“Alfama não cheira a fado. Cheira a povo, a solidão. A silêncio magoado. Sabe a tristeza com pão. Alfama não cheira a fado. Mas não tem outra canção”, já cantava a diva Amália Rodrigues.
Agora, a dias de celebrar o Santo António, as ruelas engalanaram-se e a azáfama é visível, com os comerciantes a quererem tudo pronto para festejar.
Dália Ferreira vive em Alfama há 53 anos e a agitação que mora no bairro durante o mês de junho, com as festas - que trazem centenas de pessoas, entre as quais muitos turistas que já se passeiam durante o dia -, não lhe faz confusão.
“É uma maravilha. Alfama é uma aldeia dentro de uma cidade. Não quero ofender bairro nenhum, não quero. Mas Alfama realmente é uma coisa maravilhosa. Como esta gente vive tão intensamente [as festas], é lindo. A nossa marcha é linda”, começa por dizer à Lusa.
Para Dália Ferreira, não é “confusão nenhuma” a transformação que o bairro vive durante os Santos Populares, a começar com a montagem dos retiros, os espaços de madeira que se encontram espalhados pelas ruas e onde se vendem comes e bebes, além dos manjericos.
No Largo de São Miguel, a uma semana das festividades, os retiros ganham forma e os tronos ao Santo António são percetíveis em cada esquina que se passa.
Dália Ferreira, que antigamente não faltava ao bailarico, diz agora que, com mais idade, já fica por casa. Recorda a “desgraça muito grande” que foi para o bairro estes dois anos de pandemia: “Todos estes estabelecimentos sofreram muito com isso. As casas de fado… estava tudo fechado. As pessoas sofreram muito, muito, muito. Mas pronto, agora há que levantar a cabeça e ir para a frente, com ou sem covid.”
Cecília Lopes está agora à frente do retiro que já foi dos seus avós, depois dos pais, e que “passa de geração em geração” frisando já ter sucessor para a banca, que está a ser preparada “há coisa de um mês”.
Sublinha que não ‘mexeu’ nos preços dos salgados – o retiro é conhecido pelos pastéis de bacalhau e de camarão, além dos croquetes -, apesar de os preços dos produtos estarem a aumentar nos supermercados e onde se abastece.
“Agora, nas bebidas e no meu arroz doce já vou ter de pedir mais um bocadinho”, explica, lembrando que o mês de junho é sempre igual com a festa e com a marcha: “é uma categoria, é linda e somos a rainha da marcha”.
Um pouco mais à frente está o retiro de Aida, agora “acamada e sem saúde” para estar aos comandos, delegando no senhor Manuel a ajuda “já há mais de 40 anos”. Depois de nos últimos dois “as coisas terem sido difíceis”, desabafa Manuel, “parece que já vai ser melhor” este ano.
“Foi difícil, aquilo que a gente ganha é para a educação dos filhos e para as contas do ano. Somos pessoas remediadas”, conta, lembrando que o retiro onde dá os últimos retoques já participa nas festas “há perto de 70 anos”.
Por estes dias, o restaurante Estaca Zero, nas mãos de Maria José há perto de seis anos, depois de 15 de portas fechadas, transforma-se num elétrico amarelo, um dos ex-líbris da cidade e que descreve o amor dos proprietários pela cidade de Lisboa.
“Só quem vive [em Alfama] é que consegue descrever realmente, não têm a noção. Sabem que é festa, mas isto mexe muito com o sentimento das pessoas. Foi uma tristeza, um vazio no coração das pessoas, nas casas vazias, uma tristeza. Alfama não é Alfama sem fados, sem Santos Populares”, diz Maria José, lembrando os últimos dois anos em que a pandemia obrigou ao cancelamento das celebrações.
“Já sou mais de Alfama do que do Norte, já moro aqui há 33 anos”, conta, por seu turno, Gracinda, natural do Porto e conhecida por vender ginjinha à porta de casa nas festas populares, como tantas outras moradoras do bairro que nesta altura tentam fazer algum dinheiro extra.
Gracinda explica a falta que lhe fizeram as festas, a si e a “muita gente, a toda a gente”, já que todos precisam de trabalhar. Por isso, espera que a chuva dos últimos dias dê tréguas.
Entre uma madeira cortada aqui e ali, entre os barris de cerveja a serem arrumados debaixo dos estrados dos retiros ou os sacos do carvão, veem-se os fogareiros a serem limpos e os sacos do pão e os tabuleiros com queijos para trás e para a frente.
É esta azáfama que contrasta com o sossego descrito pela presidente da direção da Associação do Património da População de Alfama (APPA), Lurdes Pinheiro, em 2020 e 2021.
“Para mim foi melhor porque houve mais sossego e mais cabeça para ajudar a resolver problemas. Mas as pessoas sentiram, ficando mais tristes, porque este mês é o mês em que toda a gente precisa disto para desopilar, como eu costumo dizer, para poderem estar uns com os outros, para poder conviver, para ganhar um bocadinho de dinheiro”, descreve.
“Para agravar, os despejos foram em maior quantidade” nestes dois anos e o turismo também deixou de ir para o bairro, mas neste último caso reconhece “não fazer mal nenhum”, pois estava “muito desenfreado”.
Os Santos, conta, são também uma forma de as muitas pessoas que se viram obrigadas a sair do bairro a reviverem a tradição e conviverem: “A tristeza foi a principal preocupação, portanto, voltarem as festas este ano é um bálsamo, mas ao mesmo tempo continua a ser triste porque as pessoas já não vivem cá, e sonham em voltar a viver aqui. Eu acho que isto é um bálsamo e um faz de conta que vai matar saudades.”
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