O isco que colocam na ponta da câmara subaquática, normalmente cavala, atrai os tubarões. Com sorte, conseguem um vídeo onde avistam um destes peixes cartilagíneos.
“Costumo brincar com os miúdos das escolas: 'Se tocarem na orelha, vêem que é mole, mas que tem forma. E é levezinha. É cartilagem. É disso que os tubarões são feitos. Assim, conseguem ser mais leves, flexíveis e movimentar-se de forma eficaz para caçar as suas presas. Aliás, conseguem dobrar-se sem se partirem, ao contrário de uma dourada (peixe ósseo), em que se juntarmos a cauda com a cabeça a espinha parte-se.” É assim que nas idas às escolas Sofia Henriques, do projeto de investigação FindRayShark, descreve os tubarões que a equipa portuguesa estuda.
O projeto FindRayShark, do MARE - Centro de Ciências do Mar e do Ambiente, nasceu em 2017, na primeira edição do Fundo para a Conservação dos Oceanos do Oceanário de Lisboa e Fundação Oceano Azul. O grupo de cientistas recebeu um financiamento de 49 mil euros para testar tecnologias inovadoras recentes e não-invasivas no estudo de raias e tubarões.
O objetivo é contribuir para a “conservação de raias e tubarões a nível mundial, através da avaliação das suas populações” ao “melhorar a gestão de habitats e recursos marinhos”. No caminho, sensibilizam o público, de crianças a adultos, sobre a importância destas espécies para termos um oceano saudável.
"As pessoas gostam imenso do tema. Suscita muita curiosidade na comunidade. Não só nas crianças, como também nos adultos de todas as idades”, diz Sofia ao SAPO24.
Sobretudo, é um tema que importa na ida a banhos: "Quando as pessoas vão à praia, querem saber se há tubarões e se são um perigo. É um misto de curiosidade com algum receio".
E fica a resposta: os tubarões que têm sido avistados não representam qualquer perigo, garante Sofia. “Em nenhum sítio do planeta os tubarões podem ser muito perigosos para o Homem, pois não fazemos parte da sua dieta natural. As espécies que mais vemos em Portugal mais perto da costa (como a tintureira, o anequim, o cação e a pata-roxa) são espécies que, em geral, se alimentam de pequenos peixes pelágicos (como os carapaus) e outros peixes de maiores dimensões, crustáceos e alguns moluscos, como as lulas. Não têm qualquer interesse em alimentar-se de uma pessoa, que para ele vai ser uma presa enorme e até pode representar perigo. Eles não sabem se lhes podemos fazer mal".
E a verdade é que o Homem constitui perigo para este animal. A necessidade de sensibilizar a população em torno de comportamentos de preservação destes grupos de espécies torna-se maior quando percebemos que "pelo menos 53% dos tubarões, raias e quimeras que vivem no Mar Mediterrâneo estão em risco de extinção". É um número que consta no relatório "The conservation status of sharks, rays, and chimaeras in the Mediterranean Sea", da União Internacional para a Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais (IUCN, em inglês), que sublinha a "urgência em agir para preservar as suas populações e habitats".
Tímido e com medo dos humanos – eis o tubarão
Como o mar está ligado, qualquer tubarão pode passar na nossa costa. “Já foram observados tubarões brancos nos Açores e no Algarve." Mas não é preciso ficar alarmado: "As espécies que são comuns e residem em águas portuguesas não representam qualquer perigo para o Homem."
"O medo que temos dos tubarões é recíproco - ou até maior da parte deles. São espécies muito tímidas, que fogem”, explica Sofia Henriques.
Este ano a água tem estado mais quente. Sofia explica que o aumento da temperatura da água é "um fenómeno que acontece ciclicamente; o ano que vem pode ser de águas mais frias, como foi no ano passado". Assim, é "normal que haja deslocações de algumas dessas espécies que vão atrás do alimento, os pequenos cardumes de peixes pelágicos”.
Um dos avistamentos recentes foi no inicio do mês de agosto, na Praia do Barril, em Tavira. Sofia vai longe: “temos tido conhecimento de que têm aparecido alguns tubarões-azuis juvenis junto a beira-mar desde a Costa da Caparica até à Costa Vicentina. São pequenos tubarões com menos de um metro, e não representam qualquer perigo.”
"Não agarrem nos animais, não os tirem da água nem tentem tirar selfies e brincar com eles"
A investigadora que se dedica a estudar a Biodiversidade e Funcionamento dos Ecossistemas deixa o apelo: "Não agarrem nos animais, não os tirem da água nem tentem tirar selfies e brincar com eles. Vão acabar por falecer porque precisam de estar dentro de água para respirar. O manuseamento e o facto de estarem fora de água provocam lesões graves que podem ser irreversíveis, mesmo que voltem a ser colocados na água.”
“Ao manusear a espécie, estamos a criar impacte nela.” As raias e os tubarões são espécies muito sensíveis. Põem poucos ovos de cada vez e são espécies de crescimento lento. Demoram muito tempo a atingir o tamanho e idade de maturação, ou seja a poderem reproduzir-se. "Se por um lado, há espécies de peixes ósseos que põem centenas ou milhares de ovos de cada vez, este grupo de peixes cartilagíneos (tubarões e raias) já têm poucos descendentes de cada vez e por isso, normalmente, já têm mais cuidado com os ovos, por exemplo colocam-nos no meio de algas ou rochas ou estes desenvolvem-se no interior das mães"
A ação humana tem um impacto direto na conservação destes animais: "Se os pescamos numa fase anterior à maturação ou pescamos as fêmeas “grávidas”, não chegam a reproduzir-se ou a deixar descendência.", conclui.
Há várias maneiras de estes peixes cartilagíneos acabarem num barco de pesca, seja por pesca dirigida a tubarões ou raias, seja por virem nas redes ou anzóis por puro acaso. Sofia diz que a libertação do animal depende da consciência da pessoa: "Se o pescador estiver interessado em vender o animal, acaba por levá-lo para a lota. Se não tiver, muitas vezes liberta-o no mar. E muitos animais sobrevivem, mesmo com pequenos ferimentos."
Sensibilizar para conservar
O FindRayShark é um projeto que “na teoria iria acabar este ano”, conta Sofia Henriques, “mas pedimos mais um ano porque com a Covid-19 não conseguimos fazer a parte mais interativa com a comunidade”.
Têm esperança de que o ano que se avizinha dê para completar essa vertente do projeto. Até porque para Sofia, um dos pontos fortes tem sido a ida às escolas: "Antes da Covid-19, fizemos bastantes ações de sensibilização para ensinar a importância dos tubarões e das raias nos ecossistemas, quais as suas características e como é que podemos (e devemos) contribuir para a sua conservação".
Tinham também previstos workshops "para divulgação de boas práticas", já depois de terem mais resultados do projeto.
A ideia era ser presencial para chegarem a mais pessoas, na zona de Peniche: "Um bocadinho na perspetiva de sensibilizar com os resultados e fazer com pescadores, com empresas marinho-turísticas, com a comunidade em geral."
A investigadora diz que é preciso "estudar melhor estas espécies para perceber o real estado das populações e, havendo algum tipo de pesca destas espécies, que seja sustentável".
"Pela sua raridade, são espécies difíceis de estudar. Não são espécies tão abundantes como os carapaus, por exemplo, em que vemos grandes cardumes".
Conhece-se muito pouco ainda sobre estes animais, sendo que são espécies ameaçadas ou "com um estatuto de conservação, classificadas pela União Internacional para a Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais (IUCN)".
Segundo a lista vermelha desta entidade, cerca de 30% dos tubarões e raias estão em risco de extinção, em todo o mundo.
É o caso do tubarão-azul (prionace glauca), que é conhecido em Portugal como tintureira. Este tubarão nada um pouco por todos os oceanos e desde 2009 que é dado como "Quase Ameaçado" (Near Threatened), internacionalmente. Caso a população desta espécie continue a diminuir, a escala da lista da IUCN pode vir a marcá-lo como “Vulnerável”, por exemplo, sendo que a escala vai até ao menos desejável: a extinção.
A tecnologia ao serviço da natureza
O principal objetivo do FindRayShark é "testar duas técnicas não-invasivas”: câmaras subaquáticas com isco para atrair os indivíduos e analisar o ADN ambiental, que não é mais do que estudar os vestígios de células na água. "No caso dos tubarões, todas as excreções (urina, fezes, bocados de pele) servem para estudar melhor a espécie".
Já têm tido "algum sucesso em amostras controladas, nomeadamente no Oceanário" e agora estão a testar técnicas em águas abertas. "Tem sido um desafio interessante", diz Sofia.
Põem em prática estas "tecnologias relativamente recentes e em desenvolvimento" nas Berlengas. E porquê esta zona como "laboratório"? Sofia explica que é uma zona muito pouco estudada. A passagem do canhão da Nazaré por trás do grupo de pequenas ilhotas nas Berlengas, os Farilhões, faz com que a profundidade aumente drasticamente dos cerca de 30 metros para até 400 metros.
É nesse campo de estudo que se encontram com os animais, sempre sem ter contacto direto com os indivíduos em estudo - até porque "os tubarões são animais muito tímidos. É uma zona de elevado "upwelling" (afloramento), que traz as águas mais profundas, e mais frias, à superfície junto à costa, trazendo nutrientes e alimento.
Depois o caminho faz-se naturalmente: "Se há mais microalgas, há mais zooplâncton, que traz mais pequenos peixes pelágicos. Havendo mais peixes, vamos ter os peixes que os consomem, os predadores". Os tubarões seguem-lhes o rasto, mas também os golfinhos, as baleias e outras espécies.
Colaborar com a ciência é ter “milhões de olhos em todo o lado, sempre"
Para obter melhores resultados, o FindRayShark tirou partido da boa relação com os pescadores locais e fez uma série de inquéritos "para transpor o conhecimento empírico de quem anda no mar para a ciência".
Os resultados foram muito interessantes: "Já temos várias zonas que batem certo com o que prevíamos e com os nossos resultados. É informação muito valiosa".
O FindRayShark tem registado avistamentos de raias ou tubarões para construir um mapa das observações. Para isso, aproveitaram uma aplicação de telemóvel que já existia, a INaturalist, que no fundo é a mesma plataforma do Biodiversity4all, "como versão portuguesa da aplicação".
Com ela, qualquer pessoa pode registar uma observação "seja tubarão, borboleta, escaravelhos, caranguejos...o que quiser." Para isso, basta tirar uma fotografia, fazer upload dela na aplicação. "No caso de identificar um tubarão ou raia em Portugal, o FindRayShark recebe um alerta”, explica Sofia.
Qualquer pessoa pode fazer uma sugestão de identificação do animal até que seja validado. "É muito interessante ter a visão cidadã na ciência. É como se tivéssemos milhões de olhos em todo o lado, sempre".
O papel dos pescadores também é relevante para a investigação. "[Avistar um tubarão] são episódios raros e jogamos aqui com probabilidades do número de vezes que vamos para o mar. Os pescadores das Berlengas têm um conhecimento importantíssimo porque estão no mar todos os dias e todo o ano".
A juntar a isto, têm feito algumas colaborações com a comunidade marítimo-turística (que faz muitas vezes avistamentos de tubarões à superfície), com a pesca lúdica e com a Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (SPEA), que ao estudar espécies de aves que mergulham para obter alimento, conseguiram alguns avistamentos de tubarões e raias. Todos estes contribuem para um estudo mais completo destas espécies.
A equipa está a crescer
O FindRayShark tem hoje, três anos volvidos de projeto, uma equipa mais alargada que as cinco pessoas iniciais, vindas de Biologia e Genética.
Um dos polos do MARE, o Centro de Investigação do FindRayShark, é na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, de onde são alguns investigadores que estão no projeto FindRayShark. Outros parceiros são a Universidade do Porto e a JustDive, uma escola naútica de Peniche com quem fazem as saídas para estudo.
Para além de Sofia Henriques, Marisa Batista e Miguel Pais, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e do Centro de Ciências do Mar e do Ambiente (MARE), estão envolvidos Ana Veríssimo, do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos (CIBIO- In-BIO), Rita Vasconcelos, do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA), e Jorge Fontes, do OKEANOS - Universidade dos Açores.
"Neste momento temos alunos interessados e pessoas de outros projetos a colaborar no FindRayShark." Dessas pessoas, Sofia destaca Catarina Abril, aluna de mestrado do Centro de Ciências do Mar e do Ambiente (MARE) pela dedicação ao projeto.
Pesquisa e recolha de testemunho por Magda Cruz
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