Foi um ano duro, mas nem tudo é mau. Alguns tiveram boas razões para celebrar naquele que ficará para a História como o ano da pandemia. Este é o Almanaque da Felicidade de 2020. Se também teve motivos para ser feliz este ano partilhe connosco, envie um email para 24@sapo.pt


Quando a pandemia da covid-19 chegou a Portugal no início de março, ainda estava o país a discutir o que fazer e conceitos como “distanciamento social” ou “imunização” pareciam alienígenas, já havia quem se questionasse como ajudar a detetar esta misteriosa e invisível doença entre a população. Maria Manuela Mota foi uma dessas pessoas.

Diretora executiva do Instituto de Medicina Molecular João Lobo Antunes, em Lisboa, desde 2014, a cientista de 49 anos — originária da Madalena, freguesia de Vila Nova de Gaia — apercebeu-se que as técnicas e os reagentes usados em laboratório pela sua equipa eram exatamente os mesmos necessários para a criação de kits de diagnóstico à covid-19.

A ideia, adiante-se, não se deu ao acaso: doutorada em parasitologia, Maria Manuela Mota não é alheia a doenças, especialmente a uma, a Malária, que anualmente infeta mais de 200 milhões de pessoas em todo o mundo. É ao estudo do parasita que a causa, o "Plasmodium", transmitido através da picada do mosquito “Anopheles”, que tem dedicado os últimos 25 anos da sua vida.

Bióloga de formação, o seu interesse até foi despertado por outro parasita, o da Leishmaniose, enquanto estava a tirar um mestrado em Imunologia e foi mais movido “pela curiosidade biológica, de ver dois organismos a viverem juntos” do que “a ideia de que era para salvar o mundo”, como admitiu em entrevista ao Jornal Económico

Mas se salvar o mundo não era um fim em si mesmo, não se pode dizer que Maria Manuela Mota não tem contribuído para melhorá-lo um pouco mais, já que a cientista e a sua equipa têm sido responsáveis por várias descobertas importantes para o esforço de erradicação da Malária. 

Uma delas ocorreu no ano de 2001, quando se encontrava a trabalhar em Nova Iorque e descobriu que o parasita perfura várias células até chegar ao fígado, onde se aloja inicialmente, replicando-se antes de passar para a corrente sanguínea, infetando os glóbulos vermelhos. 19 anos depois, a sua equipa atingiu outro importante patamar. Em novembro foi revelada a forma como o parasita entra neste órgão: segregando uma proteína chamada EXP2 que quebra as defesas das células do fígado (chamadas hepatócitos), permitindo assim a sua entrada. Com esta descoberta, depreende-se que, se for possível bloquear ou diminuir a ação da EXP2, é possível prevenir a infeção do fígado e interromper assim a malária antes de causar males maiores.

Como resultado dos seus esforços, apesar de não trabalhar para receber prémios, tem-nos recebido em catadupa. O palmarés é demasiado longo para enumerar, bastando referir que em 2005 foi ordenada Comendadora da Ordem do Infante D. Henrique e, em 2013, agraciada com o Prémio Pessoa pelo seu trabalho. Mais recentemente, recebeu o Prémio Pfizer, em 2017, e o Sanofi-Pasteur, em 2018.

Maria Manuel Mota
Maria Manuel Mota Maria Manuel Mota a discursar durante a cerimónia onde recebeu o Prémio Pessoa 2013 na Culturgest em Lisboa, 2 de junho de 2014. créditos: MIGUEL A. LOPES/LUSA

Uma iniciativa que “não reinventou a roda” mas ajudou o país

Outra das facetas conhecidas de Maria Manuel Mota é a de “cientista ativista”, rótulo com o qual não se importa já que, além de apoiar a causa feminista, o direito à educação e o combate às alterações climáticas, tem sido uma das faces mais visíveis na defesa do seu setor de atividade, pugnando por melhores condições e estabilidade para os investigadores trabalharem, admitindo até passar “muitas noites sem dormir”.

“O meu sonho é que houvesse um pacto para o conhecimento — a ciência como conhecimento. Um pacto de regime para a ciência entre todos os partidos. Tem de haver um financiamento garantido e previsível. Para nós, isto é o essencial”, contou em entrevista ao jornal Público.

Como foi ser feliz num ano como 2020?

A felicidade é uma coisa muito relativa. Sem dúvida que o papel que eu vi da ciência para contribuir para a resolução deste problema é talvez o que me deixa mais feliz, assim como que a instituição que dirijo, o Instituto de Medicina Molecular, tenha tido um papel tão importante e que tenha mobilizado. Gosto de pensar que as pessoas da nossa instituição todas se ofereceram para ajudar, deixa-me orgulhosa, como uma mãe para os filhos.

Mas acima de tudo, o que me faz mais feliz é achar que em 2021 se pode viver quase um novo renascimento, em pessoas percebam globalmente — fora os extremos de quem acredita em teorias da conspiração — que com ciência e com racionalidade, todos juntos, conseguimos arranjar soluções. Quando é que há nove meses achávamos que estaríamos a vacinar agora? Nem eu como cientista! Pensava que talvez ocorresse para o ano. Com moderação, sem entrarmos em pânico excessivo e sem facilitismos, conseguimos solucionar os problemas.

— Maria Manuel Mota

No ano passado, encabeçou uma iniciativa que defendia o fim do IVA 23% na Ciência, ou, pelo menos, o reembolso desse valor para os laboratórios científicos. Os seus esforços e dos seus colegas foram ouvidos, tendo a medida sido inscrita no Orçamento do Estado para 2020 após obter apoio por parte do Partido Socialista. Este ano, assinou um novo manifesto reclamando uma estratégia para o setor.

Esse papel de lobista pela ciência tornou também mais fácil o esforço que encetou para a criação dos kits de diagnóstico para detetar a covid-19. A cientista recordou ao SAPO24 os passos tomados num processo que teve início a 4 de março, quando lhe chegaram notícias de casos no Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Com a pressão a aumentar, a necessidade de testes também cresceu, ao contrário da sua disponibilidade, ainda parca.

Pelas instalações do hospital lisboeta serem anexas às do Instituto de Medicina Molecular (IMM), Maria Manuel Mota admite que a criação dos destes serviu primeiramente um propósito bem específico."Nós na altura, quando fizemos, tenho de deixar bem claro, foi para ajudar os nossos colegas do Hospital de Santa Maria e não para fazer algo para o país inteiro”, conta. 

No entanto, em meados de março, com o número de casos a subir, ficou patente ser necessária a criação de um teste feito em Portugal para responder à pandemia. Já confinada, Maria Manuel Mota desdobrou-se em contactos: desde a uma empresa nacional para obter os reagentes, ao Governo, à Direção-Geral da Saúde e ao Instituto Nacional Ricardo Jorge para fazer um teste de controlo e aprovar os kits para uso pleno.

“Foi tudo muito recetivo: em 48 horas, tínhamos o protocolo oficial do teste aprovado”, diz, sublinhando que a sua equipa “não reinventou a roda”. Mas pô-la a rolar, já que este protocolo permitiu então a outras instituições que começassem a criar os testes. Para além disso, estes novos kits cedo adquiriram enorme importância, já que foram requeridos pelo Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social para ser usados em lares no início de abril.

Nessa altura, foi criado um centro de diagnóstico com capacidade para processar 100 a 200 amostras por dia, tendo uma equipa de 140 voluntários — de alunos de doutoramento a investigadores com as pesquisas interrompidas devido à pandemia — a trabalhar de manhã à noite. Hoje, com o IMM reaberto, o número de trabalhadores baixou, mas o de amostras processadas subiu, para entre 1000 a 2000 por dia, algo, de resto, planeado desde cedo temendo-se o aumento de casos na segunda vaga. “Foi preciso trabalhar como uma empresa”, conta a cientista, explicando que o aumento de capacidade deveu-se à compra de robots para fazer o processamento e à profissionalização do centro, passando a haver trabalhadores a tempo inteiro, algo apenas possível com o financiamento de várias fundações e empresas.

“Foi nisso que, no fundo, estivemos envolvidos - usando o nosso conhecimento, levando o treino que tínhamos na nossa instituição para arranjar uma solução para o problema que tínhamos ali em mãos. É o que os cientistas fazem, aparece-lhes um problema e arranjam uma solução”, conta.

“Um filme daquilo que se passou no nosso país”

O trabalho de Maria Manuel Mota e do IMM, porém, não se ficou apenas pela criação dos kits de diagnóstico. De forma a compor uma imagem de como a pandemia tinha afetado o país e qual o grau de imunização da população à covid-19, foi aberto um estudo serológico a nível nacional, aberto a 8 de setembro para 12 mil voluntários, mas que teve de ser alargado para 13 mil dado o elevado número de participações.

“A ideia foi ter uma imagem de como estava o país em setembro, no final da primeira vaga e antes da segunda”, explica a cientista. Os resultados, de que apenas, 1,9% dos inquiridos tinham contraído o vírus, provaram que a imunidade de grupo estava longe, mas também demonstrou que “os portugueses se portaram muito bem” e que “portaram-se de forma incrível para achatar a curva” da primeira vaga, diz Maria Manuel Mota.

Um próximo estudo vai ser aberto a 11 de janeiro, para ter uma imagem “da segunda vaga e com o contacto decorrido no Natal”, sendo expectável que a percentagem de infetados suba dado o crescimento de casos nos últimos meses.

A importância destes estudos, defende a bióloga, prende-se com a necessidade de acautelar o futuro. "Esta não foi a primeira pandemia nem vai ser a última das nossas vidas e é muito importante termos um filme daquilo que se passou no nosso país, porque vamos perceber o que é que fizemos bem, o que fizemos mal e o que podíamos melhorar. Temos de estar preparados”, diz.

Ainda assim, com a chegada das vacinas — que, admite, não estava à espera que ocorresse ainda em 2020 — Maria Manuela Mota aponta para 2021 como “um ano de esperança”. “Temos a vacina e vamos sair desta situação” promete, mas deixando uma ressalva: “Não podemos pensar que é só estalar os dedos. É preciso ter em conta que isto vai demorar”.