Esperaram 37 anos "e agora é isto". Os moradores do Bairro da Cruz Vermelha, no Lumiar, vão ter de deixar as suas casas e mudar para outra freguesia, a de Santa Clara, mesmo ali ao lado. Mas acusam a Câmara Municipal de Lisboa (CML) de não cumprir com o que prometeu e acreditam que vão ficar a pagar mais por muito menos. Os que têm direito a casa, porque muitos não sabem se vão ficar na rua.
Para contar a história é preciso recuar aos anos 70 e ao 25 de Abril, quando os primeiros moradores ocuparam os dois lotes ainda em construção. Muitos compraram "a promessa da chave", ou seja, pagaram antecipadamente um valor que lhes daria direito à casa, um esquema que acabou mal.
As casas, sem eletricidade, sem água canalizada, sem condições de habitabilidade, foram sendo acabadas pelos moradores à medida das possibilidades de cada um. Só dez anos depois, em 1984, era Nuno Krus Abecasis presidente da câmara, os moradores passaram para os prédios entretanto mandados construir ali ao lado, onde habitam atualmente, primeiro com contratos de locação, depois com contratos de arrendamento.
Agora, "querem tirar-nos daqui para fora, não sei porquê", diz Jorge Marques, que desde 2018 tem escrito cartas à câmara e à Gebalis, a empresa pública que faz a gestão do arrendamento da habitação municipal de Lisboa, a pedir explicações e a denunciar aquilo que considera inaceitável. As respostas não chegam — como não chegaram ao SAPO24.
"De um momento para o outro dizem-nos que temos de sair daqui", contesta outra inquilina, Gabriela. "Não fomos notificados, mas houve uma reunião em que nos foi comunicado que os prédios são para deitar abaixo e dar lugar a um jardim", coisa de que os moradores duvidam, uma vez que só naquela zona do Lumiar há mais de cinco prédios para habitação em construção.
"O meu quarto não cabe na nova casa"
A ideia é passar os moradores para um bairro a estrear, em Santa Clara, onde a câmara disse que iria "construir umas casas baixinhas, tipo vivendas, com entrada pelo rés do chão — porque a maioria das pessoas está nos setenta anos de idade. Mostraram mais ou menos como seria, mas não estão a fazer isso".
Gabriela vive num T2, mas irá receber um T1. "Disseram que teríamos casas com a mesma tipologia, mas estão a entregar o tamanho abaixo". Na tal reunião, recorda, "foram feitas várias perguntas à senhora vereadora [do Desenvolvimento Local e da Habitação] Paula Marques — houve até quem dissesse que queria uma casa compatível com os móveis da casa atual — e a vereadora garantiu que sim".
Mas, afinal, muitas mobílias vão ter de ficar para trás. "O meu quarto não cabe na nova casa", diz Diogo, que ali vive com os pais. "Nem o teu, nem nenhum", respondem as vizinhas. "Quando nos queixámos, uma funcionária da Gebalis disse para colocarmos as coisas à venda no OLX e com esse dinheiro comprarmos mobílias novas", escandalizam-se.
As rendas são outro problema. O primeiro grupo de moradores com quem falámos, todos do mesmo lote, paga à câmara de Lisboa uma renda mensal de 119,50 euros por um T2. Agora, além de ficarem quase todos em casas mais pequenas, não sabem quanto vão ficar a pagar. Uma das moradoras paga 20 euros de renda por um T3, mas como pediu desdobramento (para o filho poder ter direito a casa também), ficará com um T1 e uma renda de 80 euros.
Uma boa parte destas pessoas já não trabalha e recebe uma reforma que ronda os 300 euros mensais. Uma das senhoras trabalhou 39 anos e recebe 308 euros de aposentação. Os exemplos são muitos.
Branca faz parte de uma minoria, é proprietária da sua casa. "Não pago à câmara, mas pago ao banco". Não se recorda exatamente do valor que pagou na altura — "essas coisas é o meu marido que trata" —, mas terá direito a um T2. É a tipologia que tem agora, no entanto, "aqui abri um sótão e tenho duas varandas e agora querem dar-me um cubículo", diz.
Segundo os moradores, a câmara nunca fez obras, ficou tudo por conta dos inquilinos. E, como os lotes foram construídos em aterros onde havia muita água, as infiltrações, além de outros problemas, são muitas.
"Desde 1984 os prédios ficaram esquecidos", diz Ermelinda, que chegou ao bairro com seis anos. Tem 65. Na altura em que ocuparam os prédios, "isto era um bairro muito bonito, casinhas baixinhas", lembra. "Casei, não havia verbas para rendas altas, deu-se o 25 de Abril e as pessoas fizeram a ocupação. Vivemos dez anos em situação precária, nem havia janelas, tínhamos de pôr plásticos, não havia portas, não havia casas de banho em condições. Foi uma luta muito grande para conseguirmos que nos fizessem as casas onde moramos, porque isto era uma lagoa, ia ser ser um campo de futebol. Como fomos os primeiros a ocupar, fomos os primeiros a vir para os prédios que entretanto foram sendo construídos e que ainda são bastantes".
Ao longo destes anos, os moradores foram-se queixando das más condições de habitabilidade, mas, como "a câmara nada fazia", cada um foi remodelando à sua maneira: pedra, canalização, estuque, iluminação, pladur, casas de banho. Jorge garante que gastou "muito dinheiro, mais de 100 mil euros". Nos restantes casos não foi muito diferente.
Feitas as contas, "dava para ter comprado as casas", já que entre o final de 1999 e início de 2000 a câmara escreveu uma carta aos moradores a propor a compra ou venda. Por um T2, por exemplo, dava 3 mil contos a quem quisesse vender e pedia 5 mil contos a quem quisesse comprar (o equivalente a pouco mais de 21 mil euros no primeiro caso e 36 mil euros no segundo).
Depois, em 2001, os preços aumentaram. Nesse ano, João Soares, então presidente da CML, mandou acrescentar uma faixa de varandas aos prédios, "agora a descolar do edifício original". As rachas estão à vista.
Depois disso ainda, só em 2017, quando pela primeira vez se falou na mudança, foram feitas melhorias. "Mudaram os contadores da EDP e instalaram um sistema novo de campainhas e intercomunicadores que nunca funcionou. As portas da rua, em ferro maciço, são tão pesadas que nunca foi possível abri-las automaticamente. E pintaram por fora até onde chegaram", detalham. "Chegámos a comentar que, se era para ir abaixo, mas valia não fazerem nada", afirma Jorge.
Fernando Medina lançou a primeira pedra do "Novo Bairro da Cruz Vermelha" em 8 de outubro de 2018 e, num ato para o qual convidou a comunicação social, entregou as chaves das casas novas no passado dia 9 de junho, vésperas de Santo António, a mesma data em que foram entregues as chaves em 1984.
Entregou ponto e vírgula. "É mentira, não entregou. Fizeram o número para a comunicação social, porque estamos em época eleitoral e não tarda já não poderá haver inaugurações", garantem os moradores.
A mudança, segundo o empreiteiro com quem falámos, deverá ser possível lá para o final de agosto, início de setembro. Os moradores é que não estão pelos ajustes e não ficaram satisfeitos com a solução encontrada. Chamam-lhe "pombal", "prisão domiciliária" ou "canil", entre outros epítetos.
Os prédios ocupados em setembro/outubro de 1974 nunca foram demolidos e chegaram até a ser terminados. Hoje, uma boa parte das casas do Bairro da Cruz Vermelha está entaipada com tijolos que impedem a entrada de inquilinos ilegais cada vez que uma casa fica vazia.
No entanto, à medida que avançamos pela Rua Maria Margarida, nome de uma das beneméritas e ex-presidente da secção auxiliar feminina da Cruz Vermelha que nos anos 70 lançou a iniciativa "Dez tostões por uma casa" — e assim nasceu o bairro —, vamos descobrindo situações que julgaríamos impossíveis no século XXI.
Em plena Lisboa há T2 com quatro famílias dentro
Catarina Silva, com 70 anos que parecem muito menos — "e fartinha de trabalhar, trabalhei no tempo de esfregar soalho" —, não tem papas na língua. Animada, fala alto e ri, mas sabe melhor do que ninguém que o assunto é sério. "Fui uma das primeiras cabo-verdianas a ocupar o prédio", diz com orgulho."Todo o mundo me conhece".
Mãe de três filhos, sete netos e duas bisnetas, nasceu a bordo do Rovuma em 25 de novembro, dia de Santa Catarina, que lhe dá nome, quando os pais se mudavam de Angola para Cabo Verde.
Chegou a Portugal com 14 anos, foi empregada interna em duas casas, trabalhou 34 anos na Câmara Municipal de Lisboa. "Reformei-me no limite da idade, 47 anos de descontos que a Segurança Social não contou na totalidade, tenho de saber porquê. É meu, não vou deixar barato", reclama.
"Expus a minha situação na Gebalis, mas entra por um ouvido e sai por outro"
Depois de ser mãe, mandou vir os pais e os irmãos. Em dezembro de 1976 chegou ao bairro, ela, "o senhor Alexandre, a Josefa de Manito". Sabe o nome de todos os vizinhos, que representa através de uma associação fundada há muitos anos para ajudar os realojados, e conhece-lhes a vida de cor, inclusive a de Noémia, que ocupou a casa que devia ser sua, mas que não contestou para "não fazer guerra".
Aos poucos vai-se juntando gente. Primeiro julgam que somos da câmara ou da Gebalis, vêm apresentar dúvidas e pedir soluções. Ali, os problemas parecem ser ainda mais graves: quatro famílias a viver num T2, ocupações ilegais, pessoas com mobilidade reduzida e incapacidade física, gente que não sabe para onde ir. As histórias não têm fim.
Nelson tem 42 anos e uma incapacidade superior a 60%. Vive com os pais, apesar de ter a sua própria família. A casa que lhe está destinada é a que será atribuída aos progenitores, porque faz parte do mesmo agregado familiar: um T3 com escadas. Devido aos problemas de mobilidade talvez seja possível fazer-se o desdobramento, desde que os pais recebam uma casa de tipologia inferior. Mas não é certo.
Rui, 43 anos, vive num T2 com os quatro irmãos, as respetivas mulheres e filhos. Não sabe o que lhe vão dar, mas em princípio irão continuar todos na mesma casa. "Expus a minha situação na Gebalis, mas entra por um ouvido e sai por outro", desabafa.
"As casas são um cochicho", diz Nelson. "Estamos em 2021 e ainda vivemos nestas circunstâncias. Que a gente não sirva só para fazer publicidade a alguma coisa, o que estamos a passar é real".
Um grupo aproxima-se: "Nós somos entradas abusivas". Nós, são os irmãos Gonçalo, 27 anos, e Catarina, 25 anos. O que é uma entrada abusiva? "É o arrombamento de uma casa", explica Gonçalo. Ou seja, os dois vivem em casas tomadas de assalto nos anos mais recentes, exatamente no primeiro edifício a ser ocupado depois do 25 de Abril. Agora não sabem o que os espera.
Querem ver a situação resolvida, ambos têm filhos pequenos, só Gonçalo tem quatro. Enviaram cartas à vereadora Paula Marques e até lhe entregaram uma em mão. "Garantiu-nos que quando fosse o realojamento nos ajudava a resolver a situação", mas, até agora, nada.
Um dos presentes esclarece que, em 2017, na primeira reunião sobre a mudança dos moradores do Bairro da Cruz Vermelha do Lumiar para Santa Clara, foi dito que todos os problemas existentes até aquela data seriam resolvidos. Tudo o que fosse posterior a isso não.
Gonçalo e Catarina chegaram em 2018. Não pagam renda de casa, nem eletricidade, nem água. "Porque não nos querem legalizar as coisas", diz Catarina. Se acha justo ocupar uma casa em vez de fazer como o comum dos jovens da sua idade, que têm de se esforçar para pagar uma renda? "Acho menos justo a câmara ter as casas fechadas e não as dar às pessoas", responde.
"Caramba, tinham espaço suficiente para fazer casas em condições, não somos portugueses de segunda ou de terceira. Mas só nos conhecem no dia de votar, aí é que se lembram de nós"
Catarina trabalha, recebe um salário de 500 euros e paga 85 euros pelo infantário da filha, que cobra em função do IRS e das despesas apresentadas. "Quero pagar todas as contas, mas pagar 300 de renda, que é o mínimo que se cobra por aí, é impossível", lamenta. "Há milhares de casas fechadas por aqui fora".
Diana, 28 anos, traz ao colo o pequeno Brian e um problema sem solução à vista. Está a viver na casa que era do tio, de quem tomou conta nos últimos tempos e que entretanto faleceu. Não tem direito a "entrar para a ficha" em substituição do tio, mas continua a morar na casa que era dele e a pagar a renda todos os meses. Como os das "entradas abusivas", nunca recebeu uma ordem de despejo. "Têm de encontrar uma solução, não nos vão pôr na rua com crianças", desespera. As situações sucedem-se.
Uma vez mais, Catarina Silva insurge-se: "Nós não pedimos para sair daqui, foi a câmara que quis". Mais: "Todos temos direito a um teto, mas enquanto alguns estão a morar no bairro há menos tempo e já têm sítio para onde ir, outros ainda estão sem saber o que lhes vai acontecer. Isto é ou não discriminação? A vereadora disse que dava casa a quem tivesse três anos de IRS, disse que haveria desdobramentos. Estes senhores têm todos papéis e nasceram no bairro, não caíram cá de para-quedas".
"Moro aqui há quase 50 anos, gosto deste bairro, e nem quero pensar no dia em que me vou embora". Pela primeira vez a voz fica embargada. "São as minhas raízes, coisas que custam, vizinhos que já não estão. Dois morreram porque caíram do prédio inacabado. Um deixou um filho com quatro anos, outro com três e outro com meses, logo em 1977. O outro, João Correia, caiu do 2.º andar, as casas não estavam acabadas e não tinham proteção. Já passámos muito. As casas que nos deram não eram um luxo, gastámos rios de dinheiro", recorda.
O que queria Catarina? "Eu queria que fosse como a vereadora prometeu, que um T1 desse para fazer T2, o T2 desse para fazer um T3 e assim por diante. Mais de metade foi ver as casas, não gostou e saiu daqui, fizeram bem. O que eu vi deixou muito a desejar. O sítio que disseram que dava para transformar num T2 tinha 90 centímetros, dito pela senhora da Gebalis. Que me desculpem, mas o meu neto que tem 12 anos é mais alto do que eu, como vai caber ali? E não temos sítio para pôr um frigorifico, para estender a roupa... Caramba, tinham espaço suficiente para fazer casas em condições, não somos portugueses de segunda ou de terceira. Mas só nos conhecem no dia de votar, aí é que se lembram de nós", desabafa.
Do outro passeio, uma senhora grita que criou sete filhos num T3, quatro rapazes num quarto e três raparigas noutro. Diz isto e lembra que as casas novas não têm arrumação nenhuma. "Não têm roupeiros, não têm uma despensa, a cozinha é muito pequenina, embora esteja toda equipada. O meu frigorífico não cabe lá, como não cabe uma mesa de cozinha".
Os restantes moradores concordam. "Tenho dois filhos, mas no quarto não cabe um beliche. Na sala, se põe uma mesa não cabe um sofá, se põe um sofá, não tem espaço para a mesa". "Prometeram-nos que teríamos casas com áreas grandes, zonas de convívio e que até poderíamos escolher se queríamos ou não uma horta. Nada disto aconteceu. Em vez disso, o quarto do T1 tem 2,5 metros por 3,90 metros, se se põe uma cama de dois metros já não cabem as mesinhas de cabeceira.
Jorge Marques, que regressa agora com dois netos que foi buscar à escola, diz que "para dormir em beliches já me chegou o tempo de tropa. Dizem que é construção evolutiva e que um hallzinho pode ser transformado em sala. E é tudo gradeado, parece que estou em prisão domiciliária". Além do mais, enquanto aqui leva os netos para casa até a filha os vir buscar, às oito da noite, na casa nova terá de "esperar com os miúdos na rua, porque não há espaço para eles".
Jorge desespera tanto com a falta de informação como com as explicações dadas aos moradores. "Fui à Gebalis pedir os papéis para o IRS e responderam-me que não tinha direito, porque desde o início que moro cá que estou provisoriamente". Outra vez foi a filha, "que tem uma casa própria (do sogro)", que quis saber o motivo de não ter direito a casa. "Responderam-lhe que não tinham a culpa de ela ter tido filhos". Numa das reuniões com moradores, o presidente da Junta de Freguesia do Lumiar, Pedro Delgado Alves, que é também deputado à Assembleia da República, "disse que quando mudássemos de casa nem precisávamos de mudar a residência. Mas como, se nem a freguesia é a mesma?".
O Novo Bairro da Cruz Vermelha, em Santa Clara, tem 130 fogos de diversas tipologias (de T1 a T4) e representa um investimento camarário de 11,3 milhões de euros. Inicialmente foi dito aos moradores que seria exclusivamente para as pessoas do bairro, "mas agora já sabemos que vão abrir também para renda acessível".
Sem um advogado que os defenda, os moradores sentem-se impotentes. "Eles só sabem dizer que é lei", diz Ermelinda, "e várias vezes quiseram mostrar-me papéis e decretos. Mas para quê, se eu não percebo nada disso?".
O que mais choca os moradores da Cruz Vermelha é que em tempos foi feito um relatório onde constavam todos os dados relativos ao bairro, incluindo a tipologia das casas e dos agregados familiares, "tudo informação que poderia ter sido utilizada na construção do novo bairro em Santa Clara". Mas não foi.
[Artigo corrigido às 13:20 — Substitui "vereadora" por "funcionária da Gebalis"]
Comentários