Nasceu em Angola, Catabola, e foi torturado meses a fio na cadeia de São Paulo, em Luanda, e só não foi fuzilado por um triz. Este é o lado oculto do ex-ministro da Economia António Costa Silva, que relata os horrores da guerra em "Desconseguiram Angola", um romance escrito no auge da guerra civil. E que podia passar-se ali, em Gaza ou no Sudão.

Apaixonado pelo planeta, pela sua história e por tentar ver no passado como podemos fazer face aos problemas de hoje, o que o faz correr é, mais do que nunca, "o conhecimento".

O SAPO24 publica hoje a segunda parte de uma entrevista com António Costa Silva, desta vez sobre Portugal, a União Europeia e o mundo. E o mar, que nos une e que nos separa. Tudo com algumas histórias caricatas sobre como nos boicotamos sem precisar da ajuda de ninguém.

"Temos todas as condições para ser diferentes, mas somos nós que nos boicotamos"

A União Europeia está a ficar para trás. O projeto europeu está comprometido?

O que amarga a Europa é a falta de clarividência política dos europeus, a falta de pensamento estruturado e estratégico - e todas as rivalidades que existem nos 27 Estados-membros. Temos todas as condições para ser diferentes, mas somos nós que nos boicotamos.

Os líderes europeus estão armadilhados nesta questão das democracias com eleições frequentes, pensam sobretudo na próxima eleição, não pensam na próxima geração ou no próximo desenvolvimento. Depois, que medidas tomam? Medidas paliativas, de curto prazo, não há um pensamento a médio/longo prazo.

Somos todos angolanos [referência ao livro "Desconseguimos Angola" e à destruição do país]?

Somos todos angolanos, nesse sentido não há muita diferença. A única diferença é que a Angola passou por um processo extremamente lesivo com as guerras [colonial e civil]. Mas também temos hoje uma guerra na Europa, que dura há três anos, e temos a destruição no Médio Oriente.

A Europa nunca identificou os seus interesses permanentes. Um antigo político inglês, Lord Palmerston, dizia que para termos pensamento estratégico é fundamental saber quais são os nossos interesses permanentes. É evidente que se for aos países nórdicos, eles têm determinados interesses, se for ao sul, têm outros. O que se deve fazer é consultar tudo isto. E trabalhar.

"Desconseguiram Angola". Este é o romance que o ex-ministro António Costa Silva escreveu sob pseudónimo
"Desconseguiram Angola". Este é o romance que o ex-ministro António Costa Silva escreveu sob pseudónimo
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O presidente do Conselho Europeu [António Costa] poderá fazer isso com todas as suas capacidades e habilidades: consultar os vários países, identificar os interesses de cada um, ter este diálogo. Depois, com essa matriz, reunir o Conselho e dizer: este é o nosso pensamento estratégico, vamos atuar desta maneira.

Estamos sempre dependentes de alguma coisa?

Pensamento estratégico significa menor dependência dos Estados Unidos, a Europa contar consigo própria. É começar nas indústrias de defesa e segurança, pôr o relatório Draghi a funcionar e não reagir como o ministro das Finanças alemão, que disse logo que não há dinheiro.

Temos de criar o Mercado Europeu de Capitais, completar a União Bancária, desenvolver todas as medidas que possam colmatar o fosso tecnológico com os Estados Unidos e com a China. Há muita coisa a fazer, mas a Europa perde-se muitas vezes em reuniões burocráticas e não decide.

Bom, Portugal está há 60 anos a discutir a localização de um aeroporto...

É verdade, tem toda a razão. Arriscamos ser uma espécie de país da não decisão. Adiamos continuamente as decisões, esperemos que agora o aeroporto avance. Mas é uma ilustração clara. Não decidir é absolutamente lesivo, porque deixa as coisas nas meias-tintas, ficamos a meio da ponte. E é o que acontece muitas vezes em relação à Europa.

Falou em líderes. Mas se houvesse visão, a União Europeia tinha-se afundado?

Houve muita falta de visão. Fui convidado pelos deputados portugueses ao Parlamento Europeu, no início deste século, para ir discutir com as instâncias europeias a política de energia. Levei, na altura, um mapa da Europa com a dependência do gás russo, alguns países de Leste e do centro da Europa com dependências de 100% e de 90%.

Defendi que a Península Ibérica, que já recebia nessa época cerca de 50% do gás natural liquefeito, se ligasse através de gasodutos com o centro da Europa, para haver alternativas. Fomos sempre hostilizados, porque diziam que a Rússia era um parceiro fiável - mesmo com as minhas explicações de que a Rússia é diferente da União Soviética. A URSS nunca falhou, mesmo no auge da Guerra Fria, mas agora temos um presidente que pode usar a energia como arma geopolítica. Nunca quiseram lidar com isso. Isto é uma grande miopia política.

Veja o que se passou a primeira vez que Donald Trump ganhou a presidência dos Estados Unidos. Há uma fotografia extraordinária, em que Donald Trump está sentado com ar de menino mimado, a chanceler alemã Angela Merkel a crescer para ele, o presidente Macron desorientado. Quando saíram dessa reunião, lembro-me de a chanceler dizer: "Agora, Europa, temos de contar apenas connosco e mudar as coisas". Mas não aconteceu nada.

Portanto, os líderes europeus fazem lembrar um bocado a nobreza francesa quando, depois da revolução, restaurou a monarquia. Quando Talleyrand voltou ao poder, ele que era um grande diplomata, mas muito cínico, e viu aqueles nobres todos regressar, os Bourbon e outros, disse: "Uns não aprenderam nada, outros não esqueceram nada". A Europa está assim: não esquecemos nada, mas também não aprendemos nada.

E criou muitas dependências pelo caminho? Falou na energia, mas existem outras, vimos isso na pandemia, vemos agora com a defesa? 

O funcionamento da União Europeia - sentia muito isso quando era ministro da Economia e representava Portugal nos conselhos da Competitividade -, é muito burocrático, cada um chega, lê as suas coisas, volta a guardar. Temos de reagir a isto, construir uma Europa diferente, senão vamos bater com a cabeça na parede.

A Europa, infelizmente, refugia-se muito na regulamentação. Fiz um levantamento, havia milhares de regulamentos feitos no últimos anos, que se sobrepõem e asfixiam as empresas. As empresas têm de ter três, quatro, cinco departamentos, um batalhão só para tratar de regulação. E perdem competitividade, porque não se centram no que interessa. Sou favorável à regulação, mas a essencial. A burocracia europeia mete-se em tudo e mais alguma coisa, isto é extremamente danoso para o futuro.

"A União Europeia tem regras estúpidas"

Foi ficando cada vez mais longe dos Estados Unidos e da China.

A Europa deixou cavar um fosso tecnológico em relação à China e aos Estados Unidos. Nos anos 90, a Europa produzia cerca de 23-24% de microchips, hoje produz menos de 7%. As patentes de inteligência artificial da Europa são apenas 7%. Quando olha para o software, os EUA dominam com 76%, a Europa só tem 6%. Das 20 maiores empresas tecnológicas do mundo só uma é europeia. Como é que isto sucedeu?

Em 2008, o PIB da União Europeia era semelhante ao dos Estados Unidos, eram os dois grandes centros económicos. Mas nestes últimos anos perdemos cerca de 20% em comparação com os Estados Unidos. E os líderes europeus nunca reagiram.

A poupança dos europeus, que em média são mais ricos quando comparados com o resto do mundo, continua a sair para investir nos Estados Unidos. Porque é que a Europa não retém este valor? 

Desculpe a resposta tão bruta: a União Europeia tem regras estúpidas.

Por exemplo, na questão das startups: estávamos a trabalhar nisto com a Startup Portugal e com o Conselho Estratégico. Nos Estados Unidos, os investidores institucionais - fundos, seguros, fundos de poupança - podem investir em startups. Na Europa, as normas contabilísticas e precaucionárias, como lhes chamam, exigem que quem invista nestes projetos, que são projetos de futuro, tenha de provisionar à cabeça 50% como perdas. Portanto, os investidores institucionais não investem.

É exatamente a mesma coisa com as poupanças. A Europa, que é rica a esse nível, o que está a fazer é subsidiar desenvolvimento dos Estados Unidos. Estas eram as questões que eu levava aos conselhos de Competitividade, mas havia logo uma grande agitação por eu estar a questionar a regulamentação, a inovação, o investimento. Mudar essas regras é uma dificuldade muito grande, mas é uma luta que tem de se fazer.

Mas em Portugal estamos a desenvolver muito o nosso sistema de startups, temos 4.700 startups, mas quando vão granjear apoios financeiros, às vezes, têm de ir para os Estados Unidos e fogem do espaço europeu. A Europa deixou-se atolar numa série de problemas e não consegue sair daí.

"A Europa tem de deixar estar amarrada aos Estados Unidos"

Ainda a propósito das dependências, faz sentido a Europa definir um modelo para si e querer que sejam os Estados Unidos ou outros a pagar, como acontece no caso da NATO?

A Europa habituou-se a que fossem os Estados Unidos a pagar a sua segurança, a proteção da Europa. Vivemos debaixo do guarda-chuva americano. Simultaneamente, a Europa habituou-se a prosperar num mundo de regras e de instituições. Tudo isto está em tensão.

Começa logo com a invasão da Ucrânia pela Rússia, todo o modelo industrial europeu ficou em tensão. A Alemanha prosperava porque tinha o gás russo barato e exportava sobretudo para a China. Hoje tem de importar gás dos Estados Unidos e do Qatar, a um preço muito mais elevado, o modelo industrial alemão não é competitivo.   

Além disso, a Europa apostou sobretudo nas tecnologias médias, nos automóveis, na indústria química. Investe somas de dinheiro que não conduzem à criação de empresas competitivas a nível global. Porquê? Porque a Europa não tem um mercado de capitais para financiar empresas.

Falou na defesa, precisamos de desenvolver de segurança na Europa, a questão do exército, dos equipamentos. Mas andamos sempre a discutir e esperamos até à última hora para ver se Trump é ou não eleito, quando a Europa tem de deixar estar amarrada aos Estados Unidos.

Sou favorável a desenvolver e preservar, na medida do possível, a cooperação transatlântica, mas, atenção, o presidente Trump é capaz de desenvolver um conjunto de tarifas para os produtos europeus e isso será danoso para a Europa.

créditos: Inês Vales

Já veio dizer que será mais brando com Itália, gosta de Meloni. 

Trump vai usar isso para dividir a Europa; a Itália, a Hungria, os seus apaniguados. A Europa tem de responder, mas é fundamental, depois de 25 anos de negociação, que o Tratado do Mercosul avance. Só que a França já está a fazer tudo para sabotar o Mercosul, por causa dos produtos agrícolas - quando aquilo tem até quotas para responder a isso.

Ou seja, são os próprios europeus, com a sua visão muito centrada no umbigo, que não propiciam condições para haver uma unidade política.

Macron vem a Portugal daqui a um mês. O que deviam o governo e o Parlamento dizer-lhe?

Era levá-lo a dizer publicamente que apoia o Mercosul, que vamos abrir outros espaços, não vamos depender só dos Estados Unidos - que são, obviamente, um parceiro que vamos continuar a tentar preservar.

Mas ainda estamos à espera que a nossa sorte venha de apostas e de humores do outro lado do Atlântico. Não vai ser assim, como estamos a ver. E em lugar de atuarmos, de desenvolvermos todos os procedimentos, de articular uma união política entre os países, de identificarmos bem quais são os interesses permanentes da Europa e como os podemos defender, estamos sempre à espera de Godot, como diria Samuel Beckett. Só que Godot nunca chega.

"A Europa devia ter muito mais atenção ao mar. Em Portugal, o mar já vale 5% do PIB"

Falou do Atlântico, queria falar de mar. Portugal tem a maior zona económica exclusiva da Europa. Estamos a aproveitá-la? 

A Europa devia ter muito mais atenção ao mar. E, atenção, em Portugal o mar já vale cerca de 5% do PIB, com algumas áreas em desenvolvimento. Mas podemos fazer muito mais. O que se  passa é que as políticas europeias estão num processo de grande continentalização.

Como podemos pressionar para mudar isso?

A saída do Reino Unido é letal para nós, países atlânticos, porque era um dos países que trazia aqui algum equilíbrio, não só no mar, mas também no liberalismo que é necessário para contrabalançar uma visão muito estatista e muito regulamentar da União Europeia.

Esta continentalização impede que a Europa desenvolva uma estratégia, porque a Alemanha, evidentemente, e outros países da Europa central, não estão muito virados para aí. E cabe a Portugal, à Espanha, com a França, com a Irlanda, mas também com o Reino Unido e com os países nórdicos, desenvolver uma estratégia atlântica.

O processo de Extensão da Plataforma Continental continua nas Nações Unidas, mas é extremamente moroso. Porque a comissão das Nações Unidas não tem métodos de trabalho, é uma coisa que não consigo compreender. Ou seja, os problemas podem regressar sempre ao grau zero.

A nossa Estrutura de Missão para a Extensão da Plataforma Continental tem feito um trabalho extraordinário - geológico, geofísico, científico -, mas do lado de lá temos uma amálgama. Devíamos avançar por pontos: extensão da Madeira com o continente, Portugal com a Galiza, Açores, e ir fechando dossiers. Não é o que acontece.

É preciso ver que há muitas disputas geopolíticas e há muita gente que não quer que Portugal tenha esta Extensão da Plataforma Continental. Repare, ficamos com a maior zona da Europa e a sexta do mundo, 40 vezes o território continental.

"A saída do Reino Unido é letal para nós, países atlânticos"

Foi ministro da Economia e do Mar. O que está Portugal a fazer a este nível?

Quando estive no Ministério da Economia criámos uma task force do Mar para fazer desenvolver todas as fileiras. A primeira era a da investigação. Depois, tentámos instalar um centro de biotecnologias marinhas nos antigos terrenos da refinaria da Galp em Matosinhos. Já temos interlocutores e, a partir daí, é estudar o ecossistema do mar.   

No mar temos coisa extraordinárias: bactérias, cianobactérias, algas, macroalgas, muitos elementos. As cianobactérias produzem bioplásticos - e temos de substituir os plásticos poluentes por plásticos recicláveis. Pode ser uma fileira de riqueza. Temos as algas, que podem responder a uma crise alimentar no futuro. Temos recursos que interessam muito à indústria farmacêutica, também. E o mar é uma fonte de energia escondida, foi a partir daí que se formatou o projeto das energias renováveis offshore.

Hoje falamos das questões climáticas e do impacto que isso tem no planeta. Estamos a destruir a biodiversidade como nunca, e a biodiversidade é o nosso seguro de vida. Há 50 milhões de anos houve na Terra um evento que é conhecido por evento Azolla, uma planta aquática da família das algas, que nessa altura, por condições particulares, prosperou no Polo Norte.

Falamos das temperaturas do planeta hoje, mas o planeta já teve temperaturas muito acima das que vivemos. E nessa altura as temperaturas era extremamente elevadas, a concentração de óxido nitroso na atmosfera era de 3.500 partes por milhão. Hoje temos 440 partes por milhão e vemos os problemas que temos.

Esta planta aquática prosperou, conseguiu captar o CO2 da atmosfera, diminuiu em pouco tempo os níveis de 3.500 para 660. A temperatura abaixou de cerca de 20 graus centígrados e contribuiu para a estabilização do sistema climático da Terra.

Na Zona Económica Exclusiva, que mencionou há pouco, temos pradarias de algas, macro-algas, e acredito que uma das soluções está na natureza. Portanto, estudar essas pradarias, desenvolver atividades aí, é fulcral para, provavelmente, identificarmos uma das soluções para o futuro. E isso é um projeto absolutamente transformador, ainda por cima para os jovens que estão preocupados com as alterações climáticas.

"Cabe a Portugal, à Espanha, com a França, com a Irlanda, mas também com o Reino Unido e com os países nórdicos, desenvolver uma estratégia atlântica"

Acredita que este governo vai continuar nesse caminho?

Quando foi a passagem de pasta tive uma reunião muito produtiva com o ministro Pedro Reis, tenho uma excelente relação com ele, apresentei o dossier todo, as várias coisas, porque o interesse para o país está acima dos partidos, queremos encontrar um caminho para o futuro. Portanto, espero que muitos desses projetos sejam continuados.

O que me leva ao PRR e às escolhas feitas por Portugal.

Na altura em que o PRR foi desenhado, houve sempre essa luta entre as várias valências, onde se devia apostar. De qualquer maneira, tem algum investimento previsto para o mar e tem investimento muito importante para os nove hubs azuis na costa portuguesa, muitos deles em desenvolvimento.

Mas o PRR tem 52 agendas mobilizadoras muito importantes para o futuro do país e para a transformação da economia portuguesa. Essas agendas são uma espécie de parcerias público-privadas, o Estado investe cerca de 2.800 milhões, mas as empresas investem o resto. Na globalidade vão ser 8 mil milhões de euros.

"75% da população está concentrada na costa, onde está 80% do PIB. E, atenção, 25% da nossa costa já está hoje sob erosão"

Aquela ideia que os bancos fazem passar de que têm dinheiro, mas não emprestam porque não há boas ideias de negócio é falsa?

Há muitas ideias, o país fervilha de ideias. Fui à Universidade da Beira Interior e vieram duas cientistas falar comigo, tinham acabado de criar uma empresa, descobriram uma molécula que retarda a progressão da doença de Alzheimer. Pu-las em contacto com a Startup Portugal, espero que o projeto se devolva. Quando fui a Coimbra visitar a zona das Startups, veio um jovem mostrar-me um bioplástico produzido a partir de uma cianobactéria, uma ideia simples pode mudar o mundo. Há muitas ideias.

Há uma coisa que me preocupa muito: vivemos num país em que 75% da população está concentrada na costa, onde está 80% do PIB. E, atenção, 25% da nossa costa já está hoje sob erosão. Isto é, as alterações climáticas vão atingir o país. Temos que disseminar o desenvolvimento pelo país. Por exemplo, Braga, Guimarães, são zonas extremamente importantes, temos uma indústria metalomecânica que é absolutamente crucial, em 2022 gerou receitas acima do turismo, 23 mil milhões de euros.

Temos muitas capacidades nas ciências da saúde, temos investigação clínica de ponta, não só no Porto e Lisboa, mas toda a zona de Coimbra, que pode ser um dos grandes polos para o desenvolvimento das tecnologias da saúde. Sines e toda aquela área é um dos grandes ativos do país, estamos a conseguir atrair companhias internacionais para a fabricação de baterias, porque temos preços de energia muito competitivos.

Em 2024, estivemos quase 24% abaixo da média dos preços na União Europeia, porque no governo anterior, com o mecanismo ibérico, desacoplou-se os preços do gás dos preços da electricidade. No resto da Europa, o preço da eletricidade é determinado pela última fonte de energia que entra para responder à procura em determinado período e, invariavelmente, é o gás. E o gás, como vimos, está mais caro.

"A energia nuclear para Portugal, nesta altura, não faz sentido"

A energia nuclear voltou a estar em cima da mesa. É a favor ou contra e porquê?

A energia nuclear para Portugal, nesta altura, não faz sentido. Porque já temos, a nível das energias renováveis, uma capacidade muito grande. A energia nuclear representa um investimento colossal, que vai demorar anos, e nós temos uma fileira de energias renováveis que está desenvolvida, um cluster que nos dá competitividade.

O que se está a desenvolver hoje no mundo é a fileira da fusão nuclear, sobretudo a chamada fusão nuclear compacta, com pequenos reatores, que está a começar nos EUA. É a mente humana a funcionar. A mente humana é obreira de milagres, foi ela que nos salvou no passado e vai salvar-nos no futuro, com novas ideias.

Já existe um grande projeto internacional, o ITER [International Thermonuclear Experimental Reactor] a avançar em Cadarache, na França. É a fusão de dois isótopos de hidrogénio, o deutério e o trítio, que criam energias fabulosas, é o mecanismo de energia das estrelas, que a espécie humana sempre teve o sonho de reproduzir.

O problema é que precisa de temperaturas elevadíssimas, de milhões de graus Celsius, para contrabalançar a repulsão eletrostática dos núcleos.

Outro desenvolvimento seria o armazenamento da eletricidade à escala da rede, que ainda não existe. É por isso que continuamos a usar petróleo e gás, porque podem ser armazenados e consumidos quando precisamos. A eletricidade à escala da rede não. Se houver essa descoberta, será a descoberta do século, eventualmente induzirá a eletrificação crescente de muitos segmentos da economia mundial.

"Em 2023, o país registou 329 patentes - o meu sonho era registarmos uma patente por dia"

O que é preciso para pôr a economia portuguesa a crescer 4% ao ano - e pagar bons salários?

A economia portuguesa pode crescer 4% ao ano ou mais. Recordo-lhe que em 2022, no primeiro ano em que estive no governo, a economia cresceu 7%. É evidente que há um efeito de arrasto, mas há também uma contribuição muito significativa de vários sectores, como a indústria metalomecânica.

No fim de 2023, havia 5 milhões de pessoas a trabalhar em Portugal, 34% com formação superior. O país ainda não se apercebeu disso, mas essas pessoas, quando chegam ao chão de fábrica, mudam muitas coisas: capacidade de inovação, de comunicação com o exterior, de redesenho do marketing.  

Em 2022, o número de patentes cresceu 7,6%, voltou a crescer em 5,6% em 2023. Em 2023, o país registou 329 patentes - o meu sonho era registarmos uma patente por dia. O país tem de apostar nas áreas com vantagens comparativas.

"Confesso que não sou um deslumbrado pelos fundos europeus, reconheço que são absolutamente extraordinários, mas criaram um vício no país"

Portugal está sempre à espera de dinheiro da União Europeia, mas depois os fundos não são executados na totalidade. Um contra-senso?

Confesso que não sou um deslumbrado pelos fundos europeus, reconheço que são absolutamente extraordinários, mas criaram um vício no país.

Qual é o problema dos fundos europeus? É um erro só apostarmos nas pequenas e médias empresas - mas dizer isto aos meus colegas nos conselhos da Competitividade parecia blasfémia. E no país temos muito isso, a síndrome do Portugal dos pequeninos: é preciso apostar em tudo o que é pequenino, mas se grande, é preciso é hostilizar. Basta ver o discurso que há desde o Parlamento contra as grandes empresas.

Ora, sem grandes empresas não há transformação da economia. E as nossas grandes empresas representam 0,8% de nosso tecido produtivo, mas não temos condições para as apoiar, inclusive no âmbito dos projetos europeus.

"Temos a síndrome do Portugal dos pequeninos: é preciso apostar em tudo o que é pequenino, mas se grande, é preciso é hostilizar"

Onde se situa no espectro político?

Mais perto do PS. Ou da social-democracia, digamos assim. Mas valorizo muitas estas ideias que tentei introduzir e que causaram muitas convulsões. As pessoas têm as coisas formatadas, mas esta é a realidade.

Temos de reforçar muito o investimento em ciência, tecnologia, em inovação. Temos que atender à questão das grandes empresas como veículos transformadores.

Livro: "Desconseguiram Angola"

Autor: António Costa Silva

Editora: Guerra e Paz

Data de Lançamento: 28 de janeiro de 2025

Preço: € 17,00

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O que faz um ministro chegar ao governo cheio de ideias e não as conseguir implementar, quais são os bloqueios? 

Há muitos bloqueios. Posso contar-lhe que uma primeiras vezes que fui ao Norte, a Vila do Conde, veio falar comigo um industrial das amêijoas: "Senhor ministro, as normas europeias estipulam que para serem vendidas as amêijoas têm de ter um tamanho mínimo de 3,5 cm. Mas aqui em Portugal quando transcreveram a diretiva puseram 4 cm. Conclusão, exporto amêijoa para todos os países da Europa, mas não consigo vender no mercado português".

Bom, chamei o organismo respetivo e perguntei qual a justificação para aqui: "Ah, sabe, é que temos um biólogo na nossa equipa que põe sempre mais do que aquilo que a União Europeia recomenda". Repare, a história podia ser caricata, mas ilustra uma mentalidade.

Outra: quando foi da construção dos seis novos navios para a Marinha, tive uma reunião sobre a visão estratégica no Ministério da Defesa e perguntei se os navios iam ser construídos em estaleiros em Portugal. "Ah, não, porque temos aqui uma pessoa que é adepta do gold plating", que significa pôr ainda mais exigências em cima daquelas que são definidas pela União Europeia.

Mas onde é vão buscar essas pessoas, quem é que as contrata?

Repare, tem na nomenclatura portuguesa sectores que querem agradar mais a Bruxelas do que pensar nos interesses nacionais. Depois, olha para Espanha e eles fazem os 12 navios nos estaleiros de Ferrol, olha para a Holanda e tem as biotecnologias, os biofuels, a avançar, mesmo com as diretrizes europeias. E nós aqui estamos preocupados em pôr ainda mais exigências.  

Isto inibe, muitas vezes, as nossas indústrias.

"O que temos no país é uma mentalidade endémica muito nociva e muito propensa a manter o status quo e a inação"

O que aconteceu no caso das amêijoas, já agora?

Foi logo alterado, na vez seguinte que fui a Vila do Conde lá estava o senhor, todo contente, a agradecer. Ao que respondi, não tem nada que agradecer, isto faz exatamente parte do meu trabalho.

Mas a nossa administração pública também está sob grande escrutínio e as pessoas preferem muitas vezes não decidir, não fazer. Há um medo muito grande de decidir. Aliás, estive uma vez numa reunião em que um dos funcionários disse: "O senhor ministro ainda não viu nenhuma pessoa ser penalizada por não fazer, mas vê muitas penalizadas por tentarem fazer".  

Quer dizer, montamos uma atmosfera altamente repressiva, que condiciona as pessoas e que conduz à inação. É o medo de decidir, é refugiar-se em todos os seus mecanismos, é dizer que sempre fizemos assim e não ter abertura nenhuma para fazer de forma diferente. E essa é a base da vida, a base do progresso.

Mas o que temos no país é uma mentalidade endémica muito nociva e muito propensa a manter o status quo e a inação.