aqui houve uma coisa interessante. Lembro-me de falar com Mariano Gago e de lhe dizer «vê lá o que aconteceu em Itália» e quando saiu o Decreto-Lei 64/2006 ele fez uma coisa que foi a salvação: dizia que uma licenciatura antiga só podia dar uma licenciatura nova. Mas não fez isso nos mestrados e a grande proliferação foi aí. E nas licenciaturas não houve o desastre que houve em Itália, em que apareceram licenciaturas demasiados especializadas. Embora, com o correr dos anos, eu deva dizer que a imaginação das instituições não tem limites.
Faz-me lembrar a piada do Herman José, que dizia que a filha tinha um licenciatura em Design de Moda e estava a tirar o mestrado em Modelo de Vitrine.
Pode exemplificar?
Basta olhar para a diversidade de cursos na área da gestão, tudo e mais alguma coisa. Faz-me lembrar a piada do Herman José, que dizia que a filha tinha um licenciatura em Design de Moda e estava a tirar o mestrado em Modelo de Vitrine. São este tipo de especializações.
Hoje as escolhas dos cursos são feitas mais por vocação ou por saída profissional?
Os estudos que temos mostram uma coisa interessante: antes os alunos escolhiam os cursos essencialmente por vocação ou por efeitos secundários: se a namorada ia o rapaz ia atrás ou o grupo de amigos ia todo junto, mas regra geral não havia muita preocupação com o emprego. Agora o factor emprego é uma preocupação muito maior. Além disso notou-se outro fenómeno: aumentou o número de alunos que concluíram o secundário e entraram para o mercado de trabalho. Ou seja, preferiram empregar-se logo que conseguiram garantir um lugar, muitas vezes a pensar que fazem o curso depois. Só que depois não fazem, claro.
Nesse aspecto, programas como o Novas Oportunidades eram positivos?
A dificuldade existe muitas vezes por parte do empregador. O patrão não quer deixar sair o empregado mais cedo ou ceder horas de trabalho. Lembro-me de uma conversa que tive com um grupo de industriais quando estava na reitoria. Queixavam-se de ter de dar formação aos empregados, «era o que faltava», diziam. «Depois vêm logo pedir mais dinheiro ou, se não pedem mais dinheiro, vão para o vizinho.» Era esta a maneira de pensar. Claro que errada. De qualquer forma, a experiência diz-me que um indivíduo que começa a trabalhar organiza a sua vida e dificilmente regressa aos estudos, pelo menos para a licenciatura.
Disse que a taxa de abandono escolar aumentou.
É natural em alturas de crise, nomeadamente nas pós-graduações e para quem está no privado. Muita gente estava a fazer mestrados, perdeu o emprego e desistiu.
Tem quatro filhos, dois rapazes e duas raparigas. Vê a emigração como um problema?
A mais velha é química, a segunda bióloga, o terceiro é informático e o quarto é engenheiro civil. A bióloga está a fazer o doutoramento na Suíça e é a mais aventureira. Já esteve no Amazonas, ia à noite para a floresta à procura de sapos às cores, venenosos. A base do trabalho dela é determinar a origem do carvalho europeu, que aparentemente veio da Ásia. Só me preocupei no dia em que chegou a casa e disse que ia para a República Centro Africana. Para aí não.
Como foi consigo?
Quando me doutorei em Inglaterra, há quase 50 anos, um anúncio de emprego tinha salários diferenciados para doutorado e não doutorados. Aqui, se for doutorado, até é capaz de esconder para poder ficar com o emprego. Aliás, houve na altura o célebre Robinson Report, feito exactamente porque a indústria se queixava que de as universidades queriam doutorados e a indústria, que precisava deles, não os conseguia, já não chegavam lá. Mas houve uma grande expansão da indústria em Inglaterra nesta sequência. Em Portugal, infelizmente, estamos muito longe disso.
Porque preferem os professores ficar nas universidades em vez de ir para a indústria?
Em Portugal a indústria não anda à procura de doutorados. Repare, aqui temos salários mínimos de 500 e poucos euros. Queremos fazer como os chineses, apostar em políticas de baixos salários? Não se percebe. Por outro lado, um docente universitário tem muitas vantagens: não tem patrão, faz um bocado aquilo que lhe apetece, é ele próprio que decide o que investiga, o que ensina, não tem grandes controlos, tem possibilidade de viajar, ir a congressos, é uma vida muito interessante.
Nessa altura em Portugal 80% dos empresários não tinham mais que a escolaridade obrigatória
Sobre os anúncios, além de não diferenciarem salários, pedem recém-licenciados com vários anos de experiência. Quem controla isto?
Isso é verdade e é um problema. Outro ainda mais grave: em 2008 o Instituto Nacional de Estatística fez um trabalho conjuntamente com os espanhóis sobre a qualificação da mão-de-obra, a qualificação dos empresários, e comparava a nível europeu. Nessa altura em Portugal 80% dos empresários não tinham mais que a escolaridade obrigatória. Eram empresas familiares no mau sentido, sem formação, sem cultura.
Vamos então falar dos casos Moderna, Independente, Lusófona. Como é possível que continuem a acontecer?
Isso foi desleixo com a criação de instituições de ensino superior. Houve uma altura em que tudo o que aparecia era aprovado, o objectivo era aumentar rapidamente o número de alunos e como não havia dinheiro para investir e aquilo era privado foi a solução que se encontrou. Aconteceu o mesmo na maioria dos países onde se verificou uma expansão da procura a que o sector público não conseguia responder.
Hoje temos muita oferta pública.
Neste momento temos, mas o ensino privado chegou a representar mais de um terço do todo do sistema. Actualmente é menos de 20%. O que aconteceu foi que no pós-25 de Abril, nomeadamente depois da adesão à CEE, houve uma grande flexibilidade de fundos europeus, foi o chamado tempo das vacas gordas. Praticamente reconstruiu-se a universidade toda. O ensino público, que vivia grandes dificuldades, grandes restrições, quer de pessoal quer de equipamento e edifícios, foi-se desenvolvendo, recebendo mais e mais alunos. Um aluno, entre ir para uma instituição pública e para uma privada, onde vai pagar muito mais e não é compensado em termos de qualidade, prefere a pública. Desde então o sector público manteve-se razoavelmente e o privado diminuiu substancialmente. Por isso as fusões de vários institutos, como os Piaget, os encerramentos em Loulé, Espinho e outros.
A propósito dos politécnicos, há uma guerra acesa a propósito de estes não poderem ter doutoramentos. Por que motivo é assim?
Na maioria dos sistemas e com o passar do tempo os politécnicos tendem a aproximar-se das universidades, é a deriva académica. E o número de doutorados nos politécnicos aumenta. Mas é conveniente aproximar os dois sistemas, politécnico e universitário, ou, pelo contrário, ter uma formação mais académica e outra mais politécnica?
Devolvo-lhe a pergunta. E conveniente para quem?
Eventualmente poder-se-ia considerar a aproximação, mas é decisão política. A tendência é generalizada e nalguns países tem sido autorizada, noutros comabatida. Na Bélgica pode-se desde que em conjunto com universidades, na Irlanda nunca. Em Espanha e itália não há politécnicos, estão dentro das universidades. Mas aí as guerras vão para dentro das instituições. Não há soluções perfeitas.
Qual a sua opinião pessoal nesta matéria?
Penso que é conveniente manter subsistemas separados. O que talvez se pudesse admitir, nesta fase, um doutoramento diferente, com ligação a problemas da indústria e à indústria. Mas também se compreende uma certa frustração dos professores.
[caso Relvas] Aí é que está o problema, na falta de seriedade da instituição na atribuição dos créditos
Voltando a casos como o de Miguel Relvas, que ainda não está decidido, como é possível que acontecem?
A questão aqui é que ninguém estudou bem o problema. A discussão é que havia duas disciplinas às quais foi dada equivalência e que não estavam a funcionar. Para mim isso não é o mais grave. O grave é que se tenha dado 90% do curso em troca de coisas que não têm que ver com a licenciatura: foram contabilizadas coisas como presença num rancho folclórico, artigos em jornais… Aí é que está o problema, na falta de seriedade da instituição na atribuição dos créditos.
O processo tem o nome dos professores responsáveis pela atribuição dos créditos. Ninguém foi responsabilizado. Porquê?
Quem devia fazê-lo era a instituição.
Mas se a instituição foi conivente…
Mas tem órgãos de gestão e são estes que têm de ser responsáveis por isto.
E a instituição não é penalizada?
Não.
A A3ES tem aqui um papel?
Não. Podemos apenas recusar cursos e fechá-los por excesso de tributação de competências, por exemplo. Mas na sequência do processo Relvas já houve alterações significativas na legislação, como um decreto-lei que veio limitar o uso de créditos.
Também há quem compre licenciaturas.
Há um site americano onde se compram cursos. Têm uma rede montada e não é uma coisa qualquer, são logo diplomas de Harvard, Columbia e universidades das melhores. É muito engraçado, um jornalista fez uma reportagem e comprou um diploma para ele e outros para os filhos. Às vezes é difícil descobrir que são falsos, sobretudo se quem compra vai trabalhar para um país estrangeiro. É de tal forma que têm uma linha telefónica que confirma a veracidade dos dados, tudo falso. Um miúdo pequeno tem um doutoramento em Filosofia tirado em Harvard. Comprado online. As falsificações são um negócio em expansão. Quer ver? [mostra a reportagem num site americano] Este miúdo de três anos tem um master em Comunicação. E perguntam-lhe: quanto é dois mais dois? [risos] A compra é legal, o que é ilegal é o uso. É uma indústria multimilionária em todo o mundo. Há pessoas contratadas para dar referências falsas.
Em Portugal há situações destas?
Sim. Mas que eu conheça não temos um esquema assim montado. Não são de diplomas de universidades de luxo.
Mas já temos demasiados casos com diplomas passados a domingos?
Sim.
Porque é que isso não é denunciado, proibido, penalizado?
Há um sociólogo holandês, Hofstede, que caracteriza os países usando parâmetros culturais. São basicamente quatro e em dois nós estamos numa posição extrema, que é no carácter feminino da sociedade, aquela coisa do «deixa lá, para o ano há-de ser melhor», e no medo do desconhecido, ou seja, queremos tudo escrito, tudo regulamentado. Isto dá uma contradição muito engraçada e faz com que nada seja levado até às últimas consequências. Por um lado temos as leis, por outro não queremos perguntas. Já no tempo de Salazar, António Ferro descrevia exactamente isto. Se um tipo cometia um crime horroroso, o que a maioria da população queria era matá-lo à pedrada. Mas chegado o julgamento, ao lado do réu há sempre uma mãe chorosa, uma filha desamparada e quando a sentença é dura e justa as pessoas revoltam-se contra o juiz.
A TVI fez uma reportagem a propósito dos governantes que saíram do ministério da educação para editoras de manuais escolares. O que diz sobre isto?
Não conheço a reportagem. Mas é como os que saem de ministros das Obras Púbicas para a construção civil. Sabe, diz-se que Oeiras é o concelho onde há mais intelectuais. Costumo responder, por brincadeira, que os intelectuais de Oeiras votaram todos Isaltino, e os parolos de Felgueiras puseram a senhora a andar. No Brasil havia um que dizia: rouba mas faz... Não pode ser. É quase como os bancos, que depois dão um prémio.
E o que é que tudo isto diz da supervisão?
Mas a A3ES não tem o papel de inspecção.
E devia?
O que podemos fazer é fechar cursos e instituições, como já disse. É complicado ter o papel de inspecção, até em termos da própria teoria de avaliação. No fim de contas, as avaliações exigem confiança mútua.
Foi assim que Vítor Constâncio e Carlos Costa deixaram tantos bancos falir, com base na confiança.
O problema é que se não for assim todos os relatórios que nos são facultados pelas instituições são extremamente defensivos. E de certo modo tem de haver uma conversa aberta entre avaliador e avaliados, que desaparece se houver esse tipo de consequência drástica. Em Inglaterra chegou a haver empresas que treinavam as instituições, encenavam visitas e respostas. Chegavam lá, montavam teatros. Não deu bom resultado.
Uma aluna de Medicina foi expulsa devido a falha burocrática. Não teria sido possível, ao abrigo de uma excepção, encontrar uma solução para o caso?
O problema podia ser resolvido facilmente. Portugal tem sido conenado no Tribunal de Justiça da União Europeia por deixar estes casos andar demasiado tempo. Sem ter a ver com isto, conheço um caso divertidíssimo, num ano em que não houve entradas para a universidade, por altura do 25 de Abril, e um aluno inscreveu-se logo no segundo ano de Engenharia.
Mariano Gago e a investigação [foram a melhor coisa que aconteceu no ensino superior em Portugal nos últimos 20 anos]
Qual foi a melhor coisa que aconteceu no ensino superior em Portugal nos últimos 20 anos?
Provavelmente Mariano Gago e a investigação.
É mais fácil subir num ranking medindo aquilo que se investe que os resultados do que se produz, ou não?
Não gosto de rankings.
Nem dos das ranking das escolas, nos diversos níveis?
Era anedota nos Estados Unidos um ranking publicado sobre as melhores faculdades de Direito. Como as perguntas eram feitas a ex-alunos de diversas universidades, que achavam as suas universidades fantásticas, estes decidiram votar nas suas faculdades. Só que, no caso, a que ficou em segundo ou terceiro lugar, já não me recordo, não tinha faculdade de Direito.
No entanto, os números para si são importantes...
Sempre vivi com números. Mas temos em Portugal um problema grande, toda a gente fala sobre tudo e mais alguma coisa, independentemente do assunto. Os comentadores tanto falam sobre nabos como sobre naves espaciais, e isso faz-me aflição.
É católico?
Não.
Isso é uma questão puramente racional?
Um bocado. A minha mãe era católica, o meu pai não. A minha avó era beatíssima, deve haver também alguma reacção a isso.
Quis contrariar a sua avó em tudo?
[riso] Não. Mas é engraçado, ela até me pagava os estudos todos, mas queria um neto médico — não conseguiu um único. Tenho dois irmãos e 11 primos, nenhum é médico.
Há duas grandes instituições que têm sobrevivido aolongo dos tempos: a Igreja Católica e as universidades
Se o ensino superior fosse um símbolo químico, um elemento, qual seria?
Oxigénio, sem ele não se vive. Há duas grandes instituições que têm sobrevivido aolongo dos tempos: a Igreja Católica e as universidades.
Terminamos com política. Tem algum receio em relação a esta coligação?
O receio que tenho é de certo modo o papel da Europa. Como europeu, se calhar, não acho muita graça a isso. Penso que o que se passou durante não sei quantos meses em relação à questão do não cumprimento do défice, primeiro sobre se haveria ou não multa, depois se suspensão de fundos, ilustra bem a situação. Uma canalhice. A pressão é posta para as pessoas alinharem numa receita.
Por si haveria ou não União Europeia?
Se calhar haveria uma União Europeia diferente. O problema da UE é que não há o mínimo de democracia. Não se consegue influenciar nenhuma lei e não são todos tratados por igual. O que fizeram a António Guterres [apresentar um candidato de última hora a secretário-geral da ONU] foi uma garotice.
Quando fala com os responsáveis das agências congéneres, sente que os problemas são mais ou menos os mesmos ou são diferentes dos portugueses?
Uns são comuns, outros diferentes. Um assunto interessante que discutimos recentemente é o papel do Tribunal de Justiça da União Europeia. Porque é muito engraçado quando os 28 países estão de acordo, opior é quando não se entendem ou é muito difícil arranjar um documento que satisfaça a todos em geral. Os tratados são muito vagos e escritos numa língua que tem várias interpretações. Está tudo óptimo até que um dia alguém se chateie e vá ao tribunal europeu. Aí se verá. Como as leis são pouco explícitas, é sempre um mistério quando é publicada uma portaria e a Comissão Europeia não pode fazer nada. A jurisprudência europeia anda um bocado ao sabor de casos individuais — os juristas que lá estão não têm outro remédio se não passar sentença.
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