Considera este livro um romance histórico ou uma biografia?
É uma biografia ficcionada. Baseada em factos, mas ficcionada.
Um romance histórico, portanto. Fez muita pesquisa? Há documentação abundante?
Infelizmente, tive de fazer muita pesquisa. Há alguma documentação que pode ser consultada online. Bastantes dos escritos dele e, depois, li imensas biografias.
Dá muita ênfase ao relacionamento dele com a segunda mulher, Eleonor Ernestina. Também li muito sobre o Marquês e não me lembro de ler nada sobre ele ter uma relação tão afectuosa com ela.
Essa parte é mais ficcionada. Mas existe documentação, as cartas dela, que estão publicadas pela Fundação Marquês de Pombal. Li-as no Palácio de Oeiras.
Uma coisa que não menciona, e achei estranho, é ele ter sido maçon.
Já era muita coisa…
Se bem que ele não tinha um comportamento nada maçónico, embora, surpreendentemente, o Palácio de Oeiras esteja cheio de símbolos maçónicos.
Pois está. Mas isso é um outro nível de complicação. Tive de optar por excluir algumas coisas que não me parecem essenciais para o perfil dele.
Como psicóloga, interessa-se mais pela personalidade dele, não é? Aliás isso está em todas as suas biografias.
Esses dois níveis interagem. O nível das ações e o nível do tipo de personalidade. Ele é retratado como um narcisista maligno, obviamente!
Quer dizer, um Trump do antigamente.
Exatamente. Aliás, aquela coisa de “eu, Sebastião José”, foi inspirado no próprio Trump. Porque o Trump também fala de si próprio assim: “Estou a ser julgado por um juiz que não gosta de Trump.”
Acha que esse tipo de narcisismo maligno, que era possível de exercer nos tempos do Ancien Regime não mudou nada para a actualidade?
Mudou o grau de crueldade que é aceitável. Essa desordem de personalidade grave, que está no limite da psicopatia, podemos encontrá-la no Trump, no Putin, e em tantos outros.
Eu estou a escrever sobre um ditador do século XVIII, mas muitas das suas características podem ser encontradas no século XXI.
Nessa época era mais possível, claro. Também em França, a ditadura era exercida por um “primeiro ministro” em nome do rei, como foram os casos do Richelieu e do Mazarin. Todos terríveis, quando chegavam ao poder.
E o Putin? E o Trump? E o Bolsonaro? Não são melhores.
Uma coisa que diz, e que aliás é do conhecimento comum, é que as pessoas assim acham-se perseguidas. Quer dizer, são más como reação a serem perseguidas e incompreendidas. É um quadro típico dessa patologia?
Não é bem. Podem ter um laivo de paranóia, mas o que há é uma insegurança intrínseca. No caso do Marquês, isso está explorado nas relações com o pai e com o avô, e tem a ver com a condição social da família. Por isso lhe chamavam o “fidalgote”. Essa insegurança e baixa autoestima faz com que haja uma obsessão do controlo e uma reacção absolutamente desproporcionada - no caso do Marquês, absolutamente cruel - em relação a todas as críticas e oposições. No caso dele não se pode dizer que este diagnóstico foi inventado, porque os dados são mais que evidentes. Pode ter sido inventada a forma de pensamento, mas a plausibilidade duma postura estratégica e maquiavélica, com base nos escritos dele e numa série de documentação, é muito forte.
É interessante que ele fosse um narcisista maligno e, ao mesmo tempo, uma pessoa que fez muito pelo país. Põe-no a falar muito no “interesse nacional”, mas não tenho a certeza se esse interesse estava na cabeça dele - apesar de ter feito o país avançar muito.
Também não tenho a certeza. Também encontramos essa narrativa no Putin. O narrador nunca sabe se ele é assim, mas fala sempre no interesse nacional, no progresso e mais não sei quê, para justificar as acções mais terríveis deste mundo. De qualquer maneira, ele foi influenciado pelo que viu lá fora - era um estrangeirado - e quis implementar aqui, mas também o fez de uma forma relativamente atabalhoada.
Isso é “à portuguesa”.
Exatamente!
O facto é que o país progrediu muito com ele, e depois, quando foi a viradeira, voltou para trás.
Recuou, até porque ele procurou homens que tivessem uma outra visão, que fossem leais e ao mesmo tempo seguissem as suas ideias. Homens que qualidade, que não tinham necessariamente que vir da nobreza. Depois dele sair, voltaram os privilégios dos grandes fidalgos em detrimento da competência
A ação dele foi uma novidade neste país. Mais “nouveau regime”.
Exatamente. Por exemplo, em relação à Guerra Fantástica, que eu não conhecia antes de me documentar para o livro, o estado do exército tinha muito a ver com o modo como as tropas eram constituídas. Os oficiais eram os meninos finos, filhos dos nobres, que não percebiam nada de guerra.
Quando fiz tropa, em 1970, ainda se usava o manual do Conde de Lipe, imagine! Com atualizações, mas tinha muitas frases intocadas. Havia uma frase, que não sei se ainda lá estava, mas sei que era do original, em que o conde escrevia: “Os sargentos têm de saber ler e escrever porque os oficiais, sendo nobres, não precisam.”
Há uma grande diferença entre a nobreza portuguesa, que vivia de rendas e tinha muito orgulho em não fazer nada, e a nobreza inglesa, que fazia questão de ser erudita para mostrar que não precisava de trabalhar. A mesma snobeira, com resultados completamente diferentes. Isso prejudicou-nos bastante.
Isso e a expulsão dos judeus, também. É a mentalidade de um determinado tipo de elite. E não sei até que ponto as elites atuais não continuam a pensar que têm esse direito de ser elites.
É como o medo; o Marquês de Pombal governou pelo medo, e o fascismo (do Salazar), também. E esse medo, talvez não seja genético, mas é passado de geração em geração.
Há uma frase do Maquiavel sobre isso, não há?
“É melhor ser temido do que amado”.
Hoje já não é tanto assim. É interessante estabelecer essa comparação entre um tirano do “ancien regime” e um tirano contemporâneo. Porque continua a haver diferenças de classe e pessoas que sobem de baixo, mas existe uma consciência de que o poder vem da vontade do povo, muito diferente da que havia no tempo do Marquês.
Até certo ponto, sim. Agora, o livro é uma biografia romanceada, mas é um livro político, no sentido em que o Marquês representa um paradigma. É um sedutor, uma das características dos narcisos. Não me estou a referir ao facto de ele seduzir mulheres; é na sua forma de agir com todos e foi essa sedução que lhe permitiu apropriar-se de camadas de poder. E, depois dessa apropriação e da criação de clientelas, arranjou formas de controlar e manter o poder. E também criou uma coisa absolutamente moderna, que é uma narrativa do progresso para justificar os seus actos. A propaganda que fez, por exemplo, contra os jesuitas. Também se preocupou com a forma como seria visto no futuro, depois da viradeira. Acho isto extraordinário.
A preocupação de ficar para a posteridade, não é?
Exatamente. A forma como havia de ficar a posteridade. Parece o Estaline a recortar as fotografias para apagar pessoas da História. Imagine o Marquês com os algoritmos de hoje!
Bom, aquilo a que nós chamamos hoje de “fake news” é uma coisa que sempre existiu. Aquelas cartas, que eram privadas mas escritas para se tornaram públicas, era a desinformação consciente. E todos faziam, ele e os inimigos dele.
O termo “fake news” só tem a ver com a dimensão da circulação.
Naquela altura circulavam menos do que hoje porque também havia uma menor percentagem de pessoas letradas.
Eu gosto muito daquela definição do Milan Kundera sobre os romances históricos; há os que ilustram uma determinada época e os que mostram aquilo que é intrinsecamente humano, independentemente da época. Como é o caso da aspiração ao Poder, a necessidade de Poder, o seu caráter libidinoso!
Pois, isso não mudou nada desde a aurora das civilizações.
E as estratégias que se usam para conquistar e manter o Poder, sempre as mesmas.
Não fala muito do Pina Manique, o primeiro “chefe da polícia política”, como seria mais tarde o famoso Fouché em França.
Está lá referenciado. Mas não queria que o livro fosse extenso demais. Ele era a mão armada do Marquês, até ao último momento. Foi ele que organizou o incêndio da Trafaria da população de Arenilha para Vila Real de Santo António.
Percebo que o livro é sobretudo um retrato psicológico do Marquês, e portanto os acontecimentos históricos são acessórios desse retrato.
Agora, uma coisa que o livro mostra, sem o dizer, é que o D. José era um inútil, que pouco se interessava pela governação e preferia caçar e ouvir música. Tinha o Marquês para governar o país por ele. Um menino mimado.
Mas havia certas situações, nomeadamente no processo dos Távora, em que o Marquês diz mata e o Rei esfola.
O Rei terá achado que tinha de mostrar publicamente que estava ultrajado, por causa dos ciúmes da mulher, Mariana Vitória, em relação ao namoro dele com a “marquesinha” Teresa de Távora e Lourena.
O Rei acreditou na conspiração congeminada pelo Marquês.
Acha que não foram os Távora que atentaram contra o Rei?
O Duque de Aveiro talvez, os Távora não. Foram torturados e mortos porque eram inimigos de Pombal. Daquilo que eu li, é muito pouco provável que estivessem envolvidos na conspiração. Não sei, não posso garantir que o D. Nuno e a Leonor de Távora, pelo menos não ivessem conhecimento, mas o Francisco não me parece. O filho mais velho, Luis Bernardo, marido da “marquesinha”, estava num baile na noite do atentado.
Mas então, voltando ao quadro do que é o Poder, as ferramentas continuam as mesmas.
Pois continuam. Aliás foi uma razão que me levou a escrever este livro é que não há um romance biográfico do Marquês desde o século XIX. Há muitas biografias, mas nenhum romance. O Marquês, enquanto figura ficcionada aparece em muitos romances, mas acessoriamente. Nunca como protagonista.
Claro, qualquer romance que se passe naquela época tem de ter referências ao Marquês. Mas sobre a personalidade dele, propriamente dito, só podemos saber através do que ele escreveu, não é? Nesse aspeto, acho que fez um excelente trabalho. Pombal sempre me fascinou e li muito sobre ele, porque é uma pessoa muito má que fez muito bem ao país.
É a impressão que eu tenho, mais ou menos. Quando vejo as maquinações dele para implicar os Távora no regicídio, a ordem de como deviam ser torturados… Ao escrever sobre ele, com uma certa ambiguidade em relação à primeira e terceira pessoa, pensei: será que também eu sou um bocado má?
Mas usa esse processo narrativo (em que mistura os pensamentos dele, na primeira pessoa, com as ações, na terceira) que faz todo o sentido, para explicar o que ele pensava antes de ir convencer o D. José I a assinar os despachos. Os textos eram dele, mas o Rei tinha de assinar para terem efeito e, também, para ele ter o argumento de que apenas cumpria a vontade de Sua Majestade.
Pois, o D. José andava sempre ocupadíssimo com a caça e a ópera, tinha muito com que se entreter e portanto dava-lhe jeito que o Marquês tratasse dos assuntos desagradáveis.
E aquele fiel secretário dele, o Caetano, existiu? Leu coisas sobre ele?
Existiu e há referências. Eu ampliei um bocadinho.
Agora, a questão dos jesuítas. Como sabe, aquela enorme estátua do Marquês na rotunda (em Lisboa) foi erigida pelos os jacobinos da I República, que gostavam muito dele por ter expulso os jesuítas.
O Marquês não viveu nem ficou na História discretamente. Ou era odiado, ou era amado, conforme a ideologia.
Há uma questão que se levanta sempre quando se escreve sobre outras épocas, que é a linguagem. Não se pode usar a linguagem da época porque os leitores não percebem, mas não se pode usar a linguagem contemporânea porque tira o sabor daquele período. Há um equilíbrio, e acho que resolveu isso muito bem, porque usa a língua de hoje, mas com expressões do século XVIII.
Foi uma maneira de mostrar o narcisismo de Pombal - narcisismo é um conceito moderno, do final do século XIX - e ao mesmo tempo conservar o cerimonial, os salamaleques do século XVIII. Mas medi cuidadosamente esse equilíbrio, foi contabilizado à página.
Quanto tempo é que levou a escrever o livro?
Dois anos. De todos os que fiz, foi o que levou mais tempo. Mas durante esses dois anos continuei a trabalhar como professora no ISPA.
Muito bem; tem mais alguma coisa a dizer em sua defesa?
A minha defesa… Foi um livro que eu tive particular prazer em escrever. Depois de ter aquilo arrumado, que dá muito trabalho a arrumar, particularmente a linguagem. Os escritos dele têm uma elegância que eu não queria perder.
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